Não há banco central verdadeiramente independente
Se continuarmos a eleger ilustres que sistematicamente bombardeiam o Banco Central a inflação voltará quer gostemos dela ou não
Publicado em 28 de junho de 2024 às, 12h49.
Uma das sinucas da democracia é equilibrar independência e prestação de contas. Certas funções precisam estar protegidas de influências externas para serem bem executadas. Mas há um preço. Agentes independentes podem abusar do privilégio. Além disso, se o próprio processo de indicação do agente não for robusto, escolhas infelizes não podem ser prontamente corrigidas.
Por exemplo, o Estado de direito só funciona se os juízes puderem decidir serenamente, sem sofrer pressões de outras instituições políticas, de interesses organizados ou da opinião pública em geral. A própria credibilidade das leis depende de um judiciário independente, desde que, é claro, ele seja competente, coerente, consistente, imparcial e impoluto.
Quando faltam esses atributos, é natural que se questione a independência. A nova presidente mexicana propõe mudanças constitucionais que tornarão os juízes elegíveis pela população – um passo que evidentemente diminui sua independência. Não conheço a situação no México, mas não é preciso ir muito longe para imaginar motivos que levem uma sociedade a querer, ainda que irracionalmente, aparar as asas dos excelentíssimos.
A história é parecida com os bancos centrais. Ninguém gosta de inflação, naturalmente. Mas poucos conhecem, mesmo que superficialmente, suas causas e consequências macroeconômicas e os custos elevados para controlá-la. A noção de que o Banco Central influencia pouco o crescimento econômico a longo prazo é também incompreendida pela maioria.
Uma pesquisa recente sobre as percepções do povo americano com relação à inflação revelou que o problema é visto como algo nocivo por gerar incerteza e atrapalhar a gestão dos orçamentos familiares (*). Conservadores culpam o governo e o pessoal mais à esquerda aponta o dedo para a ambição das empresas. Uns desconfiam que a inflação tende a afetar negativamente o desempenho da economia, outros se preocupam mais com possíveis impactos distributivos.
As principais diferenças terminam aí. A maioria concorda que combater a inflação deve ser uma prioridade, mais até do que criar empregos (um resultado surpreendente que ajuda a entender em parte as dificuldades eleitorais de Joe Biden apesar de a economia estar bem). Além disso, as famílias de forma geral têm dificuldade de perceber que segurar a inflação não é um almoço gratuito e que, muitas vezes, o problema surge como consequência indesejada de conjunturas econômicas favoráveis.
Ao contrário, parece haver uma crença arraigada e generalizada de que a inflação é um fenômeno que sempre vem na esteira de desdobramentos adversos e que seu combate não acarreta custos significativos. Assim, políticas restritivas envolvendo a elevação de taxas de juros são amplamente rejeitadas (e equivocadamente percebidas como sendo fonte de mais inflação). O público prefere, por exemplo, políticas de intervenção direta em preços – que causam mais distorções.
Para piorar, o estudo mostra que, mesmo quando informados de forma didática sobre os mecanismos da inflação, a torcida segue não acreditando que às vezes é preciso esfriar a economia para reduzi-la. Ou seja, este é outro exemplo de fenômeno sobre o qual as opiniões são resistentes ao conhecimento estabelecido. A pesquisa retrata diretamente a situação nos EUA, mas é bem provável que haja confusões parecidas mundo afora, sobretudo em países menos desenvolvidos.
Crenças distorcidas afetam o comportamento e moldam as preferências do eleitorado. Estas, por sua vez, guiam a ação dos políticos. Explica-se assim a hostilidade quase universal contra as autoridades monetárias, uma antipatia que atravessa todo o espectro ideológico.
Por isso, como no caso dos juízes, a ação dos Bancos Centrais precisa ser blindada dos “controles democráticos” frequentemente sugeridos pelos políticos, pouco importando se por esperteza ou ignorância. Quando o Banco Central é privado de autonomia, perde-se também o controle da inflação – como se viu por aqui, recentemente, durante a infeliz vigência da Nova Matriz Econômica.
Diante da dificuldade que o público em geral tem de entender a natureza do trabalho das autoridades monetárias e da propensão cada vez maior à escolha de líderes que não valorizam as instituições democráticas, a independência dos bancos centrais tende, mais do que nunca, a ser ameaçada, mesmo quando realizam um bom trabalho – que evidentemente deve ser executado de forma técnica, previsível, transparente e neutra. Por falta de padrinhos, diferentemente do que ocorre com os juízes, banqueiros centrais não podem fazer o que bem entendem sob o risco de acrescentar fome a quem já tem vontade de comer.
Há dois meses, uma matéria do jornal Wall Street Journal, que certamente não tem um viés “progressista”, informou que assessores do candidato Donald Trump estariam silenciosamente desenhando propostas para diminuir a independência do banco central americano – o FED. Segundo a história, as versões mais radicais dariam ao presidente poder para influenciar diretamente a definição da política monetária. Se é assim na matriz, imagina se a moda pega nas filiais. Temos dificuldade de importar as boas ideias, mas não as más.
Se a ideia de eleger juízes vingar no México será péssimo para eles – já basta o estrago que o eleitorado faz ao escolher representantes do executivo e do legislativo. Se a independência do FED for para o vinagre será desastroso para o mundo – por isso por enquanto se finge que o risco não existe. O lado assustador dessas histórias é que ideias estapafúrdias como essas são bem acolhidas pelo povo, seja porque certas autoridades claramente abusam da independência que possuem, seja porque seu trabalho é mal compreendido pela maioria.
A independência de fato dos bancos centrais depende no final do dia da lucidez dos que escolhem os seus integrantes. Estes, por sua vez, são eleitos por gente que definitivamente não gosta de inflação, mas que tem enorme dificuldade de entender como ela surge e o que é preciso fazer para combatê-la. Trata-se de um equilíbrio extremamente instável, sobretudo em países com as fragilidades fiscais e o histórico brasileiro. Para trincar o cristal não será preciso muito e a meu ver a tese de que o brasileiro “não aceita mais inflação” não é garantia de nada.
Se continuarmos a eleger ilustres que sistematicamente bombardeiam o Banco Central a inflação voltará quer gostemos dela ou não.
(*) Binetti, A., Nuzzi, F. e Stantcheva, S. (2024) “People’s Understanting of Inflation”, NBER Working Paper # 32497, June.