A pizzaria explica: como a extrema direita pode beneficiar o PT
Se adeptos da calabresa e da muçarela não abrirem os olhos, tudo acabará em pizza de novo
Publicado em 9 de setembro de 2018 às, 19h13.
Última atualização em 10 de setembro de 2018 às, 14h14.
Um grupo de dez amigos precisa escolher uma pizza. Democratas convictos, votam e a calabresa ganha. Antes de anotar o pedido, o garçom informa que muçarela está em falta – a cedilha neste caso pesa mais que o próprio queijo, mas o que se há de fazer? Dá-se então o inusitado. Ao ouvir a informação aparentemente irrelevante, pois o grupo já havia escolhido calabresa, o porta-voz interrompe o ilustre e dispara: “substitua, por favor, calabresa por portuguesa”.
Trata-se de reação estranha, que soa um tanto irracional, mas é fácil entender o que passou. Das dez pessoas, quatro escolheram calabresa no “primeiro turno” enquanto muçarela e portuguesa receberam três votos cada (ver a tabela abaixo). A pizza de linguiça, além de favorita pode ser também considerada a mais “radical”, pois ela é a primeira opção de uma pequena maioria (quatro comensais), mas a última da maioria absoluta. Isso explica o aparente paradoxo. Quando a tradicional pizza de queijo deixou de ser uma alternativa, os três eleitores “moderados” migraram para a opção que a eles era a menos indigesta.
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4 pessoas |
3 pessoas |
3 pessoas |
1ª opção |
Calabresa |
muçarela |
portuguesa |
2ª opção |
muçarela |
portuguesa |
muçarela |
3ª opção |
Portuguesa |
calabresa |
calabresa |
É interessante notar que sete das dez pessoas preferiam não degustar a pizza portuguesa que acabou sendo a eleita – este é o consenso mais expressivo dentro do grupo, maior até do que a rejeição à calabresa. Dizem que essa aversão à pizza de presunto e cebola nasceu porque o chef inexperiente e avesso a críticas resolveu testar uma nova matriz de ingredientes, mudando a receita usual. Pensou em saudar a mandioca incluindo a especiaria na massa, recusando-se a ouvir os críticos, acusando-os de submissão ao imperialismo, fascismo e homofobia.
Apesar da péssima experiência pretérita com a pizza portuguesa, o grupo não foi capaz de chegar a uma espécie de acordo prévio para evitar a repetição do dissabor. Em particular, a ala “moderada” sentou-se à mesa preferindo pegar leve, votando pela alternativa que, digamos, podia ser considerada a mais “light” uma vez que salada não era uma opção. Usaram o argumento de que apesar de muçarela ser um queijo com menos sabor, representava a opção mais segura depois do desastre do último encontro. Os mais radicais taparam as orelhas e chutaram o pau da barraca, raciocinando que se é para passar mal, que seja com uma pizza mais picante e “verdadeira”. Para eles, portuguesa nunca passou de uma invenção heterodoxa infeliz.
A falta de coordenação entre os adeptos da calabresa e da muçarela levou miseravelmente à escolha que os sete membros desejavam evitar a todo custo quando se dirigiram à pizzaria. Nenhum queria correr o risco de repetir o erro, mas ninguém recuou de suas opiniões com relação à dosagem do antídoto. A minoria que ponderava que era a hora de baixar a bola não foi capaz de demover a pequena maioria da insensatez de exagerar para o outro lado.
Quando a pizza insossa como chuchu deixou de fazer parte do cardápio, a escolha passou a ser entre a opção menos radical dentre as disponíveis. Sabiam que a portuguesa seria intragável, mas imaginavam que a calabresa poderia ser ainda pior – e se ela viesse com anchovas? No final, o sentimento majoritário de repulsa pela pizza que havia trazido tanto desprazer de nada serviu e o grupo teve que amargá-la novamente. O chef, mais confiante do que nunca com a vitória na urna, dobrou a dose da mandioca para tristeza geral.
Não é preciso esforço para estabelecer o paralelo desta fábula com as inconsistências de escolhas produzidas por eleições majoritárias que se dão em dois turnos, como a que teremos em breve. É comum ver candidatos com plataformas radicais vencerem o primeiro embate e perderem o segundo pela dificuldade de atrair eleitores de perfil mais moderado que, derrotados na primeira rodada, tapam o nariz e optam pelo candidato que a eles parece ser o “menos ruim” na segunda. Muitos simplesmente desistem de votar, o que não muda a conclusão. No nosso exemplo, a conversão do voto de apenas um eleitor moderado (um terço do total) seria suficiente para transformar a opção calabresa x portuguesa em um jogo de cara ou coroa.
Não há forma ideal de fugir desse problema e, na verdade, é discutível se ele pode ser mesmo considerado um problema. No exemplo, o grupo acabou escolhendo o sabor que é a primeira ou a segunda opção de seis pessoas – uma maioria absoluta. O busílis é que havia uma decisão melhor, que sob o mesmo critério atenderia a sete pessoas.
É lícito argumentar que esta é a escolha que deveria ter vencido. O Nobel Kenneth Arrow provou em 1950 que é impossível conceber um sistema de votação que seja livre dessa bizarrice e, ao mesmo tempo, satisfaça poucos atributos elementares e quase óbvios, como respeito à maioria e inexistência de um ditador.
A única escapatória para sociedades que se encontram diante do dilema é usar “votos estratégicos” ou “votos úteis” como eles são normalmente conhecidos. A ideia é que o eleitor que prefere uma plataforma radical deveria migrar para opções boas não apenas para vencer a primeira rodada, mas também a segunda. Usando as preferências do exemplo (ignorando agora a falta de muçarela que foi um artifício para emular uma eleição em dois turnos), se o eleitor que gosta de calabresa fosse capaz de antecipar que a portuguesa teria lugar garantido no segundo turno, seria melhor descartar sua primeira opção e migrar para o sabor menos emocionante, mas ainda palatável, pois este é o único capaz de evitar a vitória final da pior opção. Faria isso porque sabe que dificilmente o moderado abandonaria a primeira opção em favor da última.
O assunto é delicado porque, a bem da verdade, o voto de cada eleitor vale pouco ou quase nada. Dificilmente a minha ou a sua escolha serão decisivas. Faz sentido então jogar estrategicamente com algo que para início de conversa faz tão pouca diferença? Não entro aqui nesta seara, mas o fato é que as pessoas saem de casa para votar e que o “voto útil” é um fenômeno comum.
Por isso as corridas mudam significativamente de configuração poucos dias antes da eleição. Esse é o único fato que traz algum conforto neste momento de grande incerteza porque sugere que uma parte da turma que hoje quer chutar o balde poderá se dar conta que seu voto tende apenas a beneficiar aqueles que eles mais repudiam.
O mercado financeiro não tem RG, CPF e ideologia. Movimenta-se a partir do resultado mais provável para a eleição, avaliando a chance de o vencedor tocar a economia com competência. Se, para o mercado, muçarela é melhor que calabresa que é melhor que portuguesa, não adianta ter certeza que a pizza de queijo ganha fácil no segundo turno se ela não chegará lá.
Por isso qualquer notícia que favoreça a candidatura mais radical em um eventual segundo turno, por mais insólita e lamentável que seja, como um atentado, por exemplo, tende a fazer o mercado melhorar porque, para ele, o pior é a vitória do outro extremo.
Uma coisa é certa, se adeptos da calabresa e da muçarela não abrirem os olhos, tudo acabará em pizza de novo.