Marcas e Credibilidade: por que ficamos furiosos com a Bel Pesce?
Muito foi dito e escrito, com ou sem fundamento, sobre Bel Pesce. O fato é que ela teve a reputação bastante prejudicada, mas mais do que isso, muitas pessoas que nunca haviam ouvido falar da Bel Pesce acabaram sendo impactadas por reportagens e opiniões negativas a respeito dela. Ela ganhou muito conhecimento de marca, mas de maneira negativa. Chamo Bel Pesce de marca porque gosto de usar uma definição popularizada […] Leia mais
Publicado em 28 de setembro de 2016 às, 08h24.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 07h28.
Muito foi dito e escrito, com ou sem fundamento, sobre Bel Pesce. O fato é que ela teve a reputação bastante prejudicada, mas mais do que isso, muitas pessoas que nunca haviam ouvido falar da Bel Pesce acabaram sendo impactadas por reportagens e opiniões negativas a respeito dela. Ela ganhou muito conhecimento de marca, mas de maneira negativa.
Chamo Bel Pesce de marca porque gosto de usar uma definição popularizada por Al Ries que diz que “uma marca é uma lembrança na cabeça de um consumidor”. As lembranças passadas nos ajudam a tomar decisões futuras, logo, qualquer lembrança pode seguir uma lógica de marcas, e assim pessoas se tornam marcas.
“Pessoas são marcas” foi e é usado para vender livros, palestras e consultorias de “branding pessoal”, uma falácia tão grande quanto as cinco graduações de Bel no MIT. Mas alguns (ou muitos) compraram. E gostaram. E acharam o conteúdo adequado. Afinal, essas são percepções individuais, que estão presentes também em produtos físicos, como em uma marca de cerveja, refrigerante ou computador, mas acabam influenciando ainda mais os chamados “serviços experienciais”, como ler um livro ou assistir uma palestra.
Neste caso, as sensações dos participantes do evento ou curso podem ser mais importantes do que o conteúdo de fato exposto ali. Afinal, não há qualidade palpável para ser percebida. E é aqui que reside o caso da Bel Pesce, e de tantos outros especialistas que vendem livros, palestras, cursos e consultorias. É daqui que se origina nossa fúria contra a “Menina do Vale”.
É impossível para um comprador de palestras e cursos aferir qualidade real do mesmo, a não ser que ele seja um especialista. E se ele for um especialista, provavelmente ele não terá interesse em estar presente em um evento. Ou seja, esse tipo de curso ou palestra são feitos para leigos, que são em sua maioria incapazes de objetivamente aferir a qualidade do que estão comprando. O que resta então para o evento ser bem ou mal sucedido? A percepção dos participantes sobre ele, e as informações coletadas antes de se resolver participar do evento.
É aí que entra o poder dos exageros criados por Bel Pesce ou pelos jornalistas que publicaram as informações. O produto oferecido por Bel pode ser igual ao de qualquer outro “especialista” que vende seus cursos e palestras online. Mas o dela tinha mais valor pelas credencias apresentadas previamente: sua graduação (ou graduações) no MIT, suas Start Ups bem sucedidas, seus projetos espetaculares. Ali residia o valor de Bel, e não no conteúdo em si.
As pessoas compravam a Bel não pelo que ela iria oferecer, mas sim pelas suas realizações anteriores. Quando se remove as realizações anteriores, não sobra nada que a credencie para fazer palestras e cursos. Ela vira um produto que anuncia um benefício que não tem. É, no mínimo, um “overpromise” de comunicação, e no limite, fraude. Aqui reside a frustração de muitos.
Culpa dela? Provavelmente. Culpa de todos os que compartilharam e compraram? Também. No passado, para se tornar um “especialista”, era preciso passar certas “instâncias de consagração”, como chamou Bourdieu. Simplificando os pensamentos do autor, para se consagrar um indivíduo (ou extrapolando, as marcas) era preciso que um conjunto de notáveis atribuíssem a ele valor. Esse valor poderia vir por meio de um reconhecimento acadêmico, estar vinculado a uma instituição respeitada, uma premiação, ou outro tipo de ferramenta de consagração estruturada. Qual a consagração da Bel Pesce? Além de seu CV, a divulgação dela por Flavio Augusto, dono da Wise Up e do time americano Orlando City, e a posterior enxurrada de reportagens de jornalistas ávidos por criar um novo mito do empreendedorismo nacional.
Mas isso não aconteceu exclusivamente com Bel Pesce. Isso acontece o tempo todo. Com jogadores de futebol que viram “craques” com três boas atuações. Com consultores que viram sumidades com metodologias divulgadas num TEDx de 15 minutos. Com acadêmicos que viram estrelas midiáticas e respondem sobre qualquer assunto que sejam perguntados, mesmo longe de suas áreas de atuação. Com “blogueiras fitness” que passam a ter enorme influência em nutrição e atividades esportivas de milhares de pessoas (veja opinião anterior sobre Pugliese aqui).
A verdade é que o sucesso instantâneo, fácil e rápido, nos seduz. E porque nos seduz, criamos esse tipo de mito. É muito mais sedutor ler e ouvir um prodígio instantâneo do que alguém que estudou 20 anos para se tornar especialista em alguma coisa. E como consequência clicamos em reportagens a respeito deles, compramos seus livros, seus cursos, vemos seus programas. Um círculo virtuoso de sucesso que se torna, em muitos casos, inevitável. Até que a verdade chega, como chegou para Bel Pesce.
E é ótimo que chegue, pois isso pode fazer com que sejamos mais cuidados, mais criteriosos e mais preocupados em usar, nós mesmos, o nosso poder de consagração. Pois se nos conceitos de Bourdieu para se consagrar são necessárias credencias, hoje parece bastar um bom número de amigos em redes sociais e algumas linhas bem (ou nem tão bem assim) escritas. O grande problema é quando a verdade não chega, e ficamos continuamente sendo seduzidos pela aparência e perdemos a chance deter acesso a conteúdo verdadeiramente bom.
Por que se tem razão em estar furioso com a Bel Pesce? Porque fomos enganados pelo “produto” Bel, que prometeu uma coisa e entregou outra. Fomos enganados do mesmo jeito que sites que vendem produtos de marca baratos e entregam piratas nos enganam. Do mesmo jeito que aqueles que compram bilhetes premiados falsos. Do mesmo jeito que produtos que prometem um beneficio e não o entregam.
A nossa frustração vem em nos sentirmos vítimas de uma fraude, não apenas financeira, mas moral. Afinal, neste caso, alguns fizeram divulgação para a “Menina do Vale” nas suas redes sociais, usando o seu poder para consagrar uma fraude, e se sentiram mais humilhados por isso do que com o dinheiro desperdiçado. Nos sentimos fantoches seduzidos por falsos símbolos e alienados por propagandas e opiniões mentirosas.
A solução para isso é sermos, cada vez mais, esclarecidos, críticos, criteriosos e, infelizmente, desconfiados. E talvez voltarmos a acreditar mais nas instâncias de consagração “tradicionais”: as faculdades, os acadêmicos, os verdadeiros especialistas, que gastaram muito mais do que 20 anos para se tornar o que são, como aqueles especialistas descritos nos textos de Bourdieu.