Pesquisadores da USP encontram coronavírus na gengiva de vítimas da covid
Autópsias em pacientes que morreram de covid-19 no Hospital das Clínicas mostraram a presença do vírus no tecido periodontal
André Martins
Publicado em 27 de março de 2021 às 12h50.
Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM- USP ) detectaram, pela primeira vez, a presença do SARS-CoV-2 no tecido periodontal de pacientes com COVID-19 que faleceram em decorrência da infecção.
Durante um procedimento de autópsia minimamente invasiva, eles realizaram biópsias de pacientes diagnosticados com COVID-19 que morreram no Hospital das Clínicas da FM-USP e observaram, por meio de análises por RT-PCR e histopatológicas, a presença do SARS-CoV-2 na gengiva.
Os resultados do estudo , apoiado pela FAPESP, foram publicados no Journal of Oral Microbiology.
As descobertas contribuem para desvendar uma das possíveis fontes do novo coronavírus na saliva de pacientes com COVID-19, sublinham os autores do estudo.
“A presença do SARS-CoV-2 no tecido periodontal pode ser um dos fatores que contribuem para a presença desse vírus na saliva de pacientes infectados e demonstra que as origens do novo coronavírus em gotículas salivares não são somente as vias respiratórias”, diz à Agência FAPESP Bruno Fernandes Matuck.
Antes do surgimento do SARS-CoV-2, outros poucos vírus, como o do herpes simples (HSV), o Epstein-Barr (EBV) e o citomegalovírus humano (HCMV) já tinham sido detectados em tecidos gengivais. As possíveis fontes de infecção podem ser as células epiteliais da gengiva, expostas à cavidade oral, e a migração desses vírus pela corrente sanguínea.
Em razão da alta infecciosidade do SARS-CoV-2 em comparação com outros vírus respiratórios, os pesquisadores levantaram a hipótese de que o novo coronavírus poderia se replicar na cavidade bucal e, dessa forma, aparecer na saliva.
A fim de testar essa hipótese, eles mapearam componentes da cavidade bucal que contribuem com a composição da saliva. Entre eles, as glândulas salivares, o tecido periodontal e células do trato respiratório superior.
“A ideia foi procurar dentro desses três componentes o que estaria contribuindo para a saliva de pacientes com COVID-19 apresentar uma carga viral tão alta”, explica Matuck.
Por meio de um sistema de endoscópio por vídeo, acoplado a um smartphone, foi possível localizar e extrair, utilizando pinças, amostras desses tecidos e também das papilas gustativas e do epitélio respiratório de, inicialmente, sete pacientes mortos por COVID-19, com idade média de 47 anos.
As análises das amostras indicaram a presença do SARS-CoV-2 no tecido periodontal de cinco dos sete pacientes até 24 dias após a manifestação dos primeiros sintomas da infecção em alguns casos.
“Esses achados mostram que o tecido periodontal parece ser um alvo do SARS-CoV-2, podendo contribuir, por muito tempo, para a presença do vírus em amostras de saliva”, afirma Matuck.
Os pesquisadores ponderam que a infecção do tecido periodontal pelo SARS-CoV-2 e a presença do vírus na saliva por longo tempo não significa que as partículas do RNA viral sejam infecciosas por todo esse tempo.
“Outros estudos demonstraram que a capacidade de contágio do vírus diminui ao longo do tempo e atinge o pico em 15 dias”, diz Luiz Fernando Ferraz da Silva , professor da FM-USP e coordenador do estudo.
Periodontite e COVID-19
A detecção do SARS-CoV-2 na gengiva também corrobora a hipótese de que a inflamação do tecido gengival (periodontite) aumenta o risco de apresentar quadros graves de COVID-19, avaliam os pesquisadores.
Isso porque pessoas com periodontite têm maior secreção do fluido gengival que compõe a saliva. Além disso, comorbidades como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e síndrome metabólica, fatores que podem contribuir para um pior prognóstico de COVID-19, estão altamente associadas à doença periodontal.
“Uma vez que o SARS-CoV-2 infecta o tecido periodontal, a maior secreção de fluido gengival eleva a carga do vírus na saliva”, afirma Matuck.
O estudo também confirma a acurácia de testes de COVID-19 pela saliva, como o desenvolvido no Brasil pelo Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco ( CEGH-CEL ) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão ( CEPID ) financiado pela FAPESP (leia mais emagencia.fapesp.br/34718/).
“Da mesma forma que o exame de RT-PCR é importante porque detecta o vírus em secreções nasofaríngeas, o SARS-CoV-2 também pode ser detectado com muita precisão na saliva porque há carga viral sustentada nesse fluido em pacientes infectados”, afirma Silva.
Os pesquisadores pretendem analisar, agora, a carga viral de SARS-CoV-2 no tecido periodontal de pessoas com COVID-19 assintomáticas ou com sintomas leves da doença para avaliar se a resposta nessas células é diferente em comparação com as de pacientes em estado grave.
Atualmente, eles estão estudando os receptores de entrada do SARS-CoV-2 na cavidade bucal.
Já se sabe que a presença do vírus na boca pode ter diferentes origens. O SARS-CoV-2 infecta as células usando o receptor da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE-2) como entrada. Esse receptor pode ser encontrado em vários locais na boca, como na língua, em células epiteliais ductais das glândulas salivares e no tecido periodontal. O receptor ACE-2 também foi expresso no ligamento gengival e periodontal em fibroblastos humanos.
“Estamos tentando identificar esses receptores no tecido periodontal, nas papilas gustativas e nas glândulas salivares, para entender como ocorre a entrada do vírus na cavidade oral e verificar se isso tem relação com a perda de paladar, um dos principais sintomas da COVID-19”, diz Matuck.
O artigo Periodontal tissues are targets for SARS-Cov-2: a post-mortem study (DOI: 10.1080/20002297.2020.1848135), de Bruno Fernandes Matuck, Marisa Dolhnikoff, Gilvan V. A. Maia, Daniel Isaac Sendyk, Amanda Zarpellon, Sara Costa Gomes, Amaro Nunes Duarte-Neto, João Renato Rebello Pinho, Michele Soares Gomes-Gouvêa, Suzana C.O. M. Sousa, Thais Mauad, Paulo Hilário do Nascimento Saldiva, Paulo H. Braz-Silva e Luiz Fernando Ferraz da Silva, pode ser lido no Journal of Oral Microbiology.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.