Por que a África tem menos mortes registradas por coronavírus?
Região da África Subsaariana tem poucas mortes e casos registrados, mesmo com a baixa vacinação, e especialistas de todo o mundo buscam pelas respostas
Laura Pancini
Publicado em 23 de março de 2022 às 11h07.
Última atualização em 23 de março de 2022 às 12h12.
A participante do Big Brother Brasil 20, Rafa Kalimann, só emitiu três palavras ao descobrir sobre a pandemia durante o ao vivo do programa, em março de 2020: "Amiga, a África", disse, preocupada. A frase virou meme depois de algum tempo, mas o assunto é sério: nos primeiros meses da pandemia, muito se falava sobre como o coronavírus poderia impactar a África, que conta com regiões com um sistema de saúde fragilizado, além da alta prevalência de doenças como malária, HIV e tuberculose.
O vírus da pandemia tinha tudo para causar milhares de mortes por lá, mas isso não aconteceu. A África do Sul sofreu com as ondas das cepas beta, delta e ômicron, mas o resto do continente não registrou números semelhantes de morte.
Qual seria o diferencial, especialmente na região da África Subsaariana? A baixa taxa de infecções, hospitalizações e mortes vêm gerando debates entre especialistas. Seria a falta de registros, presença de outras doenças, estilo de vida diferente ou nenhuma das opções? Entenda a situação do país e o que dizem os especialistas.
O vírus está lá?
Não há dúvida. Cerca de dois terços da população na maioria dos países subsaarianos têm os anticorpos para SARS-CoV-2, vírus original que causa a covid, de acordo com estudos que testaram amostras de sangue.
Somente 14% da população recebeu a vacina contra a doença, então os anticorpos predominantes são os da infecção.
Uma nova análise liderada pela OMS, ainda não revisada por pares, juntou pesquisas de todo o continente e descobriu que 65% dos africanos haviam sido infectados até o terceiro trimestre de 2021, taxa superior à de muitas partes do mundo.
Quando tais dados foram coletados, apenas 4% dos africanos haviam sido vacinados.
Então o vírus está na África, mas está matando menos pessoas? Por quê?
É o que parece. Há muita especulação em volta da idade média dos africanos, que são muito jovens. Enquanto a Europa tem idade média de 43, a África tem de 19. Somente na região subsaariana, quase dois terços da população têm menos de 25 anos e somente 3% têm mais que 65.
Isso significa que muito menos pessoas, comparativamente, viveram o suficiente para desenvolver problemas de saúde que podem aumentar drasticamente o risco de doenças graves e morte por covid.
As altas temperaturas, mais tempo ao ar livre, baixa densidade populacional e transporte público limitado são outras hipóteses que tentam explicar a baixa propagação do vírus. A exposição a outros patógenos, como febre de Lassa e Ebola, podem ter oferecido proteção.
Mas a experiência em países como a Índia, por exemplo, que também conta com uma população jovem (28 anos) e taxas de infecção alta por malária e outros tipos de coronavírus, tornam tais teorias mais difíceis de aceitar. O país teve milhões de mortes após uma onda da variante delta em 2021.
E se as mortes não estão sendo contabilizadas?
Muitos dados indicam que sim, mas especialistas da região discordam. Um projeto de pesquisa da Universidade de Njala, em Serra Leoa, descobriu que 78% das pessoas têm anticorpos para o coronavírus original. No entanto, Serra Leoa registrou apenas 125 mortes por covid desde o início da pandemia.
Por quê? Pode ser porque em Serra Leoa, assim como em outras regiões, a maioria das pessoas morre em suas casas, não em hospitais, seja porque não podem chegar a um centro médico, seja porque suas famílias os levam para casa para morrer. Muitas mortes nunca são registradas.
O único país subsaariano onde quase todas as mortes são contadas é a África do Sul e, mesmo assim, fica evidente que o coronavírus matou mais do que foi registrado pelas entidades oficiais. Entre maio de 2020 e setembro de 2021, cerca de 250 mil mortes naturais a mais foram registradas do que o previsto com base em dados dos anos anteriores, sugerindo que a covid-19 é o verdadeiro culpado.
A The Economist, que acompanha o excesso de mortes ao longo da pandemia, mostra taxas semelhantes de mortalidade em toda a África. Sondre Solstad, que dirige o modelo africano, disse que houve entre 1 milhão e 2,9 milhões de mortes a mais no continente durante a pandemia.
Mas muitos cientistas que acompanham a pandemia diretamente da região discordam. “Não vimos enterros em massa na África. Se isso tivesse acontecido, teríamos visto”, disse Thierno Baldé, que dirige a Covid emergency response da OMS na África.
Dr. Abdhalah Ziraba, epidemiologista do Centro Africano de Pesquisa em População e Saúde em Nairóbi, Quênia, leva em consideração o contexto cultural e social do continente: “ Uma morte na África nunca passa despercebida, por mais que sejamos ruins em manter registros. Há um funeral, um anúncio. Um enterro nunca é feito em uma semana porque é um grande evento. Podemos não ter os números precisos, mas a percepção é palpável. Na mídia, no seu círculo social, você sabe se há mortes.”
O que poderia estar mantendo a taxa de mortalidade baixa?
Para o Dr. Salim Abdool Karim, que faz parte da força-tarefa do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) da África, é evidente que uma boa parte da população não foi ao hospital mesmo com sintomas da doença, o que afeta os números oficiais.
A população jovem é claramente um fator-chave, disse ele, enquanto algumas pessoas mais velhas que morrem de derrames e outras causas induzidas por covid não estão sendo identificadas como mortes por coronavírus.
Mesmo assim, as regiões da África não estão adoecendo tanto quanto outros lugares, mesmo com a baixa vacinação, o que ainda é um mistério que precisa ser desvendado.
No momento, há um debate sobre completar o esquema vacinal dos africanos subsaarianos contra o coronavírus. Enquanto alguns acreditam que o foco precisa ser nos imunossuprimidos da região, outros alertam sobre a possibilidade de novas variantes surgirem—e, neste caso, uma que não vai poupar a população sem acesso à vacina.
“Não podemos ficar complacentes e presumir que a África não pode seguir o caminho da Índia”, disse um especialista.
(Com informações de New York Times )