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Todas as batalhas de Prince

Foram dois os choques que os fãs de música enfrentaram naquela quinta-feira, no último dia 21 de abril. O primeiro foi a confirmação da notícia que o músico Prince havia sido encontrado morto em sua casa-estúdio na cidade de Minneapolis, no estado norte-americano de Minnesota. Era algo totalmente inesperado, considerando a um artista de 57 […]

PRINCE: só teve uma coisa que ele fez com mais competência do que música: enfrentar a indústria fonográfica  / GettyImages

PRINCE: só teve uma coisa que ele fez com mais competência do que música: enfrentar a indústria fonográfica / GettyImages

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Da Redação

Publicado em 13 de maio de 2016 às 21h07.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h09.

Foram dois os choques que os fãs de música enfrentaram naquela quinta-feira, no último dia 21 de abril. O primeiro foi a confirmação da notícia que o músico Prince havia sido encontrado morto em sua casa-estúdio na cidade de Minneapolis, no estado norte-americano de Minnesota. Era algo totalmente inesperado, considerando a um artista de 57 anos cuja vida privada era mantida completamente fora dos holofotes – algo raro neste século. O segundo choque veio já no período imediatamente seguinte à morte, entre análises e homenagens: Prince não estava na internet. A oferta de sua música era pouca e ruim. Seus discos haviam sido retirados dos principais serviços de streaming, como o Spotify e o Apple Music, e era pouco o que estava no YouTube.

Para quem tinha mais de trinta e cinco anos e lembrava da dimensão que Prince teve na década de 1980, foi difícil entender que, por causa dessa ausência, a importância da música dele para as gerações seguintes era pouca ou nenhuma. Álbuns primordiais para entender a música negra produzida no século 20, como Sign O’ The Times (1987) e Graffiti Bridge (1990), continuam importantes como sempre foram, mas estão perdidos nas prateleiras das lojas de discos que sobraram ou nas coleções de pais e irmãos mais velhos. Foi o próprio Prince, alguns anos atrás, quem tirou quase tudo seu da rede, em busca de garantir direitos e controle, duas de suas obsessões. Quase, porque o artista fez um acordo com o Tidal, serviço de streaming criado pelo rapper Jay-Z, para disponibilizar oficialmente um pequeno pedaço de sua obra, e algumas coisas já podem ser encontradas no YouTube. Muito pouco diante do tamanho monumental de seu legado.

Mais do que suas músicas, as brigas que Prince comprou ao longo da vida explicam a evolução da relação entre a indústria da música e seus artistas nas últimas quatro décadas. As causas, sempre nobres, envolveram manter a liberdade artística, ser dono de suas gravações, e, claro, ganhar mais pelo seu trabalho. Como músico, Prince Rogers Nelson foi um ativo homem de negócios que cuidou com empenho de uma marca valiosíssima: ele mesmo. Como nos discos do músico, algumas apostas do homem de negócios deram resultados brilhantes, outras nem tanto – a decisão de tirar sua obra da internet foi um óbvio exemplo de movimento errado.

Perdido no mundo digital

Pioneiro no uso da internet nos anos 1990, especialmente em busca de interatividade e de interlocução direta com os fãs, Prince decretou a morte do meio digital como negócio em uma entrevista em 2010. Segundo ele, não havia meios para um artista ganhar dinheiro na rede. “Não pode estar acabada uma coisa que ainda nem começou a dar dinheiro para o artista. A remuneração é bem baixa, inferior à do disco físico, para quase todo mundo, e os artistas não sabem como ganhar dinheiro com a internet, mas alguns empresários já descobriram como”, avalia o jornalista e escritor Arthur Dapieve. Para ele, o legado de Prince como artista corre risco. “É como Maradona ser votado como maior jogador de futebol de todos os tempos em enquete pela internet. Há muito mais imagens disponíveis dele do que do Pelé e do Garrincha, obviamente muito melhores. Se as gravações não se fizerem disponíveis, ele será um artista cult, o que é pouco para o Prince”, diz.

Como boa parte dos músicos que nasceram nos anos de soberba da indústria e foram obrigados a repensar seu modelo de negócios na era digital, Prince passou seus últimos anos buscando respostas para a questão que pontuou sua vida: como criar, distribuir, vender e ser dono da própria música. Em julho de 2007, em um movimento arriscado, decidiu distribuir gratuitamente seu disco Planet Earth na Inglaterra, que sairia antes do resto do mundo encartado na edição de domingo de um tabloide local. O jornal vendeu três milhões de exemplares naquele domingo, 600.000 a mais que a tiragem regular. Vários artistas ligaram para a redação se oferecendo para lançarem os discos seguintes no mesmo modelo. Não por acaso, três meses depois a banda inglesa Radiohead fez história ao liberar o download de seu disco In Rainbows no esquema pague-quanto-quiser (inclusive nada).

O movimento é fácil de contextualizar. No momento em que a indústria fonográfica, dependente da venda de discos, começou a se desintegrar, alguns artistas resolveram pensar em saídas para o negócio da música. Foi o caso do Prince, do Radiohead e de David Byrne, ex-líder do Talking Heads, que escreveu um belo tratado sobre o assunto intitulado “Como Funciona a Música” (Amarilys, 2014). A primeira mudança de approach se deu na compreensão do que vende um artista. Gravadora vende disco, artista vende conteúdo. Se o produto físico não vendia mais, o desafio era encontrar como vender a música por outros meios, ao vivo em performances, nos shows, nos serviços do streaming, nos comerciais de TV on demand ou em algum lugar que não havia sido inventado até aquela data. Até porque bastava olhar em volta para constatar que, se as pessoas haviam parado de comprar discos, elas nunca pararam de ouvir música.

Vai enganar-se, porém, quem quiser identificar uma postura progressista nesse movimento. Prince deu seus discos aos leitores de um jornal por conta de um acordo, mas nunca pensou que, por estarmos na era da internet, sua música deveria ser disponibilizada de graça. Prince brigou ao longo da vida com a indústria, mas esteve longe de ser um antagonista dela. Vencedor de sete Grammys e de um Oscar, com 40 milhões de discos vendidos só nos Estados Unidos segundo a Recording Association of America, protagonista do disputadíssimo intervalo da final do Superbowl em 2007, Prince não era Kurt Cobain. Sua briga, como homem de negócios, era principalmente para que dessem o devido valor ao seu produto.

De prodígio a escravo

A ausência de sua música na internet acabou sendo o epílogo de uma guerra que começou junto com a sua carreira na música. Prince assinou seu primeiro contrato com a multinacional Warner aos 18 anos, em 1977, já como um prodígio. Ele tocou todos os instrumentos em seu álbum de estreia, For You, lançado em 1978. Curiosamente, ele lançou um disco por ano até 1981, colecionando algumas boas canções, mas nenhum sucesso estrondoso. A partir de 1982, com 1999, e especialmente dois anos depois, com Purple Rain, Prince carimbou o passaporte de entrada no hall de grandes artistas da gravadora. Símbolo daquele momento na historia da música, que privilegiava a imagem por causa dos videoclipes, que trouxe uma moda de gosto duvidoso (capítulo fundamental na construção de Prince) e que privilegiava a imagem do artista como aquele ser intocável e extravagante. Prince era perfeito para o papel. De quebra, nem era um requisito obrigatório naquele momento, mas ele ainda tinha um extraordinário talento musical.

Pouco depois, um contrato de sete discos se transformaria em um conflito que rendeu discos ruins, a mudança de seu nome para um símbolo e acusações de parte a parte. A questão, no caso dele, sempre disse mais respeito à propriedade do que propriamente ao dinheiro. Menos por quanto estavam comprando o trabalho dele, ainda que isso também importasse, e mais o que estavam levando nesta compra.

O fato de Prince ser seu nome de batismo e a Warner ter direito a qualquer coisa que fosse produzida sob aquela assinatura tinha um peso simbólico forte, o que o fez mudar para um símbolo impronunciável. Escreveu ‘escravo” no rosto e tornou pública a sua disputa contra os executivos da gravadora. Um artista daquele tamanho jogando luz sobre as relações de forma sóbria e esclarecida abriu uma nova perspectiva para os músicos. É fato que a liberdade artística nem sempre resultou nos melhores discos de Prince.

Uma vez libertado, ao longo dos últimos vinte anos, Prince lançou obras excelentes, como 3121 (2006), e discos quádruplos que careciam claramente de um editor ou de um amigo sincero, como Crystal Ball (1998). Mais importante, nunca conseguiu repetir a excelência de seus primeiros anos na Warner. “Quando ele morreu, me toquei que não o ouvia de verdade desde o século passado. E olha que foi neste século que passei a escutar música negra de verdade. Ou seja, eu deveria tê-lo ouvido mais, não menos, mas o próprio Prince optou por uma espécie de obscuridade independente”, lembra Arthur Dapieve.

Entender a dimensão da briga de Prince com a Warner é, primeiro, entender a importância de uma gravadora como a Warner para um artista em ascensão nos anos 1970. O que remete a quão recente é a música gravada como produto – seu primeiro registro é de 1878. Ao longo de seu primeiro século, a tecnologia moldou a maneira de comercializá-la, enquanto o comércio moldou a maneira como a ouvimos. A capacidade de gravação dos discos influenciou criadores e ouvintes. “[O filósofo alemão Theodor] Adorno sugere que nossa capacidade de atenção musical foi restringida em função da duração limitada das gravações”, escreveu Byrne em “Como Funciona a Música”. Nesse caminho, a segunda metade do século 20 viu o mercado ser dominado por cinco gravadoras multinacionais. Quem queria fazer carreira na música precisava entrar em uma delas, e a Warner Bros. era a maior. Em 1976, dois anos antes do disco de estreia de Prince, ela era dona de 25% do mercado norte-americano.

Um turista muito estranho

André Midani foi um dos principais executivos da indústria do disco no Brasil e passou pela matriz da Warner nos anos setenta. Em sua autobiografia lançada em 2008, “Música, ídolos e poder” (Nova Fronteira), ele relata o conflito entre gravadora e Prince visto do outro lado do balcão. “Depois de dias de negociações entre as partes, foi finalmente assinado um contrato com adiantamentos excessivos, que somavam 40 milhões de dólares, para a gravação de sete discos. Quando, nas semanas seguintes, Prince entregou o primeiro disco do contrato, era evidente que, apesar de ser uma obra excelente, nunca venderia o suficiente para cobrir o adiantamento que lhe cabia. Os nossos advogados, então, mandaram Prince de volta ao estúdio, exigindo que produzisse várias questões no estilo de ‘Purple Rain’. Prince, recusando qualquer intromissão em seu trabalho criativo, convocou a famosa entrevista coletiva, onde apareceu com a palavra ‘escravo’ escrita na bochecha, denunciando publicamente a perversidade do contrato e da nova relação com a companhia.” Segundo Midani, Prince foi um dos responsáveis pela Warner ter perdido 13% de participação no mercado do disco em poucos anos. A divisão musical da companhia, que valia mais de 6 bilhões de dólares nos anos 1980, foi vendida em 2003 para o investidor Edgar Bronfman por 2,6 bilhões.

Midani foi uma das raras pessoas que teve real intimidade com o estranho mundo de Prince. Foi ele quem literalmente tirou o artista de dentro da primeira classe do avião da Varig que o trouxe ao Brasil para dois shows no segundo Rock in Rio, em janeiro de 1991. Em sua única vinda ao Brasil, Prince recebeu o cachê mais alto do festival, 1,5 milhão de dólares por duas apresentações – o Guns ‘N Roses, que vinha debutar mundialmente as canções dos dois volumes do disco Use Your Ilusion, cobrou 500.000 dólares. Midani lembra do fascínio de Prince por uma capa da Playboy brasileira e de uma festa fechada na boate Hippopotamus, de Ricardo Amaral. Em uma entrevista em 2008, quando perguntei qual era a lembrança que Amaral tinha daquela noite, ele definiu Prince e seus convidados como “uma gente desinteressante”. Os dois teriam se desentendido por uma conta de 230 dólares.

(Segundo o relato do jornalista Luiz Felipe Carneiro em seu livro “Rock in Rio – A história do maior festival de música do mundo”, lançado pela Editora Globo em 2011, o artista definitivamente deixou pouca saudade em que lidou com ele por aqui. Seu camarim teve de ser pintado na cor púrpura. Setenta seguranças tinham que guardar os duzentos metros entre o camarim e o palco do Maracanã. Quem passasse por ele deveria virar de costas – dizem que o fato dele ter chegado ao estádio na primeira noite com bobs nos cabelos teve algo a ver com isso. Prince ainda circulou por boates cariocas com seguranças que não faziam questão de esconder as armas que carregavam.)

Prince voltaria ao Rio como a principal atração do festival Back2Black, em 2011, mas cancelou a vinda quatro dias antes do show. A principal revelação depois de sua morte veio da TV estatal inglesa BBC, que informou que foram encontradas cerca de 2.000 canções inéditas de Prince em sua fortaleza. Ou seja, seu legado deveria estar garantido. Mas quando e se poderemos ouvi-las, diante de todas as dificuldades legais que envolvem seu nome, é impossível saber. É possível que, nos próximos anos, Prince seja mais lembrado pelas atividades fora do palco do que pela música. Afinal, ele gastou boa parte de seu tempo e prestígio lutando por um ambiente que beneficie quem realmente importa nesse negócio: o artista.

Se o seu exemplo ajudar próximas gerações a discutirem a sério sucesso, indústria, racismo, exposição, ego, criação e afins, ótimo. Sempre que um artista estiver brigando por seus direitos, pela propriedade da sua obra, pela liberdade da sua criação e pelo dinheiro que acha que merece pelo seu trabalho, de alguma forma Prince estará sendo lembrado.

(Jardel Sebba)

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