A engenharia do muro
Para que pedreiro, se temos o vice-presidente de edificações?
Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h32.
Até pouco tempo atrás, as empresas nem precisavam de organograma para mostrar quem fazia o quê, porque o próprio nome da função já explicava tudo: chefe da contabilidade, supervisor do depósito, encarregado da oficina. Diretores, existiam poucos e eram figuras quase mitológicas. Vice-presidente, então, era uma abstração que nem passava pela cabeça do mais criativo dos burocratas.
Mas as coisas mudaram. E a história a seguir é verdadeira, como jura de pés juntos o leitor, o Claudinei, que a relatou. O fato se deu há cinco anos, quando a economia andava cheia de gás e os organogramas, no auge do inchaço. A empresa do Claudinei -- na época com 3 000 funcionários -- resolveu construir um muro nos fundos de uma de suas fábricas, em Goiás, para substituir uma cerca já meio enferrujada. Muro simplezinho, coisa assim de 20 metros lineares. Mas a empresa era altamente centralizadora, e o gerente da fábrica fez o que lhe competia fazer: chamou o pedreiro-mor da cidade, o Altair, pediu uma lista de materiais e emitiu uma ordem de serviço para aprovação da matriz.
Era na matriz que o Claudinei trabalhava, integrando o quadro da vice-presidência de engenharia. E o chefe designou o Claudinei, então engenheiro assistente, para assistir à construção do muro. Só para, como o chefe explicou, certificar-se de que tudo seria feito em conformidade com os padrões vigentes.
-- Que padrões? -- perguntou surpreso o Claudinei.
E aí recebeu das mãos do chefe um encorpado "Manual de Edificações Civis", cujo capítulo 12 dizia respeito às "Obras Externas Divisórias Permanentes". Em português, o muro.
O Claudinei foi para Goiás e abriu o manual. Primeira cláusula: a construção tinha de ser feita por empresa idônea, que não estivesse sendo, nem tivesse sido, alvo de processo judicial, com registros em alguns órgãos lá especificados e em dia com o recolhimento de impostos. O que, de cara, já eliminava a possibilidade de que o muro fosse levantado pelo Altair, o diligente pedreiro, que nem talão de cheques tinha.
O Claudinei conseguiu localizar numa cidade vizinha uma construtora que preenchia todos os requisitos especificados no manual. Os documentos atestando que a empresa era mesmo tudo aquilo que as normas demandavam foram conseguidos no exíguo prazo de dez dias, graças à intervenção de um despachante que cobrou uma nada sutil taxa de urgência para apressar os trâmites.
A construtora chegou pronta para trabalhar, mas aí o Claudinei abriu de novo o manual. E descobriu que a compra dos materiais teria de ser feita pela vice-presidência de suprimentos, na matriz. O Claudinei ligou dizendo "Gente, é só tijolo, cimento e areia, pode deixar que eu mesmo compro tudo por aqui". Santa inocência. Eram necessários três orçamentos, mas, para isso, o Claudinei teria de remeter a especificação detalhada dos materiais. Porque areia não é tudo igual: varia a umidade, a granulometria e mais uma série de quesitos arenosos. E tijolo, então? Havia vinte tipos diferentes de tijolo no mercado!
O Claudinei despachou as especificações e a requisição de compras, e passou uma semana fazendo follow-up. Finalmente, alguém enviou um fax para o Claudinei dizendo que, dado o baixo preço dos materiais e o alto custo dos fretes, a vice-presidência de logística havia concluído que a alternativa mais econômica seria o Claudinei comprar tudo ali mesmo, na própria cidade.
Tudo certo, o Claudinei confere de novo o manual e descobre que é preciso assinar um contrato com a construtora, em que ela garantiria uma vida útil mínima de 20 anos para o muro. Caso o muro apresentasse problemas antes disso -- tipo rachaduras ou desabamento --, a multa seria de duas vezes o valor da construção, corrigido por uma média ponderada de índices financeiros. A construtora mandou então um advogado discutir a cláusula com o Claudinei. Que, não sendo versado em direito, envolveu a vice-presidência jurídica da empresa na discussão. A qual, imediatamente, despachou para Goiás um causídico de reconhecidos dotes técnicos e comprovadas habilidades negociais.
A história continua, é claro, e vai longe. Mas, um dia, finalmente, o muro ficou pronto. O Claudinei prontamente preencheu um relatório padronizado, mostrando que, computados todos os gastos indiretos, o custo por metro linear de muro tinha sido de 14 268,49 reais. E a ciosa vice-presidência de auditoria rapidamente emitiu um parecer questionando o valor -- não do muro, mas de algumas refeições do Claudinei, cujos totais estavam acima do estipulado na Norma de Alimentação.
Três anos depois, bate a crise. As vice-presidências são extintas e inúmeros departamentos, pulverizados. Dos 3 000 funcionários, resta menos da metade. A coisa não anda nada boa por lá, diz o Claudinei, mas há sintomas positivos: agora, se for preciso remendar o muro, o gerente da fábrica já está autorizado a ligar para o Altair, e não se fala mais nisso.
Convencer uma empresa aparentemente saudável que ela está com excesso de gordura não é fácil. Porque isso sempre esbarra no prazer, que qualquer executivo tem, de ostentar um título vistoso no cartão de visita. Mais que as necessidades estruturais, é a vaidade individual que cria organizações inchadas. Eu garimpei a internet e achei uma historinha exemplar sobre isso. Ela conta o caso de um executivo que é promovido a uma vice-presidência na empresa em que trabalha. E o título imediatamente lhe sobe à cabeça. A qualquer hora e em qualquer assunto, ele sempre dá um jeito de encaixar uma referência à sua monumental conquista. A coisa prossegue sem trégua por uma semana inteira, até que, finalmente, a paciência da mulher do executivo se esgota:
-- Inácio, vê se pára com essa frescura! O que há de mais em ser vice-presidente? Até o supermercado ali da esquina tem um vice-presidente na seção de ervilhas!
O Inácio não acredita na história da mulher, mas, por via das dúvidas, decide ligar para o supermercado:
-- Alô? Posso falar com o vice-presidente de ervilhas?
-- Enlatadas ou congeladas?