Público ou privado? A queda de braço que trava o saneamento no Brasil
Para universalizar o acesso ao saneamento até 2033, Brasil teria que investir cerca de 22 bilhões de reais por ano, mas investe, em média, 13 bilhões
Da Redação
Publicado em 29 de junho de 2019 às 08h30.
Última atualização em 29 de junho de 2019 às 11h20.
Uma parte da população brasileira vive em condições medievais, pelo menos no que tange ao acesso a saneamento básico. Considerando os dados mais recentes de 2017 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), somente 83,5% da população tem abastecimento de água potável e 52,4% tem coleta de esgoto. Dessa porcentagem de esgoto que é coletado, somente 73,7% é tratado no país. As regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul tem os melhores indicadores, enquanto Norte e Nordeste apresentam números abaixo da média nacional.
Em uma tentativa de universalizar o serviço por meio de revisão da legislação federal, o Senado brasileiro aprovou no último dia seis de junho, em caráter de urgência, o Projeto de Lei (PL 3.261), apresentado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB), que atualiza o marco legal do saneamento de 2007. Agora o texto aguarda aprovação da Câmara dos Deputados antes de entrar em vigor.
O PL é a mais nova tentativa do governo federal de resolver a questão sanitária. Em 2018, o então presidente Michel Temer, editou a Medida Provisória 844, que previa a obrigatoriedade de licitação por parte dos municípios para contratação de obras de água e esgoto. O texto também determinava que a Agência Nacional de Águas (ANA) passaria a regulamentar os serviços públicos de saneamento básico. A oposição criticou a medida, temendo que houvesse uma privatização massiva do saneamento, e a MP caducou por não ser apreciada dentro do prazo pelo Congresso.
Antes de deixar o cargo, no dia 28 de dezembro, Temer apresentou uma nova MP, a 868, que basicamente retomava o texto anterior. O senador Jereissati, designado para ser o relator da medida, quando percebeu que o texto iria perder a validade no dia 3 de junho, apresentou o PL, que é formado, em sua essência, pelo relatório do parlamentar sobre a MP 868. Na votação no Senado, contudo, algumas alterações foram feitas por meio de emendas ao texto.
Abertura para iniciativa privada
O principal mudança sugerida pelo PL apresentado por Tasso Jereissati, assim como as duas MP editadas anteriormente, é abrir o setor do saneamento básico para a iniciativa privada. Hoje, no Brasil, empresas públicas dominam 94% do segmento e atendem a 91% da população, segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) de 2018.
A ideia de atrair a iniciativa privada para o setor vem da percepção de que as empresas públicas não terão condições de investir o necessário para cumprir as metas estabelecidas no Plano Nacional de Saneamento Básico, que estipula que até 2023 100% do território seja abastecido com água potável e que até 2033 92% do esgoto brasileiro seja tratado. De acordo com a CNI, o Brasil teria que investir cerca de 22 bilhões de reais por ano se quiser atingir as metas no tempo ideal. Entre 2010 e 2017, o país investiu, em média, no entanto, 13,6 bilhões de reais anualmente.
“O Brasil está discutindo uma infraestrutura que deveria estar pronta há décadas. Só que os estados não têm recursos pra investir na universalização. Precisamos atrair gente nova para o setor para tentar resolver o problema”, afirma Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil, organização não governamental (ONG) fundada em 2007 para defender a importância do saneamento básico no país. Se o Brasil conseguir atingir 100% da população com serviços de água e esgoto, as economias com saúde chegariam a 1,45 bilhão de reais ao ano, segundo estimativa de 2017 do Instituto.
O PL aprovado no Senado propõe que os municípios brasileiros possam estabelecer contratos de concessão com companhias privadas para o saneamento, que hoje, de modo geral, está sob cuidado das companhias públicas estaduais, que assinam contratos de programa com os municípios. O projeto determina também a abertura de licitação nas prefeituras, assim as companhias privadas e públicas teriam que competir pelo serviço, acabando com o direito de preferência das empresas estaduais.
Mas algumas alterações no texto no momento de sua aprovação podem atrapalhar a eficiência prometida. O projeto estendeu aos municípios a opção de prorrogar os contratos com as empresas estaduais por até 35 anos. Seriam cinco anos para a regularização dos contratos e 30 anos para amortizar os investimentos feitos pelas empresas. “Essa alteração cristaliza a participação das companhias estaduais, que atendem a 72% da população”, diz Joísa Dutra, diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV/CERI). “O projeto deveria estabelecer que não existe um direito inquestionável e perpétuo das empresas estaduais prestarem o serviço”.
Édison Carlos concorda e afirma que se a Câmara dos Deputados não fizer nenhuma alteração, o PL “vai mudar muito pouco a realidade do saneamento”. Para ele, no Brasil há boas empresas públicas e privadas. “O ideal seria ter um texto que promovesse uma maior parceria, uma maior participação entre os dois [setores], mas o projeto que saiu do Senado não promove isso”, diz o presidente da Trata Brasil.
Caso a Câmara mantenha a prorrogação dos contratos, Percy Soares Neto, diretor executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, defende que haja pelo menos uma obrigação de que as empresas públicas tenham que fazer parcerias com os operadores privados. “Existe apetite para investimento em saneamento no setor privado. Seria importante que as empresas públicas não ficassem com seu mercado atual, que deixa muita gente sem serviço, sem ter que fazer parcerias para aumentar o investimento”, argumenta.
Problemas do setor privado
As medidas editadas por Temer eram muito questionadas no Congresso por um medo de que a liberdade para que cada município fechasse seus próprios contratos acabasse com o modelo atual em que as companhias estaduais compensam suas perdas em cidades deficitárias com o lucro de outros municípios. Ou seja: cidades menores poderiam ser ignoradas pela iniciativa privada, continuando à míngua. Em resposta a essa problemática, o PL estabelece que as empresas privadas tenham que prestar o serviço para um bloco de cidades. Caberia aos estados definir o tamanho desses agrupamentos, que podem chegar, inclusive, à totalidade dos municípios do estado. A partir da aprovação da lei, os estados teriam três anos para criar os blocos.
Roberval Tavares de Souza, presidente da ABES (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), questiona a capacidade dos estados para agrupar os municípios. “Não sabemos se os blocos serão estabelecidos com a melhor qualificação técnica e econômica. Se não forem, talvez a licitação sobre para o estado, que não tem capacidade de investimento”, pontua.
É um dilema que faz com que Ana Lucia Britto, professora de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e coordenadora de Projetos do Observatório Nacional do Direito Humano à Água e ao Saneamento, defenda que os serviços se mantenham públicos. “É evidente que o setor privado tem interesse nas área mais rentáveis, gerenciando sistemas já existentes para a população com maior capacidade de pagamento, porque para eles o saneamento é um negócio, como outro”, afirma. Para ela, como o saneamento opera em sistema de monopólio, onde o usuário não pode escolher entre dois prestadores, a população fica a mercê dos preços operados pelas empresas, por isso o controle deveria ser estatal.
A professora ainda pontua que o caso brasileiro não seria diferente do de outras cidades mundo afora, como Berlim, Paris e Buenos Aires, que cederam os serviços para a iniciativa privada e depois voltaram atrás. “As razões da volta do serviço público foram: o aumento das tarifas, o descumprimento de contratos, e mesmo corrupção. O Brasil não tem tradição de controle do público sobre os interesses privados, ao contrário de países europeus. Assim, no médio prazo o retorno ao serviço público poderia acontecer também no Brasil”, afirma. “Nesse intervalo de tempo, a dívida do governo com a população sem acesso ao saneamento só aumentaria”.
Dificuldades nacionais
Resolver a questão sanitária no Brasil é ainda mais complexo por causa das enormes diferenças entre as regiões. Ainda que haja um consenso sobre a necessidade de mais investimento no setor para atingir a universalização da rede, a forma de usar o dinheiro é distinta em cada área. A situação do estado de São Paulo, onde a companhia estadual, a Sabesp, é responsável pela metade da população e conta com sócios privados na sua composição de capital, é bem distinta da do Acre, que é um estado pequeno, com população dispersa e onde muitas cidades têm acesso rodoviário difícil.
“Uma coisa é estar numa cidade do oeste paulista, que está em cima do Aquífero Guarani, onde você só precisa perfurar um poço para ter acesso a água de qualidade”, exemplifica Marcos Thadeu Abicalil, especialista sênior em água e saneamento do Banco Mundial. Para o pesquisador, o cenário muda de figura quando consideramos uma cidade no sertão de Pernambuco, onde chove pouco e os índices de evaporação são altos, e é preciso transportar água do rio São Francisco. “Esse serviço é muito caro. Talvez aí seja necessário ter uma composição do setor público e privado. A solução desses problemas é diferente, porque o problema é diferente”, afirma.
Outra disparidade entre as regiões surge da capacidade de investimento. No Brasil, grande parte do serviço de Saneamento é financiado pela tarifa, que cobre o custo da operação, manutenção e 85% do investimento. Os 15% restantes são cobertos pelo orçamento da União, dos estados ou dos municípios. Abicalil explica que muitas empresas do setor não têm capacidade para conseguir empréstimo para as expansões e o recurso orçamentário, muitas vezes, é escasso.
“O investimento hoje é muito concentrado em poucas empresas que têm que dar conta. Empresas de São Paulo, Minas Gerais e Paraná levam boa parte do recurso disponível para investimento em água, mas nenhuma empresa do Norte consegue financiar investimentos e acessar crédito”, comenta o pesquisador.
Segundo o SNIS, enquanto São Paulo, Paraná e Minas Gerais investiram, respectivamente, 4,03 bilhões, 901 milhões e 858 milhões de reais em saneamento em 2017, o Amapá investiu somente 2,4 milhões de reais e Alagoas, 42,9 milhões. “A situação fica desigual no brasil com aumento do déficit no Norte e Nordeste do país”, afirma Abicalil.
Ineficiência do serviço
Os números do SNIS de 2017 mostram também que no Brasil há 38,3% de perdas de água na distribuição. Na prática, 7 mil piscinas olímpicas de água limpa são perdidas todos os dias, o que resulta em uma perda de 11 bilhões de reais para o setor. O índice brasileiro de perda está acima do de países menos desenvolvidos, como Bangladesh (21,6%) e Uganda (33%).
A ineficiência no abastecimento não é preocupante só pela perda de grandes quantidades de água potável, mas também porque mina a capacidade das empresas de fazer investimento em áreas que precisam. “A eficiência é um problema do setor público e do privado. O monopólio de saneamento pode ser ruim nos dois modelos e só será bom se for regulado”, afirma Thadeu Abicalil.
Roberval de Souza, presidente da ABES, concorda também que o ponto chave de uma nova legislação seria trabalhar com a questão da eficiência do serviço prestado. “O problema desse PL é separar a discussão em público e privado”, afirma. “Precisamos de contratos com metas, controle de desempenho, prazos para cumprimento da universalização. Isso precisa ser uniformizado”.
Regulamentação
A legislação atual estabelece que os municípios têm que elaborar até 2020 planos de metas para o saneamento básico e mecanismos de regulação do serviço. Na realidade, em 2017, somente 42% tinham planos e regulamentação. “Atribui-se muitas responsabilidades desafiadoras para os municípios, mas maior parte não tem condição de fazer frente a isso”, diz Joísa Dutra, da FGV.
As Medidas Provisórias editadas por Temer pensavam em solucionar a questão estabelecendo que a Agência Nacional de Águas (ANA) seria responsável pelas diretrizes regulatórias a nível nacional, capacitando as agências regionais.
A demanda por uma centralização na regulamentação partiu das próprias empresas estatais. “As empresas estaduais reclamavam muito que tinham que se submeter a várias agências reguladoras ao mesmo tempo. Esse objetivo de criar normas através da ANA me parece muito positivo”, diz Édison Carlos, do Trata Brasil.
“O problema é que isso não pode ser feito por Projeto de Lei. É necessário um projeto específico para criar esses cargos na ANA, mas não significa que o projeto aprovado abra mão dessa tentativa de coerência regulatória”, explica Joísa.
Uma melhora na regulação e nos termos dos contratos de serviço pode ser a saída para estimular o setor e garantir que os preços e a qualidade do atendimento não irão piorar com o tempo. “Temos que melhorar a regulação para que o ganho de eficiência do setor seja compartilhado com uma melhora do serviço”, diz Abicalil, do Banco Mundial.
Para o especialista, ainda que o PL seja aprovado, é necessário que o setor faça uma discussão sobre como colocar em prática as mudanças feitas na legislação. “O Brasil precisa, além da ANA, criar mecanismos para modelar os contratos de concessão, para abertura de capital ou venda das estatais, e esse processo exige muito trabalho, envolve economia e engenharia com aspectos ambientais e legais. É algo que demora um ano para ser feito, e tem que ser bem pensado”, diz Abicalil.
Com a aprovação ou não do PL, o Brasil precisa continuar discutindo o avanço do saneamento básico. “O setor entrou na agenda econômica e política e isso é um mérito”, afirma Abicalil. É um debate primordial para fazer o país sair de vez da Idade Média quando o assunto é água e esgoto.