Por que o foro privilegiado virou um problema para o Brasil
Cerca de 20 mil cargos têm garantia de foro especial no Brasil - mas o Supremo Tribunal Federal não está equipado para cuidar de tantos casos
Talita Abrantes
Publicado em 26 de julho de 2016 às 10h17.
Última atualização em 1 de agosto de 2017 às 12h08.
São Paulo – Ao revelar detalhes sobre um intricado esquema de desvios de recursos públicos, a Operação Lava Jato também está colocando em xeque um dos pontos mais controversos do sistema jurídico brasileiro: o foro por prerrogativa de função, popularmente conhecido como "foro especial" ou "foro privilegiado".
Não é de hoje que esse instrumento jurídico é razão para polêmica — afinal, em um país cujo artigo 5º da Constituição assegura que todos são iguais perante a lei, soa estranho que para certos indivíduos sejam aplicadas regras diferentes.
Mas os avanços da Lava Jato e o consequente indiciamento de políticos desnudam um dos pontos mais problemáticos do sistema: o Supremo Tribunal Federal ( STF ) não está preparado ou tampouco tem capacidade para lidar com questões dessa natureza e volume.
A vocação natural do Supremo é guardar os princípios constitucionais. No entanto, com tantos casos de políticos suspeitos de corrupção, parte dessa função precisa ser posta de lado.
"O problema todo é que, se pegar a pauta, você verá que o Supremo está gastando mais sessões com matéria criminal quando deveria se ocupar com questões relativas à guarda da Constituição", afirma Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil.
Para se ter uma ideia, o julgamento do mensalão ocupou exatas 69 sessões do Supremo durante um ano e meio. Hoje, tramitam na mais alta corte do país 369 inquéritos e 102 ações penais contra políticos — um volume elevado para magistrados cuja missão principal é decidir sobre matérias à luz da Constituição.
Feito para não funcionar
"As ações do foro não são apenas mais um tipo de processo que eles têm que julgar. É um tipo diferente que exige um trabalho delicado e sofisticado que os ministros não estão acostumados", afirma Ivar Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números da FGV Direito Rio.
O especialista se refere ao trabalho de instrução do processo penal, pelo qual magistrados devem administrar a produção de provas. "É um trabalho muito diferente do que discutir teses sobre Direito Constitucional", diz.
Some-se a isso a elevada carga de trabalho da corte e terá um resultado óbvio: o Supremo leva, em média, 615 dias para acolher pedidos de inquérito e 1.237 dias para julgar ações penais, de acordo com levantamento do projeto Supremo em Números da FGV Direito Rio.
Para o ministro do STF Luís Roberto Barroso, é nesse descompasso entre volume de ações e ritmo de trabalho que reside uma das causas para a sensação de impunidade no meio político. Mas o motivo não é único.
Uma das principais deficiências do foro privilegiado é permitir que suspeitos manipulem a jurisdição do caso. Isso acontece quando um político com foro privilegiado renuncia ao cargo para se livrar do julgamento do STF.
Durante palestra no Fórum VEJA em maio, Barroso exemplificou isso supondo o caso de um governador que está sendo julgado pelo Supremo, mas que — no meio das investigações — deixa o cargo para se candidatar a deputado federal. "Como não é mais governador, o inquérito baixa para a primeira instância. Se ele se elege deputado, a competência sobe para o STF", disse.
Tempos depois, o mesmo político se afasta da Câmara para concorrer ao cargo de prefeito. Novamente, o STF para de julgar o caso. Às vésperas do julgamento, ele renuncia e o caso volta para o juiz de primeiro grau. "O sistema é feito para não funcionar", afirmou o ministro.
Desde 2001, quando o julgamento de ações penais no STF deixou de ser condicionado à autorização do Congresso, 59 casos contra políticos prescreveram.
Diante da experiência do julgamento do Mensalão e para mitigar esse problema, o Supremo mudou as regras dentro de casa. Desde junho de 2014, o regimento interno da corte define que o plenário julgue apenas casos relacionados ao presidente da República, vice-presidente, presidentes do Senado e Câmara dos Deputados, além dos ministros do STF e procurador-geral da República.
O julgamento das demais autoridades com prerrogativa de foro passaram a ser de competência das turmas do STF. Veja como funciona isso.
Ônus e bônus
O foro por prerrogativa de função foi instituído no Brasil a partir da Constituição de 1891. Naquele contexto, tinham foro apenas o presidente da República, ministros de Estado, ministros do STF e juízes. Foi com a Constituição de 1969 que o "benefício" foi estendido para deputados e senadores.
Hoje, segundo dados da força-tarefa da Lava Jato, 22 mil autoridades — entre políticos, militares e juristas — gozam da prerrogativa de foro por função.
Na teoria, o foro cumpre o objetivo de impedir abusos e dar algumas imunidades para tomadores de decisão, que sem isso ficariam sujeitos a ameaças políticas e funcionais. Evita, assim, ações que poderiam ser movidas de forma desproporcional apenas para intimidar quem fala em nome do povo.
"Se o sujeito recebe 1 milhão de votos para representar 1 milhão de pessoas no parlamento, ele tem que ter o mínimo de garantias", afirma Flávio de Leão Bastos, professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Quem detém o foro responde apenas a uma corte mais qualificada, constitucional, e que teria melhor visão para julgar indivíduos que ostentam cargos de autoridade.
"Ter seu caso remetido para a Suprema Corte tem seus ônus e seus bônus. O principal bônus é que as decisões no STF são tomadas por órgãos colegiados, ou seja, submetidas a escrutínio de vários julgadores. O ônus é não haver possibilidades recursais de reexame amplo", afirma Heloísa Estellita, professora de Direito Penal da FGV Direito de São Paulo.
Em outros termos, a partir do momento em que uma ação começa a transitar em julgado no STF não cabem mais recursos - ao contrário do que acontece nas outras instâncias.
Isso significa, por exemplo, que as sentenças proferidas pelo juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, não são a palavra final sobre determinado caso pois ainda cabem quatro ou cinco graus de recurso. Em contrapartida, a decisão dos ministros do STF é a última palavra sobre um processo.
"Colocar esses casos em primeiro grau não significa que eles irão tramitar mais rápido", afirma o juiz Paulo Blair, que também é professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília (UnB).
O que fazer, então?
Não há consenso entre juristas sobre a melhor solução para a questão do foro. Para alguns, o caminho é dar fim a esse instrumento sob a alegação de que é incompatível com o Estado democrático de direito. Para outros, extinguir o foro pode ter como efeito abusos e intimidações para quem está em cargos de autoridade.
Para resolver o impasse, o ministro Barroso propõe uma solução menos disruptiva. Ele sugere a criação de uma vara federal em Brasília (DF) especializada em julgar os casos de foro privilegiado. O juiz responsável por essas ações seria escolhido pelo Supremo Tribunal Federal e teria mandato de quatro anos.
Na prática, essa vara serviria como uma espécie de filtro para as decisões da mais alta corte do país. Com um juiz dedicado a julgar em primeira instância todas as denúncias contra políticos, caberia aos ministros do Supremo analisar apenas aqueles casos em que o condenado entrou com recurso.
O ponto cego dessa proposta, segundo Paulo Blair, da UnB, é que ela não considera a possível reincidência de alguns dos problemas hoje enfrentados pelo STF. "A ideia é linda no papel. Mas, na prática, a vara especializada se congestionaria muito rápido", afirma o especialista.
Outra solução seria reduzir o número de cargos com direito ao foro especial. "A Lei 8038/90, que organiza isso, foi feita logo depois da Constituição. Ninguém poderia supor na época o estado que nós estamos", diz Maurício Zanoide de Moraes, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
Na Itália, por exemplo, só o presidente da República deve ser julgado pela Corte Constitucional. Em outros países, como Portugal, a única restrição para processos contra políticos é condicionar o julgamento à uma autorização da parlamento. Nos Estados Unidos, todos políticos — incluindo presidente — são julgados pela justiça comum.
Independente da proposta apresentada, especialistas lembram que nenhuma reforma pode ser feita de maneira isolada. A restrição do foro ou mudanças na competência de julgamento deveriam vir acompanhadas de outras medidas para reformular a maneira como se faz política no Brasil. Em outros termos, não é o fim do foro que vai resolver o problema de honestidade da política brasileira.