Os números por trás da maior matança em cadeias desde Carandiru
Superlotação, falta de funcionários e péssimas condições de vida dentro das celas marcam o local da chacina
Da Redação
Publicado em 3 de janeiro de 2017 às 11h27.
Cenário do maior massacre no sistema prisional brasileiro desde o Carandiru, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM) mantinha presos em situação de superlotação e detentos doentes "em sofrimento psíquico", aponta relatório da Secretaria de Direitos Humanos (SDH).
254% superlotação
O local abrigava 1.147, sendo que a capacidade era de 450 detentos, uma superlotação de 254%, de acordo com o documento enviado PELA SDH ao Ministério Público Federal em janeiro de 2016, em visista em 9 de dezembro de 2015. A unidade era composta de quatro pavilhões com 110 celas coletivas e 25 pessoas por cela, em média.
No corredor destinado a presos com doenças infecciosas, "havia duas pessoas que pareciam estar em sofrimento psíquico", segundo o relatório.
"Esse corredor não tinha qualquer espaço para lazer ou banho de sol. Era bastante escuro, úmido e sujo. Foi possível notar muito lixo disperso no chão e escutamos relatos de que, apesar de solicitarem, a direção não disponibilizava vassouras, pás de lixo ou qualquer outro tipo de material de limpeza para os presos", diz o documento.
Inaugurado em 1999, o Compaj é administrado pela empresa Umanizzare, em um sistema de cogestão, desde 2014. A unidade é destinada apenas a presos em regime fechado. Neste modelo, o presídio é construído com verba pública e dirigido por agentes públicos, mas os serviços como vigilância e escolta interna são de responsabilidade da empresa.
40% déficit de funcionários
Na visita, apenas 153 funcionários estavam trabalhando, enquanto 250 estão previstos no contrato firmado pela Umanizzare, de acordo com a SDH. O déficit é de cerca de 40%.
O relatório aponta deficiências em quatro penitenciárias do Amazonas na formação e na remuneração da mão de obra, em torno de R$ 1.700, além de más condições de trabalho.
"Há uma alta rotatividade de funcionários pelas precárias condições de trabalho, o que favorece a ocorrência de tortura e maus tratos", diz o texto. Foram constatadas ainda falhas no atendimento de saúde.
A SDH ressaltou ainda a atuação de facções criminosas nas unidades prisionais masculinas do estado, sobretudo a Família do Norte (FDN) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) - ambas envolvidas no massacre, "o que gera um contexto de fortes disputas e tensionamentos entre grupos no sistema penitenciário estadual". Também foram detectadas irregularidades na atuação de forças especiais para conter rebeliões.
Foram relatados espancamentos e abusos sexuais de pessoas LGBT que desrespeitem as regras estipuladas pelas facções, além de indicativos de violência policial.
Durante as visitas, alguns detentos estavam com cabeças enroladas em bandagens, graves feridas nas pernas e marcas de espancamento pelo corpo.
7.455 presos
O estado do Amazonas conta com 7.455 presos, uma taxa de cerca de 192 presos para cada 100 mil habitantes, de acordo com dados mais recentes do Infopen. Deste total, 57% estão em situação provisória.
Na avaliação da SDH, foram constatadas no estado situações de violações de leis nacionais e de convenções da Organização das Nações Unidas (ONU).
O órgão recomendou a elaboração de um plano de redução da população carcerária, investigação de casos de tortura, realização de um concurso para contratação de agentes penitenciários e cursos de formação para os funcionários.
De acordo com Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, tortura é definida como qualquer ato cometido por agentes públicos ou atores na função pública pelo qual se inflija intencionalmente a uma pessoa dores ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, a fim de obter informação, castigar, intimidar ou coagir.
A Lei 9.455/1997, por sua vez, considera tortura constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando sofrimento psíquico ou mental a fim de obter informação, provação ação ou omissão de natureza criminosa ou em razão de discriminação.
56 mortos
Ao menos 56 pessoas foram mortas no Compaj na rebelião que começou na tarde desse domingo (1º) e chegou ao fim na manhã desta segunda-feira (2), após mais de 17 horas, no que se tornou o segundo episódio mais violento do sistema penitenciário brasileiro. Dos reféns, 74 eram detentos e 12 funcionário da Umanizzare.
O governo do Amazonas vai alugar um contêiner frigorífico para guardar os corpos dos presos assassinados durante a rebelião até a conclusão dos exames que identificarão as vítimas e as causas das mortes. Pelo menos seis detentos foram decapitados e corpos foram arremessados por sobre os muros da penitenciária.
111 mortos
O massacre mais violento do País foi o do Carandiru, em 1992. Na chacina, 111 detentos foram mortos pela polícia.
R$ 44,7 milhões
O governo estadual irá disponibilizar R$ 44,7 milhões de repasse que o Fundo Penitenciário do Amazonas recebeu do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) na última quinta-feira (29) para reformar a unidade, segundo nota do Ministério da Justiça.
Entenda o caso:
A rebelião foi resultado da rivalidade entre duas organizações criminosas que disputam o controle de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, na Região Amazônica: o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a Família do Norte (FDN),aliada ao Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro.
A informação foi confirmadas pelo secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes, em entrevista à imprensa nesta segunda-feira.
Ele disse ainda que as forças de segurança optaram por não entrar no Compaj por considerar que as consequências seriam imprevisíveis.
Ao HuffPost Brasil, a coordenadora da Pastoral Carcerária do Amazonas, Marluce da Costa Sousa, disse que desde julho do ano passado passado o governo vinha tentando um acordo de paz, mas nada foi feito.
“Ameniza, mas um dia a briga estoura. Era algo que estava sendo tramado. Desde ontem, as famílias relatam que havia algo diferente no ar”, diz.
Segundo ela, havia todo tipo de arma no local. “Não sabemos como entra. Nós da pastoral e as famílias somos rigidamente revistados. Fico pasma. Não é a primeira vez que tem fuga e rebelião, mas é a primeira vez com essa matança toda”, explica.
Marluce defende sistemas diferenciados de acordo com o crime e um modelo de socialização dentro dos presídios que envolvam estudo e trabalho. “Junta um cara que roubou um celular com um que matou várias pessoas. Eles ficam o dia inteiro sem fazer nada, com televisão e celular, só tramando maldade”, emenda.
O HuffPost Brasil entrou em contato com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) do Amazonas e com a Umanizzare, mas até ambas não responderam à reportagem até a publicação desta reportagem.
Essa matéria foi originalmente publicada no portal HuffPost.