O STF deve liberar o porte de maconha e outras drogas?
Especialistas que ajudaram ministros a analisar o caso explicam por que o Supremo deve ou não descriminalizar o porte de drogas
Raphael Martins
Publicado em 9 de setembro de 2015 às 10h46.
Última atualização em 2 de agosto de 2017 às 16h24.
São Paulo – Os ministros do Supremo Tribunal Federal ( STF ) voltam a analisar nesta quarta-feira a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. No centro das discussões está o caso de um mecânico condenado a prestação de serviços comunitários por portar 3 gramas de maconha . Preso pela quinta vez por roubo e falsidade ideológica em 2009, Francisco Benedito de Souza foi flagrado com a erva em uma marmitex no Centro de Centro de Detenção Provisória de Diadema (SP). A condenação do mecânico foi baseada no artigo 28 da Lei de Drogas, que determina que a pena para o crime de porte de drogas deve ser a prestação de serviços à comunidade ou o comparecimento em programas ou cursos educativos. Para os defensores que acompanham o caso, a decisão é inconstitucional. O assunto é o segundo na pauta de julgamentos do STF na tarde desta quarta-feira. Os ministros do STF devem decidir se o artigo 28 da Lei Antidrogas fere (ou não) o inciso 10 do artigo 5ª da Constituição Federal, que determina que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. No último dia 20 de agosto, o ministro Gilmar Mendes - que é relator do caso - votou pela descriminalização do porte de drogas. Para ele, a aplicação da Lei de Drogas não diferencia usuários e traficantes. Nos bastidores, a expectativa é de que a votação de hoje seja apertada. Para entender o que os ministros devem levar em conta na hora de votar, EXAME.com entrevistou dois professores da Universidade de São Paulo com opiniões opostas sobre o tema. Ambos foram ouvidos pelos ministros do Supremo no último dia 19 para respaldar a decisão.
QUEM É: Pierpaolo Cruz Bottini é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Representou a Viva Rio como "amici curiae" do julgamento do STF em defesa da descriminalização do porte de drogas. O QUE DEFENDE: Para ele, o artigo 28 da Lei de Drogas fere os princípios constitucionais da intimidade e privacidade, além de afastar o usuário do tratamento. EXAME.com: Por que o senhor é contra a criminalização do porte de drogas?
Pierpaolo Cruz Bottini: O Direito Penal não é o instrumento para resolver o problema do uso da droga. Isso não quer dizer que não devemos ter uma política de inibição, que passa pela criminalização do tráfico, por medidas pedagógicas e por orientação. Temos experiências bem-sucedidas de inibição de certos comportamentos que não precisam do Direito Penal – como o cigarro, o cinto de segurança. Nas situações em que a criminalização foi aplicada para esses casos, só piorou o cenário. Isso estigmatiza as pessoas, as afasta da assistência social e à saúde.
Na sua opinião, em que ponto a lei atual fere a Constituição?
Em dois pontos. Primeiro, a Constituição, no artigo primeiro, fala em dignidade da pessoa. Dignidade significa autodeterminação. O nosso modelo é de que as pessoas têm uma esfera de privacidade dentro da qual o Estado não pode entrar. O Direito Penal interfere quando você viola a liberdade de alguém. Quando se age de uma forma que o único prejudicado é você, isso não diz respeito ao Direito Penal. A liberdade de opção sexual, de opção religiosa, a liberdade para autolesão são assuntos estranhos à criminalização O segundo é o direito à saúde. Na hora que você criminaliza o usuário, você o estigmatiza. Na verdade, você coloca entre ele e o acesso à saúde, o Direito Penal. Você o afasta do tratamento. Como a criminalização faz isso?
Na medida em que é um crime, quando o usuário vai até o hospital público [para pedir assistência], ele é um criminoso, está confessando um crime.
No livro "Porte de drogas para uso próprio e o Supremo Tribunal Federal", o senhor diz que, em algumas situações-limite, é possível relativizar uma parcela do espaço privado do indivíduo. Por que o uso de drogas não é uma delas?
Falamos em relativizar a situação-limite, mas não através do Direito Penal. Por exemplo, você não pune quem tenta suicídio, mas sim quem o incentiva. Não faz sentido você castigar a pessoa que se auto-lesiona. O Estado pode intervir para proteger a pessoa dela mesma, mas não pode castigar. Descriminalizar o porte de drogas é suficiente?
Não, o Supremo pode ter simplesmente uma decisão de descriminalizar e deixar em aberto o que é usuário e o que é traficante – que é uma discussão difícil de fazer. Ou ele pode descriminalizar e fixar o limite. Se fizer isso, o STF dá mais um passo. Agora, precisa fixar esses limites em critérios adequados. Se o limite ficar muito baixo, vai acontecer o que ocorreu no México: o problema piora. O que aconteceu no México?
Foi fixado um limite muito baixo. Uma série de pessoas que são usuárias passaram a ser consideradas traficantes e isso significou um aumento da população carcerária.
Qual modelo é mais adequado para o Brasil? O português ou o uruguaio?
Eu daria um primeiro passo no modelo português [que descriminalizou o porte de drogas e fixou limites]. Isso não significa que o modelo uruguaio [que institucionalizou a compra e venda de maconha] não seja um segundo passo.
Por que o modelo português?
É a experiência de um país que tinha um dos maiores índices de overdose para um dos que tem menores. O êxito da política portuguesa é um paradigma.
Pierpaolo Cruz Bottini: O Direito Penal não é o instrumento para resolver o problema do uso da droga. Isso não quer dizer que não devemos ter uma política de inibição, que passa pela criminalização do tráfico, por medidas pedagógicas e por orientação. Temos experiências bem-sucedidas de inibição de certos comportamentos que não precisam do Direito Penal – como o cigarro, o cinto de segurança. Nas situações em que a criminalização foi aplicada para esses casos, só piorou o cenário. Isso estigmatiza as pessoas, as afasta da assistência social e à saúde.
Na sua opinião, em que ponto a lei atual fere a Constituição?
Em dois pontos. Primeiro, a Constituição, no artigo primeiro, fala em dignidade da pessoa. Dignidade significa autodeterminação. O nosso modelo é de que as pessoas têm uma esfera de privacidade dentro da qual o Estado não pode entrar. O Direito Penal interfere quando você viola a liberdade de alguém. Quando se age de uma forma que o único prejudicado é você, isso não diz respeito ao Direito Penal. A liberdade de opção sexual, de opção religiosa, a liberdade para autolesão são assuntos estranhos à criminalização O segundo é o direito à saúde. Na hora que você criminaliza o usuário, você o estigmatiza. Na verdade, você coloca entre ele e o acesso à saúde, o Direito Penal. Você o afasta do tratamento. Como a criminalização faz isso?
Na medida em que é um crime, quando o usuário vai até o hospital público [para pedir assistência], ele é um criminoso, está confessando um crime.
No livro "Porte de drogas para uso próprio e o Supremo Tribunal Federal", o senhor diz que, em algumas situações-limite, é possível relativizar uma parcela do espaço privado do indivíduo. Por que o uso de drogas não é uma delas?
Falamos em relativizar a situação-limite, mas não através do Direito Penal. Por exemplo, você não pune quem tenta suicídio, mas sim quem o incentiva. Não faz sentido você castigar a pessoa que se auto-lesiona. O Estado pode intervir para proteger a pessoa dela mesma, mas não pode castigar. Descriminalizar o porte de drogas é suficiente?
Não, o Supremo pode ter simplesmente uma decisão de descriminalizar e deixar em aberto o que é usuário e o que é traficante – que é uma discussão difícil de fazer. Ou ele pode descriminalizar e fixar o limite. Se fizer isso, o STF dá mais um passo. Agora, precisa fixar esses limites em critérios adequados. Se o limite ficar muito baixo, vai acontecer o que ocorreu no México: o problema piora. O que aconteceu no México?
Foi fixado um limite muito baixo. Uma série de pessoas que são usuárias passaram a ser consideradas traficantes e isso significou um aumento da população carcerária.
Qual modelo é mais adequado para o Brasil? O português ou o uruguaio?
Eu daria um primeiro passo no modelo português [que descriminalizou o porte de drogas e fixou limites]. Isso não significa que o modelo uruguaio [que institucionalizou a compra e venda de maconha] não seja um segundo passo.
Por que o modelo português?
É a experiência de um país que tinha um dos maiores índices de overdose para um dos que tem menores. O êxito da política portuguesa é um paradigma.
QUEM É: David Teixeira de Azevedo é advogado criminalista e professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Representou a Associação Paulista do Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead) como "amici curiae" do julgamento do STF em defesa da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. O QUE DEFENDE: acredita que o porte de drogas já está descriminalizado, mas que o Estado deve ter poder de intervir na conduta de usuários, mesmo que seja como forma de orientação socioeducativa. EXAME.com: Por que deve ser mantida a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas?
David T. Azevedo: A Lei de Drogas já descriminalizou o porte para uso pessoal de drogas. Ela foi criada de uma maneira bipolar. Em um polo está o usuário, no outro, o traficante. No primeiro polo, as medidas jurídicas são de assistência e reintegração social. É respeitada a autonomia da vontade do drogadicto. No outro polo, estão os traficantes. Para esses, foram estabelecidas penas criminais a partir do artigo 33. Penas altas, de 5 a 15 anos de prisão. Estão querendo descriminalizar o que não é crime. "Ah, mas a lei diz que é pena". Nós somos interpretes e não sabemos distinguir o que é a essência? Não importa se está escrito "pena" ou "medida". O que importa é que as consequências daquilo não implicam em prisão. A briga não é entre criminalizar ou descriminalizar, já está descriminalizado. Se isso fere princípios constitucionais porque é crime, me desculpe, você está enganado. A discussão está fora de foco. A lei deve continuar como está, pois assim o estado pode intervir para dar suporte ao adicto. Está na Constituição: é dever do estado preservar a dignidade humana. O pessoal da Cracolândia tem dignidade? Por que o argumento de quem defende o contrário não lhe faz sentido?
Não se pode fazer uma interpretação de superfície. O artigo 28 está inserido em "Dos crimes e das penas". A partir desse título, a interpretação dos que votam pela inconstitucionalidade não olha a essência da norma. Eles interpretam que é crime e o que tem aqui é pena criminal. "Serão submetidas as seguintes penas". Pena? Advertência sobre uso das drogas, prestação de serviço à comunidade, medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. Logo em seguida se refere nisso como "medidas educativas". É "pena", é crime, ou "medida educativa"? Estamos no primeiro polo, de reinserção social ou no segundo polo que é crime? Em hipótese alguma, o indivíduo fica privado de liberdade. Se ele não cumpre, vai pagar uma multa. Agora, o cara é pego com uma quantidade grande, caderninho de anotação, dinheiro trocado... Aí é do segundo polo, é coisa de traficante. Aí é crime. Vai responder em cana. A sanção é mandar o réu para cadeia. Se a sanção penal não manda para a cadeia, não é uma norma penal. Quem precisa de ajuda, o Estado auxilia. Mas se o cara na autonomia da vontade continuar fumando seu baseado, o Estado não pode fazer nada. O sujeito pego com drogas não perde o caráter de primário?
Isso não é verdade. Porque o termo “reincidência” é aplicado quando se pratica um crime num período de cinco anos depois de condenado em outro. O termo reincidência escrito na Lei de Drogas não está aplicado no correto termo técnico. Parece que ele vai preso, mas não. O juiz, em uma nova decisão, vai, no máximo, dobrar a medida socioeducativa. Então, na sua opinião, não há uma estigmatização do usuário?
Não existe. O que mudaria no sistema com a inconstitucionalidade [do artigo 28 da Lei de Drogas] é que o cara poderia se drogar na rua. Não haveria nenhum modo de intervenção estatal nessa situação. E isso é um problema sério de saúde pública. Vão dizer que ele está lesando a si próprio, então não é questão de saúde pública. É, sim. Você vai dizer que no fluxo lotado na Cracolândia eles estão fazendo mal só para si? O que o Estado não gasta com esse tipo de conduta? Cabe aos juízes determinar a quantidade que configura porte ou tráfico de drogas?
A autoridade policial faz uma classificação provisória, então já cabe ao juiz decidir em qual artigo entra cada caso. O sujeito pode ser pego com 100 gramas de maconha. Pode parecer que é para tráfico, mas há casos de que o sujeito é pego na porta da boca, estava fazendo um estoque para consumo na semana. Esse cara não é um traficante. O juiz vai levar em consideração todas as circunstâncias para definir. Eu entendo que fixar taxas é uma forma de driblar incorreções de conduta. Mas o que há de irregularidades são as disfunções da lei. Isso é o que há de mais perverso no sistema. Não deveria ser assim, não pode ser assim. Mas aos que agem corretamente, é melhor manter o sistema, assim evita-se injustiças. É um critério possível, mas gera um filtro em que traficantes podem passar como usuários e vice-versa. Está tudo adequado na lei?
Acho que não há inconstitucionalidade. Só poderia ser mais bem escrito. A política nacional de drogas está bem estabelecida, bem dividia e operando como esperado.
David T. Azevedo: A Lei de Drogas já descriminalizou o porte para uso pessoal de drogas. Ela foi criada de uma maneira bipolar. Em um polo está o usuário, no outro, o traficante. No primeiro polo, as medidas jurídicas são de assistência e reintegração social. É respeitada a autonomia da vontade do drogadicto. No outro polo, estão os traficantes. Para esses, foram estabelecidas penas criminais a partir do artigo 33. Penas altas, de 5 a 15 anos de prisão. Estão querendo descriminalizar o que não é crime. "Ah, mas a lei diz que é pena". Nós somos interpretes e não sabemos distinguir o que é a essência? Não importa se está escrito "pena" ou "medida". O que importa é que as consequências daquilo não implicam em prisão. A briga não é entre criminalizar ou descriminalizar, já está descriminalizado. Se isso fere princípios constitucionais porque é crime, me desculpe, você está enganado. A discussão está fora de foco. A lei deve continuar como está, pois assim o estado pode intervir para dar suporte ao adicto. Está na Constituição: é dever do estado preservar a dignidade humana. O pessoal da Cracolândia tem dignidade? Por que o argumento de quem defende o contrário não lhe faz sentido?
Não se pode fazer uma interpretação de superfície. O artigo 28 está inserido em "Dos crimes e das penas". A partir desse título, a interpretação dos que votam pela inconstitucionalidade não olha a essência da norma. Eles interpretam que é crime e o que tem aqui é pena criminal. "Serão submetidas as seguintes penas". Pena? Advertência sobre uso das drogas, prestação de serviço à comunidade, medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. Logo em seguida se refere nisso como "medidas educativas". É "pena", é crime, ou "medida educativa"? Estamos no primeiro polo, de reinserção social ou no segundo polo que é crime? Em hipótese alguma, o indivíduo fica privado de liberdade. Se ele não cumpre, vai pagar uma multa. Agora, o cara é pego com uma quantidade grande, caderninho de anotação, dinheiro trocado... Aí é do segundo polo, é coisa de traficante. Aí é crime. Vai responder em cana. A sanção é mandar o réu para cadeia. Se a sanção penal não manda para a cadeia, não é uma norma penal. Quem precisa de ajuda, o Estado auxilia. Mas se o cara na autonomia da vontade continuar fumando seu baseado, o Estado não pode fazer nada. O sujeito pego com drogas não perde o caráter de primário?
Isso não é verdade. Porque o termo “reincidência” é aplicado quando se pratica um crime num período de cinco anos depois de condenado em outro. O termo reincidência escrito na Lei de Drogas não está aplicado no correto termo técnico. Parece que ele vai preso, mas não. O juiz, em uma nova decisão, vai, no máximo, dobrar a medida socioeducativa. Então, na sua opinião, não há uma estigmatização do usuário?
Não existe. O que mudaria no sistema com a inconstitucionalidade [do artigo 28 da Lei de Drogas] é que o cara poderia se drogar na rua. Não haveria nenhum modo de intervenção estatal nessa situação. E isso é um problema sério de saúde pública. Vão dizer que ele está lesando a si próprio, então não é questão de saúde pública. É, sim. Você vai dizer que no fluxo lotado na Cracolândia eles estão fazendo mal só para si? O que o Estado não gasta com esse tipo de conduta? Cabe aos juízes determinar a quantidade que configura porte ou tráfico de drogas?
A autoridade policial faz uma classificação provisória, então já cabe ao juiz decidir em qual artigo entra cada caso. O sujeito pode ser pego com 100 gramas de maconha. Pode parecer que é para tráfico, mas há casos de que o sujeito é pego na porta da boca, estava fazendo um estoque para consumo na semana. Esse cara não é um traficante. O juiz vai levar em consideração todas as circunstâncias para definir. Eu entendo que fixar taxas é uma forma de driblar incorreções de conduta. Mas o que há de irregularidades são as disfunções da lei. Isso é o que há de mais perverso no sistema. Não deveria ser assim, não pode ser assim. Mas aos que agem corretamente, é melhor manter o sistema, assim evita-se injustiças. É um critério possível, mas gera um filtro em que traficantes podem passar como usuários e vice-versa. Está tudo adequado na lei?
Acho que não há inconstitucionalidade. Só poderia ser mais bem escrito. A política nacional de drogas está bem estabelecida, bem dividia e operando como esperado.
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