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Para entender: o plano de privatizações

A secretaria de Parceria de Programas de Investimentos (PPI) do governo Temer planeja tirar do papel um grande plano de concessões e desestatizações

GALEÃO: Contrato do aeroporto do Rio de Janeiro deverá ser relicitado, devido a falta de pagamento do consórcio encabeçado pela Odebrecht / Daniel Basil / Produção Faquini
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Carolina Riveira

Publicado em 25 de novembro de 2016 às 19h41.

Última atualização em 11 de fevereiro de 2020 às 12h48.

Desde a década de 1970, quando se fortaleceu o conceito de neoliberalismo e de estado mínimo, discutir qual o tamanho ideal de um governo se regra em qualquer gestão. Até hoje não há consenso sobre a robustez ideal. É uma questão de projeto: mais ou menos intervenção na economia; maior ou menor abertura ao setor privado na oferta dos serviços públicos. Estado e mercado não são excludentes, mas o nível de importância que cada um tem na gestão pública depende do plano do governante que está no poder.

O Brasil assistiu a diferentes visões sobre ao longo de sua história – das nacionalizações de Vargas às privatizações de FHC e às concessões à iniciativa privada nos governos petistas. No atual governo Temer, a desestatização já era pauta antes mesmo de confirmado o impeachment de Dilma Rousseff. A secretaria de Parceria de Programas de Investimentos (PPI), com status de ministério, é comandada pelo sociólogo Moreira Franco desde maio. A pasta é responsável por gerir o Projeto Crescer, que espera arrecadar 24 bilhões de reais em 2017 em parcerias com a iniciativa privada.

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O foco do PPI

Lançado em setembro, o Projeto Crescer tem por objetivo, de acordo com o governo, reformular o modelo de concessões no Brasil, fortalecendo a segurança jurídica e a estabilidade regulatória e modernizar a governança. Até agora, são 34 equipamentos que devem ser repassados à iniciativa privada até 2018. No geral, são projetos de infraestrutura e logística: 4 aeroportos, 2 terminais portuários, 2 rodovias, 3 ferrovias, 3 rodadas de petróleo e gás, 7 distribuidoras de energia e usinas e 3 companhias de saneamento básico. Há ainda os ativos da Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais e a loteria Lotex, raspadinha virtual da Caixa. A expectativa do governo é que sejam criados 11.000 postos de trabalho diretos e quase 200.000 indiretos – uma “consequência natural” dos projetos, nas palavras de Temer.

Com o título de secretaria, o PPI tem a vantagem de centralizar os projetos, antes espalhados pelos ministérios. É uma forma de sinalizar aos investidores que o processo é organizado e que as regras não vão mudar de um dia para o outro. “O governo busca maior articulação entre os programas que já existiam”, explica o professor Ricardo Bueno, especialista em Administração Pública da Unifesp. No governo de Dilma Rousseff, uma iniciativa parecida já existia. Era o Programa de Investimento em Logística (PIL), com o qual o PPI guarda muitas semelhanças, inclusive por conter projetos que já estavam previstos no plano anterior, como as concessões de aeroportos, portos, rodovias e ferrovias.

Nos governos petistas, o foco não estava nas privatizações, mas nas concessões, quando o governo concede a uma organização privada o direito de uso de explorar um patrimônio público, se responsabilizando pela operação de um equipamento. Lula fez concessões de estradas federais e de hidrelétricas (como as de Santo Antônio e Jirau), e Dilma continuou o programa. No Crescer, apesar de a maioria das iniciativas serem concessões, algumas operações já começam a ser privatizadas. Em julho, o governo liberou a venda de distribuidoras de energia da Eletrobras. E, em breve, a Petrobras deve liberar a inclusão de ativos no plano. “Dependendo da natureza do empreendimento, o governo vai definir o modelo. É preciso atenção aos detalhes: definição adequada de tarifa, modelo de pagamento e outorga”, afirma Venilton Tadini, presidente-executivo da consultoria ABDIB.

No Brasil, as privatizações recentes começaram com o governo de Fernando Collor (1990-1992), com o Programa Nacional de Desestatização, que vendeu 18 empresas públicas, como a siderúrgica Usiminas. Já o governo seguinte, de Itamar Franco (1992-1994), privatizou a Embraer e a Companhia Siderúrgica Nacional. Mas quando o assunto é desestatização, o nome de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) é o mais lembrado. Em sua gestão, FHC vendeu a mineradora Vale do Rio Doce, a telefônica Telebras, empresas do setor elétrico como a Eletropaulo e bancos estaduais, como o Banespa.

Quem dá mais?

No jogo da desestatização, não basta querer vender, é preciso que alguém queira comprar. E, no caso brasileiro, os investidores não estão lá muito animados. O desinteresse não é à toa: regras muito rígidas nas licitações, incerteza de retorno, sucateamento dos bens públicos oferecidos e até mesmo incapacidade dos consórcios privados em gerir serviços que demandam mais estrutura do que elas de fato possuem são os principais gargalos dessa relação.

Dos nove lotes de concessões anunciados pelo governo na primeira rodada do PIL, em 2012, seis foram efetivamente transferidos. O plano previa investimentos de 133 bilhões de reais, e era voltado para rodovias e ferrovias, mas nenhuma ferrovia chegou a sair do papel. Uma segunda etapa do PIL foi lançada em 2015, com previsão de 198 bilhões de reais em investimentos, mas o processo foi interrompido com a mudança de governo.

De fato, retomar a confiança dos investidores virou quase um mantra nas discussões políticas brasileiras nos últimos tempos. Os investimentos no país estão mesmo em queda livre: o total investido no Brasil vêm caindo desde 2013 e teve redução recorde de 14,1% entre 2014 e 2015. Para 2016, a expectativa é de queda de 7%, segundo o Banco Central.

Por isso, um dos principais esforços do PPI deve ser no sentido de tornar os investimentos mais atrativos para a iniciativa privada, e facilitar a própria fiscalização do governo. As mudanças do PPI incluem mais agilidade na emissão de licenças de órgãos como o Ibama, que fornece licença ambiental, e o Iphan, que avalia impactos no patrimônio histórico. Os órgãos terão de dar preferência à análise dos projetos do PPI. Além disso, uma empresa só poderá fechar um contrato com o governo após ter obtido a devida regulamentação. “Uma parceria ou concessão envolve riscos, e quanto menos quantificado é o risco, mais caro fica para o governo. A licença ambiental é um desses riscos, e se eu entrego a responsabilidade para o vencedor da licitação, podem se passar anos e nunca começar a obra”, diz Geraldo Biasoto Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp.

Também ficou definido que a janela entre o lançamento do edital e o recebimento das propostas enviadas pelas empresas será superior a 100 dias, dando maior prazo para que os interessados realizem um bom projeto. Já a outorga, que costumava ser paga logo no começo, deve ser diluída ao longo do período de concessão, facilitando para que as empresas não precisem pagar tudo de uma vez.

O acesso aos financiamentos é outro ponto com o qual o PPI se preocupa. Até então, o BNDES e o fundo do FGTS eram praticamente as únicas fontes de empréstimos para as empresas, atraídas pelos juros mais baixos. No PPI, o BNDES está autorizado a entrar com, no máximo, 80% dos recursos. Os outros 20% devem ser supridos por bancos privados e, para o governo, isso vai garantir que os projetos sejam apresentados com mais qualidade. Juntos, a Caixa e o BNDES vão disponibilizar 30 bilhões de reais para os financiamentos iniciais, segundo o governo.

Mas para o professor Edson Lopes Gonçalves, pesquisador do FGV/CERI, ainda há poucos detalhes sobre como o capital privado se sentirá atraído por essas mudanças. “Temos pouca informação concreta sobre como serão os novos contratos”, diz. “Tem muitos fundos que investem em ativos de infraestrutura, mas não investem no Brasil. Como atrair esse capital privado? A gente não pode chegar no fundo de pensão da Noruega e convencê-los a investir no Brasil só com base na expectativa.”

E qual o limite dessas facilidades para atrair o investidor? Embora seja quase consenso que as privatizações melhoraram a qualidade de alguns serviços – como o de telefonia –, questiona-se o valor que o Estado recebe pelas empresas. A Vale, por exemplo, tinha preço estimado em cerca de 8 bilhões em 1997, mas foi vendida por 3,3 bilhões. Em meio à crise econômica do período, críticos avaliam que FHC vendeu as companhias apenas para fazer caixa. Temer nunca chegou a dizer que o objetivo primordial do PPI seja gerar lucro, mas diante do déficit de 170 bilhões previsto para o Brasil em 2016, não é segredo que usar as concessões e privatizações para aumentar a receita está nos planos do governo. Porém, o ministro da Fazenda Henrique Meirelles ficou encarregado de analisar outras formas de engordar o orçamento, como a reforma previdenciária, por exemplo.

Em relação à Vale, muitos argumentam que a produtividade da empresa aumentou (a Vale foi capitalizada no mercado internacional por 160 bilhões de dólares em 2010) e que, hoje, os impostos pagos pela companhia ao Brasil compensam a privatização. Só que a conta não fecha tão fácil. Quase 20 anos depois de privatizada, a Vale foi protagonista da maior tragédia da história da mineração brasileira, após o rompimento de uma barragem na cidade de Mariana, em Minas. O empreendimento era gerido pela mineradora Samarco, que é controlada pela Vale. O acidente liberou mais de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, que destruiu construções e ecossistemas locais e deixou mais de 1.500 pessoas desabrigadas. “A empresa agiu errado ao não informar que a barragem estava comprometida, mas a obrigação de paralisar as atividades era do setor público”, diz o pesquisador da Unifesp. O mesmo vale para qualquer outra empresa privada realizando serviços e obras. A responsabilidade do governo não termina quando uma companhia é privatizada.

Qualidade garantida?

O objetivo principal de uma concessão, parceria ou privatização precisa ser garantir um serviço melhor para o usuário final – o cidadão. Mas para que essa melhora efetivamente aconteça, é necessário que o Estado tenha controle sobre todas as etapas do processo. Depois de iniciada a obra ou a prestação do serviço, as agências reguladoras funcionam como uma espécie de guardiã dos usuários. Criadas no governo FHC, têm papel de cobrar qualidade junto aos operadores. Atualmente, existem dez agências reguladoras a nível federal, como a Anatel (de telecomunicações), a Aneel (de energia elétrica) e a Anvisa (de vigilância sanitária).

Para o professor Ricardo Bueno, da Unifesp, a ausência de um seguro que garanta a entrega dos projetos é uma falha do PPI. “Embora o programa tenha a ideia de indicadores de resultado, ele não cria um mecanismo de proteção ao setor público frente a eventuais atrasos”, diz. “Em muitos países é contratado um seguro, e imaginei que o governo fosse incluir nas obras do PPI, mas isso ainda não foi feito.”

A preocupação com a entrega dos projetos é de fato necessária. Das 93 Parcerias Público-Privadas assinadas no governo Dilma, 23 apresentam algum tipo de problema, segundo o PPP Brasil, um grupo independente que funciona como observatório das parcerias. São situações como atrasos, paralisação das obras, performance inadequada das concessionárias ou até mesmo obras que nem sequer foram iniciadas.

Um dos problemas é que o critério que definia o vencedor da licitação era o menor preço. O professor Geraldo Biasoto Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp, explica que, embora pareça bom para o usuário, esse formato pode ser problemático, porque muitos consórcios acabam oferecendo um preço baixo somente para ganhar a licitação, mas depois, acabam não completando a obra, ou entregando os serviços de forma ineficiente. “Você abaixa o nível da concorrência, porque há poucas empresas dispostas a entrar nisso”, diz Biasoto. “As que ganharam as concessões no governo Lula entraram com o preço lá embaixo, mas não fizeram a obra.” No PPI, outros modelos de licitação devem entrar em vigor, mas ainda não está claro como isso será feito.

Outro drama das relações entre o poder público e o setor privado é a corrupção. Inúmeros projetos de infraestrutura fracassados no Brasil tinham, por trás, empreiteiras envolvidas em escândalos revelados pela operação Lava Jato. Um levantamento da ONG Contas Abertas mostrou que, de 2013 a junho deste ano, foram 2,9 bilhões de reais pagos a empresas investigadas, segundo o Tesouro Nacional. Em junho, o Estado continuava pagando pelo menos 11 empreiteiras investigadas.

A empresa que mais recebeu foi a Odebrecht, a quem o governo transferiu quase 1,8 bilhão para obras nos últimos dois anos. Um exemplo de bem público a cargo da empreiteira é o aeroporto do Galeão, no Rio. Em 2014, a administração do local foi transferida da Infraero para o consórcio Rio Galeão – formado pela Odebrecht TransPort, pela Changi Airports International e pela própria Infraero. O grupo pagaria outorga de 19 bilhões por um contrato de 25 anos, mas vem tendo dificuldade em quitar suas dívidas com o governo – e já avisou que terá dificuldades em pagar as parcelas de 916 milhões neste ano. Diante deste cenário, a secretaria do PPI afirmou que o aeroporto pode passar por uma nova licitação. “Existem casos em que não têm como fazer reequilíbrio; tem que ser relicitado porque o negócio não se paga”, disse, em setembro, o secretário de coordenação do PPI, Tarcísio de Freitas.

Outro caso, dessa vez vinculado a um governo estadual, é o da futura Linha 6 (Laranja) do metrô de São Paulo. O consórcio Move São Paulo, responsável por construir o trecho, anunciou a suspensão das obras devido à dificuldades de obter financiamento para a continuidade das obras. Das quatro empresas que formam o Move São Paulo, três são investigadas na Lava Jato: Odebrecht Transport, Queiroz Galvão e UTC Engenharia. A construção da linha estava prevista para terminar em 2018, mas o prazo foi estendido para 2021 e, agora, deve ir ainda além.

O gargalo da infraestrutura

A priorização dos projetos em infraestrutura – sobretudo em logística – já estava presente nos pacotes de concessões de governos anteriores. Não à toa: o Brasil investe, em média, cerca de 2% do PIB no setor, segundo um estudo divulgado pela Confederação Nacional da Indústria. Para se equiparar a outros países emergentes, o investimento deveria chegar a 4%. Nos países da OCDE, a taxa chega a 6%.

Um estudo do núcleo de Real Estate da Escola Politécnica da USP, assinado pelos professores Claudio Tavares de Alencar e João da Rocha, estima que o Brasil precise investir 1 trilhão de reais em infraestrutura de transportes até 2030 para atingir níveis aceitáveis de qualidade. Diante de uma previsão de déficit de 139 bilhões de reais para o orçamento de 2017, é fato que o Estado não será capaz de arcar com essa demanda.

Mas quais áreas devem se manter públicas e quais devem ser compartilhadas com a iniciativa privada? No Crescer, uma das polêmicas são os projetos de saneamento básico, que atingirão as companhias de água e esgoto do Rio, de Rondônia e do Pará. Só a privatização da Cedae, companhia de saneamento do Rio, deve render mais de 1 bilhão de reais ao governo local, segundo a secretaria do PPI.

Embora o fracasso da gestão pública na questão do saneamento seja nítida – no Rio, só 34,6% da água consumida tem esgoto tratado, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento -, fica a dúvida se transferir o desafio à iniciativa privada é mesmo uma boa saída, devido à importância do serviço para a população. O professor Biasoto, da Unicamp, acredita que, como em qualquer projeto de concessão ou privatização, a chave está num contrato bem feito e na capacidade regulatória. “Tem muita coisa boa que dá um salto imenso em qualidade do serviço com a participação do setor privado, e no saneamento pode ser assim também. Mas isso se você escrever um edital direito e tiver os instrumentos para executar”, diz.

Para Edson Gonçalves, da FGV, a discussão não é sobre desestatizar completamente o país. O cerne da questão é avaliar qual setor funciona melhor sob determinado tipo de gestão. “Não existe um país sem companhia estatal. Só temos que buscar uma parceria maior entre os dois lados: passar para o privado o que funciona melhor no privado, e garantir uma administração adequada ao que continuar estatal”, diz. O importante é não demonizar nenhum dos dois modelos. “Quando o agricultor tem que entregar a safra dele, e perde 30% porque não existe logística, as discussões de foro ideológico acabam não servindo para muita coisa”, completa o professor Bueno, da Unifesp. O ponto é que faltam dois anos para as próximas eleições e, nas urnas, a população pode optar por um novo projeto de governo, colocando mais um plano na gaveta.

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