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Fernando Meirelles critica políticos brasileiros em artigo

Texto publicado no jornal inglês The Guardian pelo cineasta brasileiro critica corrupção e políticos

Fernando Meirelles: críticas à corrupção no Brasil (Ian Gavan/Getty Images)

Guilherme Dearo

Publicado em 21 de março de 2015 às 16h50.

São Paulo - O cineasta Fernando Meirelles ("Cidade de Deus", "O Jardineiro Fiel") criticou duramente os políticos brasileiros em artigo publicado no último dia 19 no jornal inglês "The Guardian".

Com o título "Brazil has had enough of broken promises" ("O Brasil já teve promessas não cumpridas o bastante"), Meirelles tenta explica os fatores que desencadearam as manifestações recentes e traça um bom resumo da história econômica recente no País.

Leia a seguir a tradução do texto:

"Um milhão e meio de manifestantes tomaram as ruas do Brasil no domingo, naqueles que foram os maiores movimentos populares desde as passeatas pró-democracia em 1984. A união da massa foi como uma animada celebração pelos direitos civis; não foi organizada por nenhum partido político, sim através das redes sociais por centenas de indivíduos espalhados pelo Brasil. Uma nova democracia digital está, mais uma vez, em ação. Não foi uma única questão que desencadeou os protestos, mas pesquisas mostraram que, entre os principais motivos, estava o ódio à corrupção. Houve manifestantes que pediram o impeachment da presidente Dilma Rousseff e aqueles contra o Partido dos Trabalhadores e o Congresso - tão fora da realidade que parece habitar uma redoma de vidro.

Na sexta-feira antes dos protestos, passeatas pró-governo tomaram as ruas, mas em uma escala muito menor. Até mesmo esses apoiadores do governo protestaram contra a recente perda de direitos trabalhistas e pediram uma reforma política urgente, assim como um aumento no salário dos professores. Alguns cartazes chamavam a presidente de 'traidora'.

O Brasil é um país historicamente desigual e vem lentamente reduzindo o abismo entre os ricos e os pobres. A eleição de Luiz Inacio Lula da Silva em 2002 fez muita gente acreditar que essa diferença seria praticamente extinta. Naquele ano, o forte crescimento da China levou a um aumento do preço das commodities que durou até 2008, antes da crise. O Brasil se viu com superávits que permitiram o governo fazer algo que nunca fora feito antes: agradar tanto o mercado financeiro a fim de atrair capital estrangeiro quanto os setores mais pobres da sociedade com programas de distribuição de renda e créditos baratos. O país logo entrou em uma eufórica onda de consumismo. Os salários aumentaram, os empregos abundaram, o padrão de vida aumentou. A atividade econômica estava sofrendo um boom que parecia não ter volta - era como um círculo vicioso. Era a primeira vez em 50 anos que eu lia apenas boas notícias quando eu abria o jornal pela manhã.

Em 2006, o Partido dos Trabalhadores se envolveu em um escândalo sobre compra de votos entre congressistas, mas Lula negou saber de qualquer coisa sobre o assunto e foi reeleito. A sensação de euforia continuou, mas, em 2008, a crise financeira chegou. O presidente, agora em seu segundo mandato, assegurou que a crise não era nada assustadora - somente uma marola que não atingiria o Brasil. Outros problemas, como a falta de investimentos na infraestrutura e na educação, ficaram mais aparentes, mas foram minimizados para que o partido pudesse conquistar a eleição de 2010.

Rousseff, então desconhecida, foi apoiada por Lula e acabou eleita. Sendo o trabalho do 'Criador', ela acabou ganhando a alcunha de 'Criatura', mas a escolha de Lula fazia sentido. Ele dominou a nova presidente por completo e acabou, de certa forma, escolhendo ele mesmo os novos ministros na troca entre favores políticos e apoio no Congresso. Quanto mais votos um partido tem, mais ministros ele pode ter. Os históricos antagonismos com a direita e as oligarquias foram varridos para debaixo do tapete, tudo em nome da 'governabilidade'.

Tal método agora é institucionalizado no Brasil moderno e acontece de maneira descarada, a céu aberto. Eleita, Dilma se esforçou para deixar tudo como antes, mas os preços das commodities caíram, a máquina governista ficou mais cara e nada podia ser feito. Além disso, a presidente não fez as mudanças necessárias na economia. Seu mandato acabou em 2014 com a inflação batendo na porta e denúncias de superfaturamento em praticamente todas os projetos de infraestrutura. O crescimento do PIB foi de apenas 0,2%, a crise energética começou a tomar forma e agora a classe média estava em débito, com os bancos pedindo de volta aquele dinheiro que tão facilmente havia sido dado nos anos anteriores. A primavera chegou e foi embora.

A reeleição do PT para o seu quarto mandato seguido era agora uma aposta arriscada. Na campanha presidencial, pouca atenção foi dada à verdade. Na televisão, o partido apresentou um país falso, ignorando todos os problemas existentes. Boa parte do debate foi dedicado aos ataques pessoais. A estratégia usada durante a campanha foi a de sempre dizer que seus adversários iriam aumentar as tarifas de luz, que iriam cortar benefícios trabalhistas e adotar uma política monetária recessiva. Era a rivalidade 'nós' contra 'eles', dividindo o país como nunca antes. Política era até mesmo um tópico a ser evitado durante os encontros com os amigos. A estratégia de marketing de Dilma funcionou e ela foi reeleita por uma estreita margem de 3%.

Assim que assumiu em janeiro, a primeira medida da presidente foi cortar direitos trabalhistas e aumentar a tarifa de luz, fazendo exatamente o que ela disse que seus oponentes fariam caso não fosse eleita. Já sem apoio de metade da população, ela agora perde o apoio de seus próprios aliados, que se sentem traídos. Uma pesquisa realizada em 18 de março descobriu que 62% da população considera o seu governo ruim ou muito ruim. Quando as coisas andam mal, todos correm para o abrigo. Lula não quer que a crise afete o seu retorno em 2018 e Dilma perde apoio dentro de seu próprio partido.

A presidente agora está isolada, tentando conter uma inflação crescente e uma crise de água e luz, além de ter de lidar com as investigações de corrupção dentro da Petrobras, a maior companhia brasileira. A maioria da população acredita que a presidente sabia que o esquema de desvio de dinheiro estava acontecendo dentro da empresa para financiar atividades do partido e para engordar a carteira de alguns. Isso levou a 20% dos manifestantes a pedirem o impeachment da presidente, enquanto outros clamam pelo fim da corrupção.

Ninguém está dizendo que o PT inventou a corrupção no Brasil. As campanhas políticas por aqui são financiadas por empresas, a maioria grandes construtoras que, mais tarde, reivindicam a sua participação nos projetos de grandes obras. Esse sistema absurdo existe há anos, mas todo mundo pensou que um partido de esquerda que prega a sinceridade seria capaz de mudar o cenário. Isso não aconteceu e a paciência da população se esgotou, como pode ser observado nos protestos de domingo.

Ainda há boas notícias. Executivos de algumas das maiores construtoras do Brasil foram presos por envolvimento no caso da Petrobras. Ter milionários com pleno acesso aos escritórios do governo atrás das grades já é único na história do Brasil. A barganha com alguns desses homens de negócios pode significar uma boa chance de os políticos envolvidos também serem punidos. Se eles pagarem pelo o que fizeram, será o início de um processo ansiosamente aguardado de reforma política. Como em todas as crises, uma oportunidade está sempre no horizonte".

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São Paulo - O cineasta Fernando Meirelles ("Cidade de Deus", "O Jardineiro Fiel") criticou duramente os políticos brasileiros em artigo publicado no último dia 19 no jornal inglês "The Guardian".

Com o título "Brazil has had enough of broken promises" ("O Brasil já teve promessas não cumpridas o bastante"), Meirelles tenta explica os fatores que desencadearam as manifestações recentes e traça um bom resumo da história econômica recente no País.

Leia a seguir a tradução do texto:

"Um milhão e meio de manifestantes tomaram as ruas do Brasil no domingo, naqueles que foram os maiores movimentos populares desde as passeatas pró-democracia em 1984. A união da massa foi como uma animada celebração pelos direitos civis; não foi organizada por nenhum partido político, sim através das redes sociais por centenas de indivíduos espalhados pelo Brasil. Uma nova democracia digital está, mais uma vez, em ação. Não foi uma única questão que desencadeou os protestos, mas pesquisas mostraram que, entre os principais motivos, estava o ódio à corrupção. Houve manifestantes que pediram o impeachment da presidente Dilma Rousseff e aqueles contra o Partido dos Trabalhadores e o Congresso - tão fora da realidade que parece habitar uma redoma de vidro.

Na sexta-feira antes dos protestos, passeatas pró-governo tomaram as ruas, mas em uma escala muito menor. Até mesmo esses apoiadores do governo protestaram contra a recente perda de direitos trabalhistas e pediram uma reforma política urgente, assim como um aumento no salário dos professores. Alguns cartazes chamavam a presidente de 'traidora'.

O Brasil é um país historicamente desigual e vem lentamente reduzindo o abismo entre os ricos e os pobres. A eleição de Luiz Inacio Lula da Silva em 2002 fez muita gente acreditar que essa diferença seria praticamente extinta. Naquele ano, o forte crescimento da China levou a um aumento do preço das commodities que durou até 2008, antes da crise. O Brasil se viu com superávits que permitiram o governo fazer algo que nunca fora feito antes: agradar tanto o mercado financeiro a fim de atrair capital estrangeiro quanto os setores mais pobres da sociedade com programas de distribuição de renda e créditos baratos. O país logo entrou em uma eufórica onda de consumismo. Os salários aumentaram, os empregos abundaram, o padrão de vida aumentou. A atividade econômica estava sofrendo um boom que parecia não ter volta - era como um círculo vicioso. Era a primeira vez em 50 anos que eu lia apenas boas notícias quando eu abria o jornal pela manhã.

Em 2006, o Partido dos Trabalhadores se envolveu em um escândalo sobre compra de votos entre congressistas, mas Lula negou saber de qualquer coisa sobre o assunto e foi reeleito. A sensação de euforia continuou, mas, em 2008, a crise financeira chegou. O presidente, agora em seu segundo mandato, assegurou que a crise não era nada assustadora - somente uma marola que não atingiria o Brasil. Outros problemas, como a falta de investimentos na infraestrutura e na educação, ficaram mais aparentes, mas foram minimizados para que o partido pudesse conquistar a eleição de 2010.

Rousseff, então desconhecida, foi apoiada por Lula e acabou eleita. Sendo o trabalho do 'Criador', ela acabou ganhando a alcunha de 'Criatura', mas a escolha de Lula fazia sentido. Ele dominou a nova presidente por completo e acabou, de certa forma, escolhendo ele mesmo os novos ministros na troca entre favores políticos e apoio no Congresso. Quanto mais votos um partido tem, mais ministros ele pode ter. Os históricos antagonismos com a direita e as oligarquias foram varridos para debaixo do tapete, tudo em nome da 'governabilidade'.

Tal método agora é institucionalizado no Brasil moderno e acontece de maneira descarada, a céu aberto. Eleita, Dilma se esforçou para deixar tudo como antes, mas os preços das commodities caíram, a máquina governista ficou mais cara e nada podia ser feito. Além disso, a presidente não fez as mudanças necessárias na economia. Seu mandato acabou em 2014 com a inflação batendo na porta e denúncias de superfaturamento em praticamente todas os projetos de infraestrutura. O crescimento do PIB foi de apenas 0,2%, a crise energética começou a tomar forma e agora a classe média estava em débito, com os bancos pedindo de volta aquele dinheiro que tão facilmente havia sido dado nos anos anteriores. A primavera chegou e foi embora.

A reeleição do PT para o seu quarto mandato seguido era agora uma aposta arriscada. Na campanha presidencial, pouca atenção foi dada à verdade. Na televisão, o partido apresentou um país falso, ignorando todos os problemas existentes. Boa parte do debate foi dedicado aos ataques pessoais. A estratégia usada durante a campanha foi a de sempre dizer que seus adversários iriam aumentar as tarifas de luz, que iriam cortar benefícios trabalhistas e adotar uma política monetária recessiva. Era a rivalidade 'nós' contra 'eles', dividindo o país como nunca antes. Política era até mesmo um tópico a ser evitado durante os encontros com os amigos. A estratégia de marketing de Dilma funcionou e ela foi reeleita por uma estreita margem de 3%.

Assim que assumiu em janeiro, a primeira medida da presidente foi cortar direitos trabalhistas e aumentar a tarifa de luz, fazendo exatamente o que ela disse que seus oponentes fariam caso não fosse eleita. Já sem apoio de metade da população, ela agora perde o apoio de seus próprios aliados, que se sentem traídos. Uma pesquisa realizada em 18 de março descobriu que 62% da população considera o seu governo ruim ou muito ruim. Quando as coisas andam mal, todos correm para o abrigo. Lula não quer que a crise afete o seu retorno em 2018 e Dilma perde apoio dentro de seu próprio partido.

A presidente agora está isolada, tentando conter uma inflação crescente e uma crise de água e luz, além de ter de lidar com as investigações de corrupção dentro da Petrobras, a maior companhia brasileira. A maioria da população acredita que a presidente sabia que o esquema de desvio de dinheiro estava acontecendo dentro da empresa para financiar atividades do partido e para engordar a carteira de alguns. Isso levou a 20% dos manifestantes a pedirem o impeachment da presidente, enquanto outros clamam pelo fim da corrupção.

Ninguém está dizendo que o PT inventou a corrupção no Brasil. As campanhas políticas por aqui são financiadas por empresas, a maioria grandes construtoras que, mais tarde, reivindicam a sua participação nos projetos de grandes obras. Esse sistema absurdo existe há anos, mas todo mundo pensou que um partido de esquerda que prega a sinceridade seria capaz de mudar o cenário. Isso não aconteceu e a paciência da população se esgotou, como pode ser observado nos protestos de domingo.

Ainda há boas notícias. Executivos de algumas das maiores construtoras do Brasil foram presos por envolvimento no caso da Petrobras. Ter milionários com pleno acesso aos escritórios do governo atrás das grades já é único na história do Brasil. A barganha com alguns desses homens de negócios pode significar uma boa chance de os políticos envolvidos também serem punidos. Se eles pagarem pelo o que fizeram, será o início de um processo ansiosamente aguardado de reforma política. Como em todas as crises, uma oportunidade está sempre no horizonte".

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