Brasil

Epopéia para o Pacífico

Cerca de 3 800 trabalhadores enfrentam os perigos e desafios da floresta Amazônica e da cordilheira dos Andes. O objetivo é abrir o trecho final do caminho que vai levar os produtos brasileiros até os portos peruanos

Trecho brasileiro da Transoceânica: 2 600 quilômetros por uma das regiões mais isoladas e inóspitas do continente sul-americano (--- [])

Trecho brasileiro da Transoceânica: 2 600 quilômetros por uma das regiões mais isoladas e inóspitas do continente sul-americano (--- [])

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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h30.

Numa das regiões mais inóspitas da América do Sul, um exército de aproximadamente 3 800 operários enfrenta no momento altitudes superiores a 4 000 metros, avalanches de lama e temperaturas que variam, num mesmo dia, de 15 graus negativos a 20 positivos. Eles estão empenhados em terminar a construção da rodovia Transoceânica, que vai abrir um caminho para a circulação de mercadorias entre o Brasil e o oceano Pacífico. A conclusão dessa estrada representa uma das maiores epopéias de engenharia já realizadas no continente -- o que não é pouco em terras onde já foi erguida Itaipu, a gigante brasiguaia que reinou por quase duas décadas como a mais potente hidrelétrica do mundo, até ser desbancada nos últimos anos pela chinesa Três Gargantas. A idéia da Transoceânica começou a sair do papel no início da década de 90. O trajeto de 2 600 quilômetros liga Rio Branco, a capital do Acre, aos portos peruanos de Ilo, Matarani e San Juan de Marcona. A parte brasileira do traçado, um total de 344 quilômetros, foi concluída em 2002. Resta agora executar o trecho final, muito mais longo, complexo e desafiador. "É um trabalho faraônico. Não existe nada desse porte sendo feito hoje na América Latina", afirma Luiz Weyll, diretor de contrato da Odebrecht, uma das construtoras brasileiras responsáveis pelo projeto, que tem prazo de término previsto para 2011 e custo de cerca de 1,8 bilhão de dólares.

Até a chegada ao Pacífico, o trajeto exige que sejam vencidos dois enormes obstáculos naturais. Um deles é a Amazônia peruana, com sua vegetação densa e temperaturas escaldantes na maior parte do ano. Apesar das dificuldades, a brigada que trabalha por ali tem ao menos o consolo de estar ao nível do mar. Boa parte de seus colegas encontra-se em situação mais desconfortável, executando tarefas perigosas na monumental cordilheira dos Andes, que tem 8 000 quilômetros de extensão e atinge quase 7 000 metros de altura em seu ponto máximo, o pico Aconcágua. Nos canteiros de obras da Transoceânica localizados nessa região, os operários usam máscaras de oxigênio para se proteger do ar rarefeito. Dois terços das operações são executadas a 3 500 metros acima do nível do mar, em média. O projeto de engenharia tem ainda um trecho que se esgueira pelas encostas andinas a 4 870 metros de altitude. Será a parte mais alta da estrada. Como o acesso ao local é muito precário, nem sempre os caminhões conseguem subir as montanhas com as máquinas e os equipamentos mais pesados. Por isso, muitas vezes, elas são desmontadas ou carregadas por avião.

Nos canteiros de obras das regiões mais altas, a rotina de trabalho é curta. As atividades começam às 10 da manhã e se encerram às 4 da tarde, de modo a aproveitar o período em que o clima está mais quente. Fora dessa janela temporal é quase impossível fazer qualquer coisa. Quando o ponteiro do termômetro encontra-se abaixo de 10 graus positivos, o asfalto esfria tão rápido que fica totalmente trincado e imprestável para o uso. Na época das chuvas, é preciso construir uma espécie de túnel para proteger o trecho recém-pavimentado. Outra questão que torna o trabalho ali diferente é o risco envolvido na operação. Mesmo com a adoção de todos os cuidados com a segurança, é impossível evitar os acidentes numa região onde as forças da natureza agem de forma imprevisível. Desabamentos de grandes massas de água e lodo das montanhas são constantes. "Felizmente, por ser lentos, eles não provocam muitos danos", diz Marcos Wanderley, diretor da divisão do Peru da Andrade Gutierrez, outra construtora nacional envolvida na epopéia do Pacífico.

 

Desde o início das obras, foram registrados dois acidentes fatais. É um número baixo diante do total de pessoas envolvidas no trabalho, mas demonstra como algumas situações podem sair facilmente do controle na região andina. A Odebrecht sofreu essas duas baixas. Em maio deste ano, num trecho a 3 000 metros de altitude, um ajudante de pedreiro foi atropelado por um caminhão que descia a montanha desgovernado, em marcha à ré. No outro episódio, ocorrido em novembro passado, um desabamento soterrou dezenas de veículos. Um encarregado de serviço não conseguiu escapar a tempo. Mesmo quando estiver pronta, a estrada terá trechos bastante perigosos para os motoristas. Em alguns deles, a inclinação chega a 45 graus, exigindo que os carros passem a uma velocidade máxima de 40 quilômetros por hora para garantir a segurança. Apesar dos problemas de tráfego, será possível percorrer toda a parte peruana da estrada em cerca de 40 horas. Hoje, só veículos com tração 4x4 conseguem vencer o trajeto, num tempo de viagem muito maior.

Boa parte do trecho final da rodovia Transoceânica está sendo tocada por dois consórcios comandados por construtoras brasileiras. Eles são responsáveis por 1000 quilômetros da estrada e foram contratados por meio de parcerias público-privadas (PPPs). Em sociedade com três companhias peruanas, a Odebrecht cuida de 710 quilômetros. O outro grupo, formado por Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão, responde  por outros 305 quilômetros. As obras dos demais trechos estão a cargo do governo peruano. Como a rodovia Transoceânica pode se transformar numa rota importante para o comércio exterior brasileiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em 2003 um acordo para financiar 450 milhões de dólares da construção. O governo do Acre, por exemplo, quer vender a nova estrada como uma alternativa ao canal do Panamá para o escoamento de mercadorias.

A construção da estrada sofre críticas de algumas ONGs, que acusam o governo peruano de não fazer os devidos estudos de impacto da obra na floresta Amazônica, na cordilheira dos Andes e nas comunidades indígenas que vivem na região. Apesar dos alertas dos ambientalistas, o investimento conta com o apoio maciço da população local, que enxerga no empreendimento uma oportunidade única de sair de uma situação de isolamento provocada pela barreira da cordilheira dos Andes. Para o país, a construção é vista também como um bom caminho para estreitar as relações comerciais com o Brasil, sobretudo no momento em que o Peru vive uma boa fase econômica, com baixa inflação e crescimento. No ano passado, por exemplo, o país registrou uma evolução de 8% do produto interno bruto (PIB), uma das maiores taxas da América do Sul.

Obstáculos pelo caminho
As principais dificuldades enfrentadas pelas empreiteiras brasileiras para abrir estradas na região dos Andes
Altitude
Os trabalhadores têm dificuldade em se adaptar a altitudes que passam dos 4 000 metros. Há casos de engenheiros brasileiros obrigados a abandonar as obras por causa das conseqüências do ar rarefeito
Pontes estreitas
Para chegar ao local de difícil acesso de boa parte dos canteiros das obras, as empreiteiras tiveram de construir ou refazer várias pontes, que eram estreitas demais para a passagem das máquinas
Chuva
Durante oito meses do ano, a região da estrada está sujeita a grandes avalanches de água e lama, conhecidas no Peru como uaicos.A qualquer hora do dia, toneladas de terra desabam sem aviso
Variação de temperatura
No inverno, é comum que a temperatura varie, em um mesmo dia, de 15 graus negativos a 20 positivos. O frio congela o radiador dos veículos e faz com que o concreto trinque

As construtoras brasileiras já estão acostumadas a fazer negócios no Peru. Elas começaram a montar escritórios de representação no país a partir da década de 80 para disputar concorrências de grandes projetos. Os negócios começaram bem, mas acabaram minguando nos anos 90, muito em razão da grave crise econômica que tomou conta do país. Depois de colocar as contas em ordem nos últimos anos, o país retomou a capacidade de investir e as obras voltaram. A Odebrecht é uma das construtoras brasileiras que mais vêm se aproveitando do momento. Entre outras coisas, ela é responsável pelo Transvase Olmos, que consiste na construção de um túnel de 19,3 quilômetros de extensão, escavado dentro de uma montanha na região de Olmos, ao norte do Peru. A obra vai ajudar a transpor parte das águas dos rios Hancabamba para o Olmos, que hoje fica seco boa parte do ano. O contrato foi assinado em julho de 2004, com investimento previsto de 185 milhões de dólares. O Transvase deve ficar pronto até 2010. É um trabalho importante, mas que fica menor quando comparado à epopéia da construção da rodovia Transoceânica.

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