Brasil

Com país dividido, juristas afirmam: não mexam na Constituição

Chapas de Jair Bolsonaro e Fernando Haddad têm propostas para alterar a Carta Magna que faz 30 anos nesta sexta-feira (5)

CONSTITUINTE: em sessão histórica, Congresso aprova o texto final da Constituição, em 22 de setembro de 1988 / Josemar Gonçalves/ Agência Senado

CONSTITUINTE: em sessão histórica, Congresso aprova o texto final da Constituição, em 22 de setembro de 1988 / Josemar Gonçalves/ Agência Senado

DR

Da Redação

Publicado em 5 de outubro de 2018 às 17h36.

Última atualização em 5 de outubro de 2018 às 21h20.

A Constituição brasileira completa 30 anos, nesta sexta-feira, em meio a um momento de indecisão. Os candidatos líderes na corrida presidencial, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), já expuseram o desejo de realizar reformas na Carta Magna brasileira. No primeiro caso, o candidato à vice-presidência, General Hamilton Mourão, afirmou que seria necessário elaborar uma nova Constituição para o país, uma vez que a de 1988 teria sido um dos motivos para a atual crise política e econômica.

Mourão foi além, e ainda afirmou que a Carta deveria ser elaborada por uma Assembleia Constituinte formada por “notáveis”. Haddad confirmou que a proposta de modificação da Carta está em seu programa eleitoral. Segundo o plano do partido e de sua coligação, “Brasil feliz de novo”, a formação de uma Assembleia Constituinte seria necessária “para assegurar as conquistas da Constituição de 1988, as reformas estruturais e das instituições preconizadas”. Ainda segundo o programa, “o governo Haddad participará, logo após a posse, da elaboração de um amplo roteiro de debates sobre os grandes temas nacionais e o sobre o formato da Constituinte. ”

A dois dias das eleições, parece que os candidatos mais prováveis de ir para o segundo turno, e, consequentemente, vencer as eleições, pretendem iniciar uma nova discussão em torno do “contrato” firmado pela população 30 anos atrás. Dois pontos foram levantados por EXAME, e explicados por especialistas de Direito Constitucional: a necessidade de modificar a Constituição, e se este seria o melhor momento. A resposta, antecipadamente, é a de que a Carta Magna não deveria ser modificada ou sequer discutida no contexto político em que vivemos. 

Por que mudar?

Num contexto de fim da ditadura militar, a Constituição de 1988 foi elaborada de maneira complexa, e por isso possui em seu texto aspectos diversificados. Segundo Diego Weneck, professor de Direito e Pesquisador Adjunto da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RIO), a Constituição possui  caráter simbólico, por iniciar uma nova era democrática no país, e ao mesmo tempo prático, porque eliminava os resquícios de um Estado ditador. Foram 20 meses de trabalho da Assembleia Constituinte, composta por 72.719 sugestões de cidadãos e 12.000 sugestões de entidades representativas, avaliadas por uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais – a Comissão Afonso Arinos. As sugestões avaliadas foram posteriormente aprovadas por 559 parlamentares (72 senadores e 487 deputados federais).

Como qualquer grande projeto, o texto da Constituição resultou em um livro de mais de 64.400 palavras, com interpretações dúbias, e que constitucionalizou medidas e ações do governo que muitas vezes poderiam ser decididas fora do contexto constitucional. Esta é a conclusão dos pesquisadores do Departamento de Ciência Política da USP e da FGV, Rogério Arantes e Cláudio Gonçalves Couto. Segundo o texto “Constituição, Governo e Democracia No Brasil”, a Carta brasileira de 1988 se caracteriza por ter constitucionalizado formalmente diversos dispositivos que apresentam, na verdade, características de políticas governamentais com fortes implicações para o modus operandi do sistema político brasileiro.

“A constitucionalização de políticas públicas faz com que os sucessivos governantes se vejam diante da necessidade de modificar o ordenamento constitucional para poder implementar parte de suas plataformas de governo”, afirmam.

Para Rogério Arantes, cerca de 30% da Constituição é composta por políticas públicas, que são aprovadas através de emendas durante os governos de cada presidente. “São emendas de programas governamentais, que exigem estabilidade e apoio de um presidente por parte do poder Legislativo”, afirmou. Não é à toa que as coligações no Brasil são tão importantes. Para que uma emenda seja aprovada, são necessário três quintos dos votos em ambas as casas (Senado e Câmara dos Deputados), em duas votações cada. E, em uma constituição que possui 99 emendas, foi necessária muita aliança.

Os apoios fizeram que a Constituição sofresse um inchaço de 44% de seu volume total. O professor ainda ressalta que, mesmo com a necessidade de um grande apoio legislativo, tornou-se um hábito fácil emendar a Constituição brasileira. “Junta-se a fome com a vontade de comer”, afirma.

Se o modelo brasileiro é controverso, há dois aspectos que podem ser analisados sob um olhar mais “otimista”. O primeiro fato é o de que, por não agradar nem um partido de esquerda como o do PT, nem um partido de direita como o PSL, mostra que é uma Constituição que leva em conta ambos os lados. “O processo constituinte foi profundamente aberto, e fez com que diferentes setores conseguissem seu interesse. Por isso que podemos dizer que líderes extremistas não gostam”, afirma o professor de Direito e membro do Supremo em Pauta, Rubens Glezer.

A consequência de ter recebido sugestões de diversos movimentos, e por ter contemplado muitos lados são, para a professora Flávia Piovesan, advogada, ex-secretária Especial de Direitos Humanos no Governo Federal e membro Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o motivo da garantia de direitos humanos no país. “A Constituição de 1988 foi primorosa na proteção dos direitos civis, além de ter sido um marco jurídico da transição democrático e direito humanos”, afirma.

Para a professora, as leis mais importantes da proteção de direitos da população brasileira vieram após o texto da Constituição, como a lei de combate à tortura, a lei Maria da Penha, lei de combate ao racismo, e o Estatuto do idoso, criança e adolescente. “Foram 30 anos com ganhos extraordinários, inimagináveis em décadas passadas”, afirma.

 

Arquivo Senado Federal
LIDERANÇAS: Povos indígenas nas galerias do Congresso: luta pela demarcação de terras

Agentes da Mudança

Em um cenário em que o novo presidente propusesse uma nova Constituição, quem seriam os agentes responsáveis pela elaboração de um novo texto? Se Bolsonaro vencesse e acatasse ao desejo de seu vice, o general Mourão, um time de notáveis seria o responsável. Já houve uma tentativa de elaborar uma Constituição com pessoas “diferenciadas”, no passado: a Comissão Afonso Arinos.

Com o objetivo de criar um anteprojeto constitucional, a proposta da comissão não foi bem vista, e houve uma pressão interna para que o texto não fosse levado à Câmara e ao Senado. José Sarney, que na época era presidente da República tomou a decisão de não enviar. Em entrevista ao site do Senado, Cristovam Buarque, membro da Comissão, afirmou que houve uma pressão muito grande, por parte de muitos constituintes, para que o anteprojeto não chegasse ao Congresso. “Eles consideravam o texto uma intromissão do Executivo em seus trabalhos”.

O professor de direito da FGV, Diego Werneck, ainda lembra de dois exemplos de países que fizeram uma comissão de notáveis para aprovar suas Constituições: os Estados Unidos, em 1787, e a Turquia, em 1924. “Selecionar a dedo notáveis neste momento do brasil parece uma afirmação antidemocrática muito forte. Este processo é uma combinação de um processo mais controlado”, afirma.

Além disso, o professor relembra o fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF) seria um importante agente numa possível nova elaboração. E, no mesmo cenário conturbado da política brasileira estão os ministros do STF, que também adotaram o discurso político e a decisão arbitrária. Para Diego Werneck, o STF de hoje é composto por um tribunal fragmentado, em que os ministros são “incapazes” de formular uma única reposta” sobre um determinado tema. “Se contarmos com o Supremo de hoje, temos grandes chances de não conseguir uma coesão para que se tenha um papel moderador no processo de uma constituinte”, afirma. “Vão se fragmentar de acordo com o processo, que pode gerar mais um elemento de instabilidade nesse processo”.

Essa instabilidade é, muitas vezes, justificada pela própria interpretação individual sobre a Constituição. Para Werneck, os próprios ministros olham para um caso e dão resposta não com o que a constituição diz, mas com o que é melhor para o país. “O Supremo pode se tornar uma grande força de desilusão. Ler o texto como eles gostariam que fosse”, afirma.

Para Rubens Glezer, os ministros da Corte Suprema também não teriam credibilidade para exercer um papel mais importante em um cenário de reforma constitucional. “O que o supremo fez ao longo dos últimos 3 anos foi gastar seu capital social, desgastar sua legitimidade”, diz. “Ao invés de zelarem as regras, criaram regras políticas, e fizeram isso individualmente”.

Apesar das críticas, foi unânime a rejeição de uma proposta de reforma entre os próprios ministros. “Não vejo motivo para Constituinte ou Assembleia Constituinte. Isso é querer, a cada 20 anos, 30 anos, reformatar toda a jurisprudência já criada, toda leitura que já existe e querer começar a Nação do zero”, afirmou Dias Toffoli, atual presidente do STF. Para Gilmar Mendes, não há motivo para uma nova Constituição. “Esta é a Constituição mais estável que já tivemos. É aquela que evitou golpes, não ensejou tentativa de tomada de poder. Por isso ela tem valor em si mesma, um valor intrínseco que precisa ser cultuado”, afirmou.

Precisa mudar?

Para todos os entrevistados ouvidos por EXAME, este momento político brasileiro seria o pior para propor qualquer mudança na Constituição. O consenso, segundo eles, é essencial para a formulação de novas diretrizes e de um novo texto constitucional. Acontece que, em um período de radicalização política seria difícil pensar em um diálogo ameno sobre uma mesma pauta.

“As constituições são pactos firmados em momentos de consenso, com uma situação social mais estável. Momento de crise é a hora de se ater aos pactos constitucionais. A própria ideia de uma Constituição pressupõe ter uma garantia para passar por momentos como o atual”, afirma Glezer.

O segundo turno das eleições, mantidas as previsões eleitorais, será uma ótima oportunidade para Haddad e Bolsonaro explicarem seus planos de reforma constitucional — e, eventualmente, enterrar essa ideia para se concentrar em problemas mais urgentes.

Acompanhe tudo sobre:Eleições 2018Exame HojeFernando HaddadJair Bolsonaro

Mais de Brasil

Rio de Janeiro recebe FII PRIORITY Summit com o tema “Investir com Dignidade”

CCR retoma cobrança de pedágio na ViaSul e restabelece ligação entre Porto Alegre e interior

Governo de SP e 305 municípios atendidos pela Sabesp aprovam novo contrato para privatização

Eduardo Leite defende debate sobre adiamento das eleições municipais no RS

Mais na Exame