Agrotóxicos proibidos na Europa são campeões de vendas no Brasil
As empresas que vendem os químicos aqui são dos mesmos países que baniram as substâncias em seus territórios; citada, Syngenta envia posicionamento a EXAME
Clara Cerioni
Publicado em 15 de dezembro de 2018 às 08h00.
Última atualização em 19 de dezembro de 2018 às 18h59.
São Paulo — Agrotóxicos associados a casos de câncer, danos genéticos e suicídios estão presentes em alimentos cotidianos do brasileiro, como café, arroz, feijão, batata, maçã, banana e até no caldo de cana. Enquanto os riscos à saúde fizeram a comunidade européia banir o uso do paraquate, atrazina e acefato, as três substâncias estão entre as mais vendidas no Brasil. Em 2017, as plantações brasileiras receberam mais de 60 mil toneladas destes químicos.
É na Europa que ficam as bases das principais empresas do mercado mundial de agrotóxicos: Syngenta, Bayer CropScience e BASF são responsáveis por quase metade desse comércio no mundo. Mas é também da Europa que pesquisas científicas denunciam seus riscos há décadas.
“A União Europeia produz agrotóxicos, mas tem deixado de lado os produtos que são nefastos à saúde, em função da pressão da sociedade civil organizada”, afirma Larissa Mies Bombardi, da Universidade de São Paulo, autora de ampla investigação sobre o tema que resultou no atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.
Ela observa que, na prática, as empresas europeias que fabricam essas substâncias transferiram os produtos mais perigosos para mercados mais permissivos, como o Brasil. Cerca de um terço dos ingredientes liberados para uso no Brasil estão proibidos na União Europeia, ela aponta.
O resultado é o impacto direto sobre a saúde dos brasileiros. A cada 24 horas, oito pessoas são intoxicadas por agrotóxicos no país, segundo dados oficiais, que são subnotificados. O Ministério da Saúde estima que para cada caso desses, outros 50 não foram registrados. Parte dessas intoxicações leva à morte.
Paraquate: depressão, câncer e Parkinson
Fabricado pela gigante mundial suíça Syngenta desde a década de 60, e proibido em território europeu desde julho de 2007, o paraquate é oitavo agrotóxico mais vendido no Brasil. É um herbicida com extensa lista de riscos à saúde humana. Está no arroz, banana, batata, café, cana-de-açúcar, citros, feijão, maçã, milho, soja e trigo.
A Syngenta procurou a redação após a publicação da matéria e enviou nota sobre o processo de pesquisa e aprovação dos agrotóxicos que a empresa vende no Brasil (leia a nota no final deste texto).
O paraquate foi investigado durante nove anos pelo Centro de Controle de Intoxicações em Marselha, na França. Os estudos, que ocorreram antes e depois da proibição da substância na Europa, comprovaram uma associação direta com casos de envenenamentos graves e fatais.
O instituto francês estudou a relação entre a exposição ao agrotóxico e 34 tentativas de suicídio, sendo quase a metade dos casos fatal. A maioria dos pacientes estava em casa quando bebeu o veneno de forma intencional. Das 15 mortes, 10 ocorreram nas primeiras 48 horas após a ingestão. A rapidez se deve à falência de múltiplos órgãos, entre outras complicações. Os outros 33% dos óbitos aconteceram ainda no primeiro mês. Segundo a pesquisa, publicada em artigo científico, no Journal of Medical Toxicology de 2013, os pacientes tiveram extensa fibrose pulmonar e insuficiência de oxigênio.
O químico não é apenas uma arma usada para tirar a própria vida, mas também um dos elementos que pode estar por trás do quadro depressivo que motivou a ação suicida. “Causa depressão no sistema nervoso central,”, afirma a biomédica Karen Friedrich sobre a neurotoxicidade do Paraquate. Com mestrado e doutorado em Toxicologia, ela é assessora da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, e explica que o efeito do químico é a diminuição de neurotransmissores, como a dopamina.
Em casos de depressão e suicídio, Friedrich ressalta, há sempre diversos fatores que influenciam o quadro. “O pequeno agricultor tem a preocupação com o clima, se vai chover, qual o preço que ele vai vender a hortaliça dele. As vezes, ele vive numa situação de violência intensa. Tem todo um contexto social e de exposição química, que vão trabalhar para que ele sinta a depressão e que leve ao suicídio”, acrescenta a pesquisadora.
Evidências mostram o quanto países em desenvolvimento tem a auto-intoxicação por agrotóxicos como grande problema de saúde pública. Estima-se cerca de 300 mil mortes por ano, apenas na região conhecida como Ásia-Pacífico, que inclui os países asiáticos banhados pelo oceano e a Oceania, segundo artigo da British Journal of Clinical Pharmacology de 2011. O problema, contudo, não se limita a nações emergentes. “Entre 1945 e 1989, o paraquate foi responsável por 56% de todas as mortes por pesticidas, na Inglaterra e no País de Gales”. Foi responsável ainda por mais mortes em 2008, do que qualquer outro pesticida.
O paraquate também foi escrutinado por pesquisadores da Itália, que apontaram riscos de câncer no sistema linfático, como os casos registrados em Puglia, no sul do país. A atividade agrícola parece ser um fator de risco para o desenvolvimento de subtipos de câncer registrados nas cidades de Bari e Taranto. O risco aumenta se há interação entre o paraquate e outros agrotóxicos, como o captafol e radone.A investigação analisou 158 casos entre 2009 a 2014, e descobriu que mesmo os pacientes expostos a baixos níveis de paraquate tinham risco aumentado para todos os linfomas.
A disputa pelo Brasil
Classificado como extremamente tóxico (na terminologia médica “Classe I”), a Anvisa baniu o herbicida após estudos apontarem que ele pode causar mutação no material genético e doença de Parkinson. “O Paraquate é muito tóxico do ponto de vista agudo, ou seja, imediato. Isso está bem consolidado na literatura científica”, afirma Friedrich.
A data para o paraquate sair das prateleiras brasileiras é setembro de 2020, segundo a Anvisa. Até lá, a proibição pode ser revertida. Uma das iniciativas é o projeto de decreto legislativo do deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS) que propõe suspender a proibição do ingrediente.
O prazo para ser banido em território brasileiro foi um abalo comercial para a Syngenta, que logo começou um lobby com políticos brasileiros para reverter a decisão. Em uma carta assinada pelo presidente da Câmara de Comércio Suíço-Brasileira, Emanuel Baltis, um convite é feito para uma viagem à Suíça em novembro de 2017, para “conhecer aspectos da capacidade de inovação suíça” e fazer uma visita à multinacional.
Documento obtido pela organização suíça Public Eye, que investiga o comportamento das empresas do país, expõe a lista de políticos que viajaram ao país aceitando o convite. Entre eles está a deputada federal Tereza Cristina (DEM/MS), anunciada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro como a Ministra da Agricultura. Custos com passagens aéreas, logística da agenda oficial dentro da Suíça, hospedagem e alimentação foram pagos pela Câmara de Comércio.
Segundo a Public Eye, a maioria dos participantes era integrante da bancada ruralista – a Frente Parlamentar da Agropecuária. “Eles desempenharam um papel fulcral para fazer a ANVISA rever suas ambições no tocante à proibição do paraquate”, lê-se no comunicado da organização.
Atrazina: mudando o sexo dos sapos
O ritmo de aumento do uso dos agrotóxicos no Brasil parece caminhar na contramão das descobertas internacionais. Entre 2000 e 2010, a utilização de pesticidas no mundo aumentou em 100%. No Brasil, o crescimento foi o dobro: 200%. Hoje, 20% dos agrotóxicos comercializados no mundo são vendidos no Brasil. A larga utilização desses químicos pode afetar não só a saúde humana, mas gerar transformações inesperadas ao meio ambiente, como sapos mudarem de sexo.
Estudos apontam que o agrotóxico atrazina pode levar à completa feminização dos machos sapos-com-garras-africanos. Isso passou a acontecer porque o agrotóxico é um potente disruptor endócrino, segundo um estudo norte-americano,. A atrazina atinge os níveis de testosterona desses anfíbios adultos, diminuindo suas glândulas reprodutoras, além de atacar o desenvolvimento de esperma. Dos sapos machos estudados, 10% foram totalmente transformados em fêmeas a ponto de conseguirem acasalar com outros machos e produzirem ovos viáveis.
“Esses tipos de problemas, como os animais que invertem o sexo e distorcem as relações sexuais, são muito mais perigosos do que qualquer substância química que possa matar uma população de sapos”, afirmou o biólogo e professor Tyrone Hayes, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em uma entrevista sobre sua pesquisa, em 2010.
Nesse período, Hayes trabalhava também como consultor e pesquisador para a empresa que produz a atrazina, a Novartis, que se fundiu com a Zeneca e formou a Syngenta. Em seu site pessoal, Hayes explica que a empresa e seus consultores tentaram impedir que ele levasse a informação a público. “Renunciei a minha posição de consultoria na empresa e publiquei o meu trabalho e outras descobertas com apoio de financiamento independente”, escreveu em sua página chamada ‘Atrazine Lovers’.
A descoberta de reversão sexual chama a atenção sobre como a Atrazina pode favorecer a diminuição dessa espécie e ainda atingir outros anfíbios. Segundo a Anvisa, o agrotóxico no Brasil é usado principalmente no cultivo de abacaxi, cana-de-açúcar e milho. A atrazina está banida da União Europeia, desde 2004, mas, aqui, é o sexto pesticida mais comercializado com quase 29 mil toneladas, apenas em 2017.
“A Atrazina foi encontrada em água coletada em muitos poços de água potável, no centro-oeste dos Estados Unidos. Também foi encontrada em córregos, rios e lagos próximos a campos onde foi aplicada”, afirma documento da agência de registros de substância tóxicas e doenças, de Atlanta, nos EUA, em comunicado de 2003. O órgão já havia alertado sobre os riscos de gestantes expostas à água contaminada, pois a exposição pode alterar o peso do feto e provocar problemas cardíacos e urinários da mãe.
Acefato: infertilidade e danos genéticos
Já o acefato, com mais de 27 mil toneladas em 2017, ocupa a quarta posição entre os agrotóxicos mais vendidos no Brasil. Usado nas culturas de algodão, amendoim, batata, citros, feijão, melão, milho, soja e tomate esse ingrediente também é objeto de estudos médicos pelo mundo.
Uma mulher de 55 anos teve uma tetraplegia associada à exposição contínua ao acefato, em 2004. Ela aplicou o agrotóxico em casa, para matar insetos e procurou um médico quando teve paralisia em um dos braços. Por dois anos, sofreu com a evolução da perda das atividades motoras até falecer.
As doenças do sistema nervoso central, chamadas de neuropatias, são uma das consequências comprovadas da exposição ao acefato. “Ele está associado a problemas no material genético que advém principalmente de uma substância produzida a partir do acefato, não intencionalmente”, afirma a toxicologista Karen Friedrich. Ela explica que, ao entrar em contato com o meio ambiente ou com seres vivos, o acefato pode se transformar em outra substância chamada metamidofós, que é proibido na União Européia e no Brasil.
Após uma autópsia, os médicos conseguiram diagnosticar a causa da morte da senhora: Mielite Transversa, uma doença neurológica causada por uma inflamação na medula espinhal. O artigo foi publicado pela Escola de Medicina da Universidade de Louisville, nos EUA. Friedrich destaca que os danos provocados pelo agrotóxico podem afetar os desenvolvimento dos genes, estarem associados a casos de câncer e passarem de pai para filho.
O uso extensivo de agrotóxicos do tipo organofosforados, como o acefato, pode alterar a qualidade do sêmen e o DNA na formação dos espermatozoides, de acordo com pesquisadores do Centro de Biotecnologia, da Universidade de Sri Jayawardenapura, no Sri Lanka.
O acefato é amplamente utilizado pelos agricultores do país asiático. Segundo o estudo, a exposição pode afetar a fertilidade dos homens, indicando altos riscos aos jovens trabalhadores. “A integridade do DNA do espermatozoide é vital para transmitir informação genética durante a reprodução e qualquer dano ao DNA pode resultar em infertilidade”, concluem os pesquisadores.
A reportagem foi publicada originalmente na Agência Pública
Resposta da Syngenta
Posicionamento da Syngenta enviado a EXAME e publicado em 17/12/2018 às 18h57:
"Diante da repercussão da matéria originalmente publicada pela Agência Pública, a Syngenta, que não foi procurada pela referida redação antes da publicação do texto, esclarece que:
Com relação ao Paraquate, mencionado ao longo do texto, a Syngenta afirma que se trata de um dos produtos de proteção de cultivos mais pesquisados e testados, atualmente registrado para uso em diversos países, incluindo aqueles com alguns dos mais exigentes ambientes regulatórios, como EUA, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Também é registrado em países da América Latina, como, por exemplo, na Argentina, que assim como o Brasil tem na agricultura uma das atividades mais representativas para o PIB.
Com relação à Atrazina, cabe dizer que o produto vem sendo utilizado há mais de 50 anos e que, assim como o Paraquate, é um importante aliado de agricultores contra a proliferação de ervas daninhas em cultivos diversos. Estudos realizados em países como Canadá, Reino Unido e Austrália, e também pela Agência Ambiental dos Estados Unidos (US EPA), demonstram a segurança do produto.
E a respeito da questão que intitula a matéria repercutida, é essencial esclarecer que as práticas agrícolas estão diretamente ligadas às características regionais, como condições climáticas, cultivos e número de safras plantadas por ano, pressão de pragas e doenças, entre outros. Defensivos usados aqui não são tão necessários em países onde o inverno rigoroso – muitas vezes com neve – reduz naturalmente a pressão de pragas, doenças, e a competição de ervas daninhas. O plantio direto, prática amplamente utilizada no Brasil e que garante a gestão sustentável do solo, é viabilizado por meio da utilização de herbicidas como Atrazina e Paraquate.
Todos os produtos que comercializamos no Brasil são submetidos a um processo de avaliação reconhecido como um dos mais rigorosos do mundo, que envolve ANVISA, MAPA e IBAMA. Cada um dos órgãos avalia os produtos conforme sua área de expertise: saúde, agronomia e meio ambiente. Cabe dizer, inclusive, que consideramos fundamental manter a autonomia e a independência de cada uma das agências reguladoras, de acordo com suas competências.
Este tema - venda de produtos no Brasil que não são comercializados em outros países - foi, inclusive, pauta de um dos episódios que integram a nossa série Mitos e Verdades. Esse e outros conteúdos podem ser acessados nos nossos perfis nas redes sociais e também em nosso blog: https://blogsyngenta.com.br/mitos-e-verdades-2/ "