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Fundamentos da economia do conhecimento

Como o trabalho e a vida mudam em um mundo que depende cada vez mais da produção de idéias

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 12h40.

O conhecimento humano está se tornando o principal fator de produção de riquezas, enquanto os serviços e as informações gerados por ele tendem a se tornar os bens essenciais negociados no mercado. Continuamos e continuaremos sempre a vender e a comprar objetos materiais. Mas as mercadorias ponderáveis são produzidas de idéias que vêm, por sua vez, de processos de pesquisa e desenvolvimento. Manifestam estilos estéticos que contribuem intrinsecamente para o seu valor.

Integram agenciamentos complexos de competências entre colaboradores, fornecedores, parceiros e consumidores. Consolidam uma complexa coordenação. O custo dessas mercadorias envolve o pagamento de taxas sobre patentes e direitos autorais, encargos com treinamento, marketing, publicidade etc. A matéria fica saturada de informações. As coisas acumulam conhecimentos. Uma vez que se trata de uma economia de informações e idéias, a economia está se tornando uma teoria do conhecimento coletivo.

O uso de um saber não o destrói, e sua transmissão não representa uma perda para quem o detém. O saber não é um bem econômico clássico, portanto. Como a dimensão do ciberespaço torna todos os signos virtualmente onipresentes na rede, cai sensivelmente o custo de reprodução ou de acesso a eles. As empresas da chamada Nova Economia tiram a maior parte de seus rendimentos dos serviços intelectuais, copyrights, licenças e patentes. Sua atividade habitual consiste num processo arriscado de aprendizado e pesquisa coletiva. Eles se encontram em situação de mobilização de redes, fomento de comunidades virtuais e concorrência planetária cooperativa no âmbito do ciberespaço. Universidades e laboratórios públicos, por sua vez, raciocinam como empresas, registram patentes, vendem seus serviços intelectuais etc. Em outras palavras, há cada vez mais semelhanças entre o trabalho da Nova Economia e a atividade da comunidade científica (com tendência desta a se sobrepor), ou mesmo com o tipo de trabalho criativo tradicionalmente praticado pelos cidadãos da república das letras e das artes. Trabalhar, atualmente, é dar vida às idéias.

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Gostaria de apresentar agora o triângulo criador daquilo que me parece ser a dinâmica comum à inteligência coletiva e ao capitalismo da informação: idéia, moeda, informação. Devo lembrar que me baseio na seguinte afirmação: A economia da informação é a medida coletiva, ou social, da inteligência. Ora, a inteligência é a produção de signos a partir de signos, linguagem engajada em uma espiral de criação de sentido, interpretação infinita de constelações de signos produzidos por interpretação, dedução, indução, abdução, derivação, amostragem, tradução, cálculo etc.

O signo é em primeiro lugar idéia. A idéia é uma forma, isto é, certa estrutura de relações. Ela é abstrata: podemos encontrá-la, idêntica, em várias situações, circunstâncias, exemplares, translações, cópias diferentes. Como outrora explicou o inventor da idéia de idéia Platão , a idéia é única e estática. Virtualmente, uma idéia (uma obra musical, uma imagem, um poema, um teorema, um programa de informática etc.), para estar disponível à inteligência coletiva, para ser localizada, só precisa de um endereço na rede. Isso não nos impede de conceber a idéia como um acontecimento, já que as idéias aparecem. Mas a invenção (descoberta ou criação) de uma idéia é um acontecimento na eternidade. A idéia pertence à memória.

O signo também é informação. A informação surge do encontro entre uma memória individual (certa associação de idéias) e uma idéia disponível na inteligência coletiva. A informação é tão maior quanto mais improvável for a mensagem que a transmite. O encontro de uma mesma idéia pode produzir informações muito diferentes, dependendo das circunstâncias e das disposições individuais dos que tomam conhecimento dela. A informação representa, portanto, o movimento efêmero do espírito, a fagulha que nasce do choque das idéias. Se a idéia pertence à eternidade, a informação refere-se ao momento. Como a idéia corresponde à memória, isto é, à estabilidade (relativa) e à função acumulativa do espírito coletivo, a informação corresponde à percepção, ou seja, ao fluxo evanescente das diferenças que geram infinitamente outras diferenças na vida do espírito.

Enfim, o signo é moeda. Sabemos que a moeda serve para medir o valor dos bens econômicos e funciona como equivalente geral no ato da troca. Seu caráter puramente virtual revela-se de maneira cada vez mais clara ao longo da história econômica (barras de ouro, moeda cunhada pela comunidade ou pelo reino, moeda fiduciária, moeda sem equivalente material, moeda eletrônica etc.). Os signos monetários também podem servir de tradutores entre idéias, entre informações, entre idéias e informações. Idéias e informações são vendidas e compradas. Elas têm um preço. O dinheiro pode servir para explorar idéias; a informação, para orientar compras e investimentos. Portanto, existem equivalências e circuitos que transformam as idéias e as informações em dinheiro, e vice-versa.

Que relações unem inteligência e dinheiro? Se disponho de certa soma em dinheiro, posso comprar isso ou aquilo, mas não isso e aquilo. Devo escolher e portanto avaliar, hierarquizar as possibilidades que se oferecem a mim. O dinheiro simboliza certo limite. Ele me obriga a enfrentar a finitude e, ao mesmo tempo, a questão do bem e do mal, do melhor e do pior em resumo, as problemáticas interdependentes do valor, da escolha e da liberdade. Se as coisas não custassem nada, agiríamos sem nexo, nada teria sentido. O sentido não tem relação apenas com a forma ideal e com a novidade da informação. Ele também tem necessidade de um preço, de um valor, de uma escolha, de liberdade. Ora, é precisamente por causa de nossa finitude, de nossa mortalidade, que as coisas têm preço e que se impõe a nós a questão da escolha, do que vale mais e do que vale menos. O espírito só é livre diante da morte. Se fôssemos imortais, se o tempo não fosse um recurso limitado, nossos atos seriam indiferentes e a liberdade não teria sentido. O dinheiro transforma essa liberdade e essa mortalidade atuais na inteligência coletiva.

Por meio do investimento, o dinheiro representa também a abertura para o futuro e para o outro, a energia fecundante, a excitação e o risco. Libido econômica, dimensão coletiva da energia psíquica, o dinheiro é gasto e aplicado. Ele representa a dimensão corporal, emocional, energética, sexual, mortal, pragmática do pensamento coletivo, sua dimensão de liberdade encarnada, seu poder. Por isso o dinheiro é tabu, é sujo, rejeitado e secretamente desejado, abertamente adorado, objeto de inveja, roubos e desvios.

Só há inteligência em uma circulação contínua entre a memória, a percepção e a ação. Se a idéia representa a memória da inteligência coletiva e a informação representa a sua percepção efervescente, móbil e partilhada, então o dinheiro ocupa o lugar de vetor de ação da inteligência coletiva: por ele passam a escolha, a avaliação, o engajamento, a finitude e a responsabilidade. Com a idéia, a informação e a moeda, nós temos não só as três dimensões da cognição coletiva mas também as dimensões do tempo, ou seja, a vida do espírito. A idéia encontra-se na eternidade. A informação efêmera resvala, inefável, pelo vértice do momento. O dinheiro, por sua vez, representa a transformação, a passagem, a bifurcação, a morte, a perda, o nascimento, a fecundidade do virtual.

Como as três dimensões do signo geram-se mutuamente? A idéia atrai o dinheiro, que sabe que ela o fará crescer (o capital de risco à procura de boas idéias), porque idéias geram dinheiro. Sem idéias, sem conhecimento, sem obras, sem imagens, sem memória organizada, é impossível ganhar dinheiro. O dinheiro, por sua vez, fornece a energia necessária (em salários, por exemplo) para produzir ou procurar informações, para explorar as idéias. A informação, fechando o círculo, alimenta a eclosão das idéias. Se percorrêssemos o círculo no sentido contrário, descobriríamos que as idéias (a memória) são necessárias para a interpretação das informações. Elas dão sentido ao fluxo informacional que as desloca, entrechoca e organiza. As idéias estendem o véu de eternidade sobre o qual as figuras do sentido tomam forma.

O dinheiro, de sua parte, avalia as idéias: capitais e contratos ganhos, subvenções granjeadas, rendimentos gerados por patentes e direitos autorais, lucros alcançados com a venda de um produto ideal em sua essência da inteligência coletiva. Essa avaliação resulta de uma grande quantidade de escolhas pressionadas, de uma multidão de ações responsáveis, implicadas e concretamente encarnadas no espírito coletivo. Eis aqui o famoso mercado tão odiado, juiz imanente das idéias, expressão nua do desejo e escandaloso como o desejo da inteligência coletiva. Finalmente, a informação representa o sistema perceptivo da inteligência coletiva. Ela orienta o dinheiro, indicando para a energia monetária os pontos possíveis de aplicação. O que consumir? Em que investir? E da enxurrada informacional fecundada pelo poder da liberdade emergem as idéias, que se elevam rumo ao céu inteligível da estratosfera, como estrelas de um universo em expansão.

Escrevo esta conclusão após o 11 de setembro de 2001. A inteligência coletiva não é somente um processo intelectual. Supõe laços de confiança e uma atmosfera de paz e de cooperação. A economia do conhecimento só poderá oferecer seu potencial à humanidade se o ciberespaço se tornar mais acessível a todos e for utilizado não só para os negócios, mas também para debater e resolver coletivamente os grandes problemas da comunidade mundial.

A evolução cultural conseguiu colocar a escravidão fora da lei, proclamar os direitos humanos, tornar irreversível a extensão do sufrágio universal. Agora, começa a concretizar a grande idéia da igualdade dos sexos. Mas estamos só no início da jornada. Ainda padecemos da vergonha da guerra, da vergonha sem apelo e sem desculpa de nos entrematar, de vender armas uns aos outros e de nos incitar mutuamente ao ódio. Se quisermos, se tivermos a coragem de nossa liberdade, podemos despachar a guerra para a pré-história da humanidade. Só um governo mundial, que garanta uma lei democraticamente elaborada pela inteligência coletiva, poderá estabelecer a paz universal. A guerra, de agora em diante, representa um atraso cultural. Na civilização da inteligência coletiva, a agressividade humana poderá ser sublimada na competição econômica ou em mil espécies de guerrilhas informacionais e conflitos virtuais, mas uma justiça mundial tornará o assassinato definitivamente ilegal. Uma vez estabelecida a paz, talvez a dolorosa questão da miséria material e espiritual possa ser resolvida. A paz e a liberdade são as condições sine qua non para a prosperidade: as condições não do fim da história, mas do princípio da verdadeira história, a história de um aprofundamento contínuo da inteligência coletiva e da construção de uma comunidade estendida a toda a humanidade.

O filósofo francês Pierre Lévy leciona na Universidade do Québec em Trois-Rivières, no Canadá.

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