Colheita de soja: alertas de desmatamento poderão ser processados mais rapidamente
Renata Vieira
Publicado em 28 de fevereiro de 2019 às 05h42.
Última atualização em 28 de fevereiro de 2019 às 05h42.
Não há dúvida de que dados confiáveis são primordiais para o planejamento de políticas públicas. Isso se aplica também ao estratégico setor agropecuário no Brasil. Nesse caso, as imagens de satélite e os sistemas de georreferenciamento são imprescindíveis para fornecer dados que permitam monitorar, administrar e planejar ações que garantam o cumprimento da lei — e o uso sustentável dos recursos naturais, já que deles depende a própria sobrevivência da agricultura. Num país de dimensões continentais como o Brasil, onde o desmatamento ilegal ainda é frequente, a tarefa não é das mais fáceis. Ainda assim, sistemas de informação geográfica — entre eles os de identificação de desmatamento — foram desenvolvidos há décadas aqui.
O país conta hoje com 11 sistemas de alerta de desmatamento, com diferentes escalas e periodicidade, e que nem sempre conversam entre si. Eles geram informação para diferentes órgãos públicos, como o Ibama, responsável pela fiscalização ambiental, o ICMBio, que cuida de unidades de conservação, ministérios públicos, governos estaduais e, claro, para o próprio Ministério do Meio Ambiente. Atualmente, o maior e mais importante entre esses sistemas é o Prodes, operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, que monitora o desmatamento da Amazônia e fornece os índices anuais de destruição do bioma desde 1988. Há dois anos, o mesmo trabalho começou a ser feito para o Cerrado.
A despeito de o Brasil possuir um ferramental poderoso — e recursos humanos qualificados para mapear a dinâmica do uso da terra —, falta sinergia entre produção agropecuária, planejamento territorial e conservação florestal. A Amazônia, uma das principais áreas responsáveis pelo balanço de chuvas no país, já perdeu cerca de 20% da cobertura original — e o Cerrado, onde nasce boa parte das bacias hidrográficas brasileiras, mais da metade. “O Brasil é um país maduro para gerar dados, mas ainda é imaturo para usá-los com eficiência”, afirma André Guimarães, diretor executivo da Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura, organização que reúne quase 200 membros, entre empresas do agronegócio, varejistas, ONGs e acadêmicos.
Na prática, alguns dos alertas gerados pelos sistemas em operação no país se sobrepõem, dificultando o trabalho de quem depende disso para tomar decisões. É o caso do Ibama, que, não raro, demora a chegar à exata imagem dos perímetros de desmatamento ilegal pelo país. Alia-se a isso o fato de que nenhum dos sistemas de alerta tem escala nacional. Hoje, eles dão prioridade às áreas mais ameaçadas, como o perímetro dos nove estados da Amazônia Legal, que abrange Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.
A boa notícia é que esse cenário deve mudar. Isso porque o Ministério do Meio Ambiente está prestes a fechar uma parceria com o MapBiomas, um projeto que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia — como o Google — no mapeamento anual da cobertura e da mudança de uso da terra no Brasil (veja entrevista abaixo). O objetivo agora é alçar as informações que já são produzidas por aqui a um novo patamar de detalhamento e agilidade de interpretação. Isso significa que, a cada alerta lançado pelos sistemas em funcionamento, como o Prodes, do Inpe, será possível saber, de maneira mais automática, se o desmatamento em questão é legal ou ilegal, regular ou irregular (quando um proprietário de terra desmata uma área permitida por lei em sua região, mas não tem autorização para isso).
Por conseguir acessar automaticamente outras bases de dados e verificar se a perda vegetal está no perímetro de uma fazenda, de uma terra indígena ou de uma unidade de conservação florestal, o sistema do MapBiomas é capaz de qualificar um alerta de desmatamento e, assim, poupar um trabalho por vezes manual dos órgãos responsáveis, que hoje ainda precisam interpretar o alerta que chega a eles. Tudo isso estará reunido numa plataforma única, aberta e gratuita, cujo acesso aos dados pode ser moldado de acordo com a necessidade dos órgãos, já no mês de março.
Coordenado pelo Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa, da ONG Observatório do Clima, o Map-Biomas é um sistema completamente automatizado — com base em inteligência artificial. Nele, algoritmos classificam imagens de satélite de acordo com o tipo de cobertura do solo identificada — como florestas, plantações, pastagens e áreas degradadas. Cada pixel das imagens é analisado por computador e, a partir disso, a ferramenta é capaz de contar, numa linha cronológica, a história daquele pedaço de terra de 1985 para cá — tudo isso em alta resolução.
“Elaborar mapas de uso da terra com essa rapidez e em escala nacional era quase impossível há alguns anos”, diz Tasso Azevedo, coordenador executivo do MapBiomas. “Isso significa trazer para o monitoramento do uso da terra o nível de detalhe equivalente ao da foto da placa de um carro numa multa por infração de trânsito, um caso inédito no mundo, mesmo em países desenvolvidos.” Cerca de 20.000 servidores na nuvem garantem que tudo seja computado e armazenado.
O bom funcionamento do novo sistema vai depender também da validação do Cadastro Ambiental Rural, que pretende contabilizar o tamanho dos ativos e passivos ambientais do agronegócio brasileiro. Os dados coletados em todo o país nos últimos quatro anos (o prazo de cadastro foi adiado quatro vezes pelo governo) permitirão verificar o cumprimento do Código Florestal — legislação que estabelece os limites de uso da terra em cada um dos biomas e que indica onde a vegetação nativa deve ser preservada.
Pela lei, atualizada em 2012, agricultores e pecuaristas são obrigados a manter trechos de mata ciliar, à beira de rios e córregos, e cotas de vegetação que variam de 20% a 80%, dependendo da região. Numa espécie de declaração de imposto de renda, os fazendeiros reportaram o tamanho, as fronteiras e a composição de suas terras, indicando via imagens de satélite as áreas produtivas e as superfícies de vegetação, conservadas ou degradadas. Cerca de 5,5 milhões de imóveis rurais já foram cadastrados na base do governo — 100% da área passível de cadastro no país.
Mas falta comparar as informações declaradas com as que o governo detém. Sobreposições de limites de propriedades e até de áreas maiores são esperadas, dado o caos de registros fundiários que se vê em alguns estados do país. E é justamente dos estados a responsabilidade de elaborar os chamados Planos de Regularização Ambiental, que restituirão áreas de vegetação nativa desmatadas ou degradadas em cada canto do Brasil. O processo está sob a alçada do Serviço Florestal Brasileiro, que saiu da estrutura do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura no governo de Jair Bolsonaro. O órgão não respondeu às perguntas da reportagem até o fechamento desta edição.
Garantir respostas imediatas aos alertas de desmatamento e, por consequência, políticas efetivas que aliem agronegócio e conservação são imperativos que não dizem respeito apenas ao Brasil. A despeito da pouca simpatia demonstrada pelo atual governo a esse compromisso, o país é signatário do Acordo de Paris, assinado em 2015 por 195 países durante a Conferência do Clima da ONU, a COP21. A mais ampla coalizão para reduzir emissões de gases estufa definiu que é preciso frear o aumento da temperatura global em até 1,5 o C em comparação com a era pré-industrial — e assim evitar que o fenômeno da mudança climática cause impactos ainda mais duros sobre o planeta.
No âmbito desse acordo, o Brasil prometeu restaurar 12 milhões de hectares de floresta. Desde então, não se sabe como e quando essa promessa será cumprida. A única certeza é que ela passa pelo monitoramento eficiente do uso da terra. “O monitoramento vai ser um elemento-chave nos próximos anos, já que muitos países e consumidores estão cada vez mais interessados em rastrear tudo o que tem impacto na mudança do clima”, diz Claudio Almeida, coordenador da seção de processamento de imagem do Inpe.
Enquanto isso, a expectativa de protagonismo depositada no Brasil desde a COP21 tem migrado para a China. Um levantamento recente da Nasa, a agência espacial americana, mostrou que o planeta está mais verde do que há 20 anos, graças, principalmente, à China. A área global de cobertura folhosa cresceu 5% desde o início dos anos 2000 — é um ganho de superfície verde correspondente à área da Floresta Amazônica. Sozinha, a China responde por um quarto desse aumento. Por lá, quase metade do efeito vem do plantio de árvores para reduzir a erosão do solo, a poluição do ar e as mudanças climáticas. Mas não se trata só de floresta — cerca de um terço do aumento da área verde vem de áreas agrícolas. Ainda assim, o esforço dos chineses se faz notar. Por tudo o que representa nessa área, o Brasil não pode ficar para trás.
Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, quer usar inteligência artificial para interpretar mais rapidamente os alertas de desmatamento no Brasil | Renata Vieira
O paulistano Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, quer comandar um amplo esforço de detalhamento e qualificação das informações sobre o desmatamento no Brasil. Embora o país seja um modelo no uso de imagens de satélite para análise de cobertura e ocupação da terra, ainda se leva muito tempo para interpretar os alertas lançados por sistemas de sensoriamento remoto — são 11 sistemas em operação. Salles revelou com exclusividade a EXAME que o plano do governo é aliar a cada alerta de desmatamento um laudo com detalhes sobre o tipo de área derrubada — com informações que indiquem se a prática está em área legal ou ilegal. “Isso facilitará o direcionamento correto da fiscalização”, afirma.
O detalhamento será feito pelo Mapbiomas, um projeto com base em inteligência artificial e que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia. A seguir, uma conversa com o ministro, cercado de polêmicas desde sua indicação para o cargo — como a condenação por improbidade administrativa por ações quando era secretário do Meio Ambiente em São Paulo e uma visita oficial a uma área em Mato Grosso embargada pelo Ibama.
O que dá para melhorar na mensuração do desmatamento no Brasil?
Temos hoje vários sistemas de monitoramento feitos por diversos órgãos, cada um usando uma tecnologia diferente, seja por satélite, seja por radar. Agora vamos unir esforços para ter o melhor sistema de monitoramento possível, que conjugue imagens de satélite, radar e detecção in loco por drones. A isso vamos associar relatórios que qualifiquem o desmatamento, feitos pelo Mapbiomas. Não basta indicar onde e em que medida o desmatamento está ocorrendo. É preciso saber com rapidez que tipo de desmatamento é esse, se é legal, ilegal, regular ou irregular. Com a ajuda de inteligência artificial e algoritmos, essa classificação será possível — e isso facilitará o direcionamento da fiscalização. Vamos reunir o Censipam [órgão das Forças Armadas que monitora a Amazônia], o Ministério da Agricultura, o Ibama e também os estados. Queremos também contratar policiais militares nas horas de folga, num esquema parecido com a diária especial de jornada, em que voluntariamente eles trabalham em atividades complementares. Assim teremos uma força-tarefa mais robusta diante de cada alerta de desmatamento. Esse modelo deve colocar até 400 homens a mais em campo.
O Inpe é uma referência internacional em sensoriamento remoto. O governo está consultando o órgão?
O Inpe faz parte dessa articulação.
Em quanto tempo o novo esquema estará funcionando e quanto custará?
O Fundo Amazônia vai viabilizar isso. Aliás, é um bom destino para esses recursos [o fundo do BNDES reúne doações internacionais para a redução do desmatamento do bioma]. Não é trivial colocar tudo isso de pé, mas também não é tão complicado assim. Em três ou quatro meses, tudo deve estar rodando plenamente. E tudo isso tem um objetivo: somos muito rigorosos com o que é ilegal, mas não vamos perseguir o que não é ilegal.
Com as mudanças na estrutura do governo, como ficam o PPCDAM e o PPCerrado, os principais programas oficiais de combate ao desmatamento?
Esses programas estão na Secretaria de Biodiversidade, junto com a Secretaria de Qualidade Ambiental. Há uma questão de mudança na nomenclatura, mas a atividade continua lá, não abrimos mão disso. O tema não está relegado a segundo plano, de maneira nenhuma. Pelo contrário.
O que está sendo pensado para desestimular a ilegalidade, algo que vá além do monitoramento e da fiscalização?
Precisamos de incentivos para mostrar a quem está na ponta — o agricultor, o pecuarista, quem faz o manejo florestal de madeira — que existem formas de compensá-lo financeiramente pelas atividades sustentáveis. Para isso, são necessários instrumentos financeiros consistentes, que cheguem até o destinatário final. Se ele não tiver um ganho, vai acabar não fazendo. Tivemos reuniões com o Banco Mundial para captar recursos para isso. Para pagamentos por serviços ambientais, a captação deve chegar a 96 milhões de reais. E o incentivo é para quem fizer a mais do que manda a lei. Para quem tem a opção de fazer a supressão vegetal e escolhe voluntariamente não fazê-la, essa escolha precisa ser feita com base na possibilidade de uma compensação financeira clara que ga-ranta, também, o direito futuro de voltar atrás, se quiser.
Dar crédito mais barato a quem preserva mais é uma possibilidade de incentivo?
A ideia é muito boa, mas minha preocupação — e da ministra da Agricultura — é que, quanto mais complexo o mecanismo, mais difícil é fazer com que ele seja efetivo e atinja as pessoas na ponta. A concessão de crédito com ônus reduzido exigiria mais partes para opinar, como o Ministério da Economia, além de revisões orçamentárias ano a ano. Numa equação mais direta, a obtenção de recursos internacionais, como os do Fundo Amazônia, pode ser mais efetiva.
Ainda falta validar os dados do Cadastro Ambiental Rural e construir os planos estaduais de recuperação ambiental. Disso depende a meta do país de plantar 12 milhões de hectares de floresta. Como o Ministério do Meio Ambiente vai ajudar?
Nós temos um papel de indutor da solução. Vários estados já criaram seus modelos de planos de regularização ambiental, mas são sistemas diferentes, que, em alguns casos, não conversam bem tecnologicamente com a base de dados do Cadastro Ambiental Rural. Queremos montar um sistema em nível nacional, considerando as peculiaridades de cada bioma, e oferecer para os estados, desonerando-os.
O senhor é a favor do autolicenciamento rural. Isso não vai na contramão da prevenção e do controle do desmatamento?
Trata-se do mesmo princípio do Cadastro Ambiental Rural, que é autodeclaratório e submetido a verificação a posteriori. O produtor faz o licenciamento, e o Estado se equipa para verificar a veracidade daquilo. O CAR já está funcionando desse modo e o licenciamento pode funcionar assim também.