Revista Exame

Uma cura para o SUS

O avanço da covid-19 no Brasil coloca os hospitais à beira do colapso e mostra a necessidade de rever o modelo, integrando melhor setores público e privado

Hospital de campanha no Rio de Janeiro: a pandemia é uma situação excepcional, mas expôs a fragilidade da saúde pública (Allan Carvalho/AGIF/Estadão Conteúdo)

Hospital de campanha no Rio de Janeiro: a pandemia é uma situação excepcional, mas expôs a fragilidade da saúde pública (Allan Carvalho/AGIF/Estadão Conteúdo)

O Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta a maior prova de fogo desde que foi criado pela Constituição de 1988 com a missão de oferecer saúde a todos os brasileiros. Não é preciso ser um observador arguto para constatar que essa meta está longe de ser alcançada. Conforme a pandemia do novo coronavírus avança no país, mais a saúde pública se aproxima de um colapso. O Brasil tem cerca de 50.000 leitos de UTI, metade pertencente ao SUS, metade à rede privada. O problema é que menos de 25% dos brasileiros têm um plano de saúde privado, enquanto mais de 75% — cerca de 160 milhões de pessoas — dependem exclusivamente do SUS. Vários hospitais já não comportam receber novos pacientes de covid-19, o que motivou as propostas de criação de fila única em UTIs de hospitais públicos e privados.

Parentes aguardam boletim médico em hospital de São Paulo: lotação máxima | Ronny Santos/Folhapress

Apesar da situação caótica, agravada pelas mudanças frequentes no comando do Ministério da Saúde, responsável pela gestão nacional do sistema de saúde pública, é preciso reconhecer: ruim com o SUS, pior sem ele. “A epidemia não pegou apenas o SUS despreparado, mas todos os sistemas do mundo”, diz o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

“Nem poderia ser diferente, pois ninguém se prepara para uma crise desse tamanho com antecedência, mantendo milhares de leitos desocupados.” (Leia entrevista abaixo) Nos Estados Unidos, onde a covid-19 já causou quase 90.000 mortes, uma pesquisa recente mostrou que uma em cada sete pessoas não procuraria um hospital se ficasse doente porque não teria condições de pagar a conta. O país não tem um sistema de cobertura de saúde universal — para usar os serviços, é preciso ter um plano privado.

Por aqui, os brasileiros enfrentam outros problemas: longas filas para marcar uma consulta ou iniciar um tratamento, falta de hospitais e médicos fora dos grandes centros urbanos, má gestão das instituições. Pelo menos em teoria, porém, nenhuma pessoa pode ter negado o acesso aos serviços de saúde. A Constituição brasileira estabelece que a saúde é “direito de todos e dever do Estado.” Cabe à União, aos estados e aos municípios fornecer os recursos para assegurar esse direito.

Comparado a outros países, o Brasil gasta pouco com saúde — 9,2% do PIB, ante 16,9% nos Estados Unidos. Com a necessidade de conter os gastos públicos, só a União deixou de receber 20 bilhões de reais para investir em saúde em 2019. No total, os governos federal, estaduais e municipais gastaram algo em torno de 284 bilhões de reais com saúde no ano passado. É uma dinheirama, mas, dividida pela população, dá menos de 1.400 reais por pessoa — não permite pagar um check-up completo, muito menos uma cirurgia de alta complexidade. A conta não fecha.

GESTÃO UNIFICADA

A ideia de criar uma gestão unificada dos leitos públicos e privados, para atender à sobrecarga de demanda gerada pela pandemia, tem encontrado resistência. “É preciso tomar cuidado para haver uma contratação de leitos de forma organizada e não trazer uma situação de caos, em que o usuário que pagou o plano de saúde não encontre um leito na hora que precisar”, diz Vera Valente, diretora executiva da FenaSaúde, que representa operadoras de planos e seguros privados. Algumas empresas têm feito doações para ampliar a capacidade de atendimento do SUS. A Rede D’Or investiu até agora 120 milhões de reais em ações de apoio ao poder público, criação de leitos permanentes ou provisórios e entrega de equipamentos em sete estados.

O United-Health Group Brasil, dono da Amil, doou 38 milhões de reais para ações de combate à pandemia, como compra de equipamentos de proteção pessoal e habilitação de leitos para uso do sistema público. A Hapvida, com forte atuação no Norte e no Nordeste, onde a falta de leitos é mais crítica, tem tido pouco contato com o poder público, mas investiu 65 milhões de reais no combate à covid-19 em seu próprio sistema. “Estamos trabalhando para garantir o atendimento a nossos beneficiários. Ao fazer isso, reduzimos a demanda no SUS”, diz o diretor financeiro Bruno Cals.

Hospital no Japão: para garantir a cobertura de saúde a todos, o país cobra uma contribuição de empresas e funcionários | Issei Kato/Reuters

Se o sistema público de saúde está debilitado por falta de recursos, o sistema privado também anda combalido. Desde 2010, o país perdeu quase 35.000 leitos em hospitais privados, a maioria em cidades do interior. Entre as razões para isso está a defasagem da tabela de pagamento dos serviços — os hospitais privados são responsáveis por 52% dos atendimentos feitos pelo SUS. A grande maioria é realizada por entidades filantrópicas. O SUS paga, por exemplo, pouco mais de 400 reais por uma cirurgia para remover o apêndice, cujo custo médio, segundo o setor, é de cerca de 2.200 reais. A consulta médica sai por 10 reais. “O vírus mostrou como é frágil a remuneração do serviço de saúde pública”, afirma Mirocles Véras Neto, presidente da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos. “Esse formato precisa mudar urgentemente para conseguirmos continuar atendendo de forma digna e sem endividamento.”

A redução do número de leitos do setor privado se explica também pelo encolhimento da saúde suplementar. Os planos de saúde perderam cerca de 3,5 milhões de beneficiários desde 2014 devido à crise econômica e ao desemprego. Com menos pacientes, os planos demandam menos dos hospitais, que perdem receita. A questão se agravou com a pandemia. O isolamento social fez com que muitas cirurgias e procedimentos eletivos fossem adiados, levando a uma perda de receita que em alguns casos chega a 40%, de acordo com a Confederação Nacional de Saúde, que reúne hospitais, clínicas e outros estabelecimentos de saúde.

O A.C. Camargo, hospital paulistano especializado no tratamento de câncer, teve redução de 60% em exames para o diagnóstico da doença na comparação entre abril deste ano e abril de 2019. O número de cirurgias caiu pela metade. Parte das perdas dos hospitais é compensada com o tratamento de pacientes com a covid-19. Mas o dinheiro que entra não é suficiente para fechar a conta, uma vez que os procedimentos adiados, em geral, são mais rentáveis do que o atendimento ao paciente com coronavírus. “As pessoas pensam que os serviços de saúde estão bem financeiramente neste momento, porque estão lotados. Mas isso não é verdade”, afirma Breno Monteiro, presidente da Confederação Nacional de Saúde.

Cirurgia com a ajuda de robô: o aumento da complexidade e dos custos exige novas formas de remuneração | Daniel Rinaldi

A maior parte dos hospitais privados é de pequeno porte, com até 50 leitos, o que muitas vezes os torna inviáveis economicamente. Na Rede D’Or, a maior do país, com mais de 40 hospitais, a média é de 170 leitos por unidade. A pandemia deve agravar a situação de empresas de pequeno e médio porte e acelerar a consolidação do setor. Há também, claro, os problemas de gestão, o que aumenta os custos e gera disputas entre operadoras de saúde e redes credenciadas. O modelo vigente em boa parte do país é o fee-for-service, no qual o hospital fica liberado para realizar exames e tratamentos e depois manda a conta ao plano.

O resultado é o aumento nos preços. Em 2019, os custos médicos tiveram alta de 16%, ante uma inflação de 4,3%. Na Amil, 40% dos contratos já não seguem o modelo fee-for-service, substituído por alternativas que buscam maior eficiência. A expectativa da operadora é que, passada a pandemia, o tema da gestão dos custos seja tratado com mais transparência pelos hospitais. “A pandemia será um catalisador para falarmos desse assunto”, diz Daniel Coudry, presidente da Amil. “Ou sai todo mundo junto desse problema da inflação médica, ou vamos continuar perdendo beneficiários.”

O estrangulamento financeiro tanto do setor público quanto do privado evidencia a baixa eficiência do sistema como um todo. Para o consultor André Medici, economista de saúde e editor do blog Monitor de Saúde, a raiz do problema está no fato de o SUS precisar atender — gratuitamente — todas as pessoas que procuram seus serviços, independentemente da capacidade financeira de cada uma. Com isso, mesmo os 25% de brasileiros que têm um plano de saúde acabam utilizando o SUS para procedimentos não cobertos pelos convênios privados.

“Hoje, os planos de saúde não têm o mesmo conjunto de coberturas que tem, teoricamente, o SUS. Mas deveria haver uma cobertura básica igual para todos”, diz Medici. Segundo ele, os sistemas público e privado precisariam ser integrados, formando uma grande base de dados com as informações de cada paciente — com seu histórico de saúde, os exames que realizou, se tem ou não um plano de saúde e sua condição socioeconômica. Quem tivesse capacidade financeira para pagar por um plano de saúde do SUS deveria pagar um prêmio. “Com isso, sobrariam recursos para atender pessoas de menor renda, que são as que recebem atualmente a pior, ou nenhuma, atenção do SUS”, diz Medici.

Lá fora, vários países que oferecem cobertura universal adotam o entendimento de que sistema público não é sinônimo de sistema 100% gratuito. Mesmo no Brasil, claro, o SUS não é gratuito, uma vez que é bancado por impostos do conjunto da população. Mas, para garantir a sustentabilidade do sistema, alguns países passaram a cobrar uma contribuição adicional. No Japão, o sistema de saúde é financiado por um prêmio mensal pago pelo segurado, equivalente a 5% da renda do trabalhador, com igual contrapartida do empregador. Além disso, o segurado paga 30% de coparticipação sobre o valor dos serviços, até um teto. Na Alemanha, os empregados recolhem 7,3% do salário mensal para o fundo do seguro-saúde obrigatório, enquanto os empregadores recolhem mais 7,3%.

No Reino Unido, que inspirou o modelo brasileiro, a população tem acesso gratuito ao sistema de saúde, com exceção dos serviços oftalmológico, dentário e da compra de medicamentos, na qual há coparticipação. O NHS (o SUS local) é um dos maiores empregadores do mundo, com 1,5 milhão de funcionários. Em abril, depois de se recuperar de um quadro severo de covid-19 que o levou à UTI, o primeiro-ministro Boris Johnson afirmou que o NHS salvou sua vida. Mesmo em um país com um sistema público de saúde bem avaliado, 10% da população mantém um plano privado, que dá acesso mais rápido a certos serviços, como as cirurgias eletivas.

No Brasil, a pandemia trouxe à tona a dificuldade de desenhar um sistema de saúde que seja, ao mesmo tempo, eficiente e acessível. “Há um dilema entre a segmentação e a universalização”, diz Eugênio Vilaça Mendes, consultor do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde. “Precisamos de ações concretas para fazer uma comunicação entre os sistemas privados, o de saúde suplementar e o SUS.” O caminho para isso, segundo ele, é fazer com que o sistema único opere em redes integradas, com a regulação central nas secretarias estaduais. Ao mesmo tempo, é preciso definir macrorregiões de saúde, onde se daria a convergência dessas redes. “Nenhum município sozinho consegue lidar com tudo”, diz Paulo Chapchap, diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês. “Com os sistemas isolados, sobram recursos em um lado e faltam no outro.”

Mensagem de agradecimento ao sistema público de saúde do Reino Unido: o primeiro-ministro Boris Johnson testou e aprovou | Lindsey Parnaby/AFP

Uma tendência para os próximos anos é uma reforma na maneira como os serviços de saúde são remunerados. O advento de uma gestão baseada em dados permitirá que novas formas de medir a eficiência e a qualidade do atendimento sejam consideradas, dentro do conceito de value-based healthcare, ou “assistência médica baseada em valor”. “A remuneração por serviço prestado torna a relação entre o prestador e quem paga a conta, seja um operador privado, seja o governo, muito conflituosa”, diz Renato Carvalho, presidente da farmacêutica Novartis.

“Ao ser estabelecida uma remuneração baseada em valor, o foco sai da doença e passa para a cura.” Na prática, a ideia é que a remuneração ocorra pelo resultado, ou seja, quanto menor a necessidade de intervenção médica, mais o hospital, a clínica ou o profissional de saúde recebem. Hoje, quanto mais tempo o paciente ficar internado, maior será o pagamento pelo serviço. A ideia é inverter essa lógica.

A pandemia do coronavírus trouxe alguns avanços, como a consciência de que a gestão é tão importante quanto a disponibilidade dos recursos. “Sem uma gestão adequada, os custos se tornam proibitivos, tanto para o sistema público quanto para o privado”, diz Luiz Carlos Nogueira, especialista em gestão de saúde da consultoria Falconi. A crise também mostra que a melhoria da gestão passa pela integração dos dados de saúde de todos os brasileiros.

“A chegada do coronavírus tornou mais evidente a necessidade de um sistema único, com informações de saúde de cada cidadão”, diz Alessandro Acayaba de Toledo, presidente da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios. Reunir esses dados, no entanto, exigirá um esforço conjunto. Mais do que nunca, o Brasil precisará da colaboração de todos para ter um sistema de saúde que, de fato, se torne único.


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