Ricardo Bayona, 47 anos,ex-gerente sênior de contas (Germano Lüders/Exame)
Carla Aranha
Publicado em 4 de junho de 2020 às 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h47.
Por duas vezes, o desemprego bateu à porta do economista Ricardo Bayona. A primeira foi em 1994, quando o Plano Real foi lançado e a moeda brasileira foi equiparada ao dólar. Na época, com 21 anos, ele trabalhava em um banco na área de exportação e toda a operação foi inviabilizada com a então valorizada nova moeda. Bayona e todos na equipe foram desligados. A segunda foi durante a pandemia do coronavírus. Aos 47 anos, o economista era gerente sênior na empresa americana Group 1, de varejo de automóveis, e foi demitido em março.
Se ao longo da carreira Bayona viu as empresas se transformarem com a tecnologia, agora sente uma grande angústia em ficar de fora do mercado de trabalho no pós-covid. “A sensação agora é diferente. Na época do Plano Real, logo me recoloquei. No caso da pandemia, eu não sei dizer. Antes, eu estava no segmento afetado. Desta vez, o mundo todo está”, diz.
Assim como Bayona, outros 12 milhões de brasileiros enfrentam os impactos e a ansiedade do desemprego. Boa parte desse contingente já estava fora do mercado de trabalho antes do surgimento da covid-19. A recessão dos anos 2015 e 2016 eliminou quase 3,5 milhões de empregos, sendo que parte deles nunca mais voltou a ser ofertada. O Brasil, que chegou a ter uma taxa de desemprego de 4,8% em 2014, voltou ao patamar de 12% — ora um pouco mais, ora um pouco menos. A pandemia do novo coronavírus só agravou a situação. Apenas em abril, 1,4 milhão de postos fecharam, segundo um acompanhamento do Ministério da Economia.
O saldo, que leva em conta o número de demitidos e admitidos no mês, ficou negativo em 860.000 postos, o pior resultado da série histórica, iniciada em 1992. E o mais grave ainda pode estar por vir: a expectativa é que outros 8 milhões de pessoas percam o emprego até o fim do ano como reflexo da crise econômica prolongada, segundo um estudo exclusivo da Fundação Getulio Vargas. “Caso a previsão de desemprego deste ano se confirme, será o pior desempenho pelo menos desde a década de 1980, quando tivemos uma crise seriíssima no país, com hiperinflação e demissões em massa”, diz a economista Luana Miranda, uma das autoras do estudo da FGV.
O choque no mercado de trabalho na pandemia está diretamente conectado ao desempenho econômico do país em 2020, e a previsão é que haja uma recessão de 6,5% neste ano — número que vem sendo revisto semana após semana. “Quanto mais tempo durar a crise na saúde, com o aumento do número de casos de coronavírus, mais tempo levará para a economia se recuperar”, afirma o economista Daniel Duque, também da FGV, especializado em mercado de trabalho. Reabrir o comércio, os serviços e as atividades produtivas em geral em plena curva ascendente da covid-19 pode ser pouco efetivo. “Precisamos contar com a forte possibilidade de que as pessoas simplesmente não voltem a frequentar esses locais por medo de pegar a doença”, diz Duque.
Mesmo no pós-pandemia, a maioria das empresas, com o faturamento em níveis críticos, deverá levar alguns meses até conseguir um fluxo de caixa mais saudável e ter condições para começar a contratar novamente. “Haverá uma perda na massa salarial por causa do desemprego, formal ou informal, e as pessoas terão, portanto, menos dinheiro para gastar”, diz o economista Naercio Menezes, do Insper. A FGV estima uma queda de 10,4% na renda média dos brasileiros neste ano, o que terá impacto direto no consumo e nos investimentos das empresas no país, que deverão cair 8% e 15%, respectivamente.
O drama do desemprego no Brasil inclui uma massa de trabalhadores informais que chegou a 41% da população ocupada no ano passado, o equivalente a quase 39 milhões de pessoas. Em outros países, essa taxa costuma ser bem menor. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos Estados Unidos os informais representam menos de 8% da força de trabalho. No Japão, são cerca de 10%; e na Espanha, 17%.
“Essa herança de trabalhadores informais observada no Brasil ao longo dos últimos anos complica a situação do nosso mercado de trabalho”, diz o economista Helio Zylberstajn, da Universidade de São Paulo. Trata-se de um contingente que, em momentos de crise, é mais sujeito a perder a renda de uma hora para a outra. O ex-vendedor Claudio Viana perdeu o emprego numa loja de construção na zona leste de São Paulo. Sem perspectiva de achar um novo posto tão cedo, passou a fazer corridas na Uber. “Mas, por causa da covid, os usuários têm medo de pegar carro de aplicativo.”
Não fossem os programas criados pelo governo, como o auxílio emergencial de 600 reais por mês para desempregados e informais, os economistas acreditam que a situação seria bem pior. Outra medida que reduziu as demissões foi o Programa Emergencial de Emprego e Renda, em vigor desde o início de abril, que permitiu a suspensão do contrato de trabalho por 60 dias, além da redução de salários e da jornada de trabalho durante 90 dias. O governo complementa a renda por meio do seguro-desemprego. Segundo cálculos do Ministério da Economia, foram preservados 8,5 milhões de empregos. “A questão é que não dá para estender por muito tempo o auxílio de 600 reais ou o programa emergencial sob o risco de aumento abrupto do déficit fiscal”, diz Menezes, do Insper.
A deterioração do mercado de trabalho vem em péssima hora no Brasil. Ela ocorre em um momento que os economistas chamam de bônus demográfico. O fenômeno mede a relação entre o número de pessoas em idade considerada dependente (crianças, adolescentes e idosos) e o número daquelas em idade produtiva (de 15 a 64 anos). Um país que tem, proporcionalmente, mais gente em idade para trabalhar do que aquelas que precisam ser sustentadas tem um incentivo para enriquecer.
Os países ricos já usufruíram esse período vantajoso para a economia. Por ter uma estrutura etária mais rejuvenescida, o bônus demográfico no Brasil deverá durar até 2030 — e depois disso a relação entre os que produzem e os que são dependentes economicamente se inverte. O problema é que o país já desperdiçou a última década. O estoque de empregos hoje no Brasil está no mesmo nível de 2011. Com a crise, o país poderá retroagir ainda mais. “Há uma geração de jovens e adultos em plena capacidade de trabalhar que está sendo desperdiçada”, diz o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE.
O desemprego entre os mais jovens é ainda mais dramático. No país, 27% dos que têm de 18 a 24 anos e querem trabalhar não conseguem uma vaga. Lucas Santos, de 24 anos, é um dos que perderam o emprego na pandemia. Ele trabalhava como executivo de contas para uma empresa de Portugal que atende agências de turismo, a Airmet, e conta que metade da equipe no Brasil foi desligada em abril. “Foi uma área muito impactada.” Santos disse que até é possível encontrar vagas em turismo no mercado, mas com um salário muito baixo. “Não era contratado e ainda não consegui o auxílio emergencial, mas não estou no sufoco, pois moro com meus pais, que estão trabalhando. Estou aberto a vagas em outras áreas.”
Desemprego global
Com a pandemia, o Brasil não está sozinho na batalha contra a onda de desemprego atual. Nos Estados Unidos, mais de 40 milhões de trabalhadores foram demitidos desde o início da crise do coronavírus. Esse nível de desemprego só não é pior do que o tombo econômico que resultou na quebra da bolsa em 1929 — no auge da crise, em 1933, a taxa de desemprego chegou a 25%. Na Europa, fortemente afetada pela propagação da covid-19, o índice de desemprego poderá chegar a 25% neste ano, com 60 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, de acordo com um estudo da consultoria McKinsey. Estimativas da OIT apontam que, com a pandemia, o número de horas que deixarão de ser trabalhadas no segundo trimestre eliminará o equivalente a 305 milhões de empregos no mundo.
O chacoalhão no mercado de trabalho provocado pela covid-19 vai antecipar tendências tidas como certas no futuro. “A pandemia deve acelerar o processo de automação das funções do mercado de trabalho”, diz o economista Carl Benedikt Frey, professor na Universidade de Oxford, no Reino Unido, considerado uma das maiores autoridades no mundo quando o assunto é o impacto da tecnologia no mercado de trabalho (leia entrevista abaixo). Esse movimento aconteceu na crise de 2008. Um estudo dos economistas Nir Jaimovich e Henry Siu, pesquisadores do Bureau Nacional de Pesquisa Econômica (NBER, na sigla em inglês), provou que parte dos empregos destruídos na crise financeira nunca mais voltou. Se em dezembro de 2007 o nível de ocupação da mão de obra americana era de 63%, com a crise chegou a 59% em 2009. Passados mais cinco anos da crise, o nível de emprego se manteve o mesmo nos Estados Unidos.
Boa parte dos postos perdidos na crise de 2008 era de funções repetitivas ou que exigiam baixa capacidade cognitiva. Em 2002, ambas representavam 53% do mercado de trabalho americano, segundo um estudo da consultoria McKinsey. Em 2016, haviam caído para 49% — e a expectativa para 2030 é que sejam equivalentes a 41% do total de horas trabalhadas. De acordo com outro estudo, este da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a automação industrial e a evolução tecnológica deverão fazer com que 14% dos empregos desapareçam no mundo na próxima década. Deverão ser mais afetadas as funções que exigem menos qualificação, como operadores de máquinas, atendentes e outras tarefas que podem ser exercidas por robôs e softwares de inteligência artificial.
Portanto, a crise da covid-19 será mais um motivo de ansiedade no mundo do trabalho. Isso porque muita gente não se sente preparada para as mudanças inevitáveis. Uma pesquisa realizada pela consultoria PwC do final de 2019, com mais de 22.000 pessoas em 11 países, mostra que, no Brasil, 84% dos entrevistados acreditam que os avanços tecnológicos vão impactar os postos de trabalho nos próximos cinco anos. Globalmente, 54% dos trabalhadores temem que sua função se torne obsoleta até 2024. “Já era esperado um impacto grande na força de trabalho, que agora se junta aos estragos provocados pela covid-19”, afirma o consultor Fabio Cajazeira, sócio da PwC Brasil.
Tratado como um risco futuro e ainda distante, o impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho vem sendo intensamente discutido na última década. Pois bem, a pandemia exigiu que em poucas semanas estratégias de transformação digital fossem implementadas a toque de caixa. Com o fechamento de quase todo o comércio no país, a Via Varejo colocou cerca de 20.000 vendedores em casa.
A solução foi criar um aplicativo de auxílio de vendas via WhatsApp, o Me Chama no Zap. Um grupo inicial de 1.000 vendedores passou a utilizar a ferramenta. Hoje, 7.500 funcionários da empresa auxiliam remotamente as operações de e-commerce da rede de varejo e 70% das vendas da empresa são feitas online. “A ideia é que depois da pandemia os vendedores continuem a auxiliar as vendas online dentro da loja”, diz Roberto Fulcherberguer, presidente da empresa. Ou seja, novas habilidades e funções surgiram no meio da crise.
A pandemia também jogou luz sobre a forma como as empresas se organizam e operam. Grandes empresas, como Twitter e Facebook, já anunciaram aos funcionários a possibilidade de trabalhar em casa para sempre — o que significa gastar muito menos com imensos escritórios modernosos em áreas nobres de metrópoles. Um estudo ainda inédito conduzido por Frey, da Universidade de Oxford, analisou 483 ocupações e concluiu que 113 poderiam ser executadas remotamente. Na economia americana, isso equivaleria a 52% da força de trabalho. “Isso trará impactos profundos em uma série de segmentos da economia, como a construção civil e os segmentos de apoio às atividades corporativas”, diz Frey.
O distanciamento social também quebrou as resistências dos consumidores com o uso de tecnologia, deixando o público mais propenso a abrir mão de contato humano e presencial em diversos serviços, do supermercado ao atendimento de saúde. “O risco não é os empregos desaparecerem, mas diminuir o volume de vagas. Em um atendimento de call center, o serviço não será feito totalmente por robôs. Com mais fases automatizadas, se antes a empresa precisava de 100 pessoas, talvez passe a ter 80 ou 70”, diz Alfredo Pinto, sócio e presidente da consultoria Bain & Company para a América do Sul. O drama do desemprego é real para quem perdeu seu lugar no mercado de trabalho. Falta dinheiro e sobra ansiedade para que dias melhorem venham logo. Mas a ameaça de sermos substituídos por robôs ou aplicativos inteligentes é mais um componente em meio a uma crise global.
A PANDEMIA ACELERA A AUTOMAÇÃO DA ECONOMIA
Para o economista Carl Benedikt Frey, assim como ocorreu em outras recessões, a substituição de trabalhadores por máquinas é inevitável | Fabiane Stefano
O economista sueco-alemão Carl Benedikt Frey vem estudando os efeitos da tecnologia no mercado de trabalho há mais de uma década. Professor na Universidade de Oxford, no Reino Unido, Frey acredita que a pandemia do coronavírus, que tem causado desemprego em massa no mundo, está gerando uma nova onda de ansiedade entre os trabalhadores. Assim como em outros períodos de recessão, a automação aumenta nas crises e elimina funções consideradas obsoletas. Leia os principais trechos da entrevista concedida à EXAME via videoconferência.
Qual é o impacto da tecnologia no mercado de trabalho em meio a uma pandemia?
O coronavírus não está mudando uma tendência, mas acelerando a revolução tecnológica. Estamos no meio de uma recessão global, que pode se tornar uma depressão global, e sabemos que em períodos de desaceleração a automação aumenta visando ao corte de custos. Isso aconteceu na Grande Recessão, de 2008, em que funções foram substituídas por robôs e plataformas conectadas. E esses empregos nunca mais voltaram.
De que forma a automação aumenta durante uma pandemia?
Numa recessão, os consumidores diminuem o padrão de consumo, seja por queda de renda, seja por medo do futuro. Então, se as pessoas passam a ir mais ao McDonald’s do que a restaurantes tradicionais, elas estão indiretamente contribuindo para o aumento da automação na cadeia de alimentos, pois as redes de fast-food têm mais etapas automatizadas no preparo da comida, assim como têm menos garçonetes e outros funcionários. Isso ocorre em diferentes tipos de negócio.
Mas o aumento do desemprego na pandemia é um problema real para milhões de pessoas...
A crise do coronavírus tem nos mostrado as desigualdades na sociedade. Os trabalhos que podem ser feitos remotamente, em geral, são os mais bem pagos. Na indústria financeira, 80% das funções podem ser realizadas à distância. Na área de lazer e hospitalidade, isso é cerca de 10%. Os trabalhos mais expostos à automação são os que menos podem ser executados remotamente, o que gera uma onda de ansiedade entre os trabalhadores. Esse é o centro das tensões que vemos agora. Ao mesmo tempo, temos de agradecer imensamente pelos avanços tecnológicos, pois, se a pandemia do coronavírus ocorresse 30 anos atrás, ninguém seria capaz de trabalhar em home office. Eu não poderia dar aulas online e esta entrevista não poderia ser feita via Zoom. O balanço é positivo, mas também é claro que os benefícios não são acessíveis a todos.
Mas como lidar com os desequilíbrios gerados pela revolução tecnológica?
Em períodos de expansão econômica, quando as pessoas perdem o emprego para a mudança tecnológica, não chega a ser um problema, pois há vagas no mercado e maior capacidade de barganha. Nas recessões, ocorre o oposto. Sempre foi assim. O que me preocupa é que a automação está aumentando no mundo, mas há uma desaceleração na criação de novos empreendimentos. No ciclo dos negócios, uma empresa nasce com poucos empregos, depois expande e contrata mais gente, passa a comprar de cadeias globais de fornecimento e começa a automatizar as operações. É nesse momento que ela começa a liberar mão de obra para o mercado, e outros negócios que estão surgindo absorvem os recém-demitidos. Mas novos negócios não estão sendo criados. Suspeito que isso ocorra pela combinação de maior regulação e maior pressão das grandes companhias, que são menos inovadoras e mais conectadas politicamente, criando barreiras de entrada.
Há muita expectativa em relação ao potencial da inteligência artificial. Como avalia seus resultados até agora?
Existe uma excitação em torno da inteligência artificial, cujos resultados ainda são desanimadores. A tradução automática, por exemplo, está muito melhor hoje do que era, mas não se compara ao trabalho dos tradutores humanos. Essa é uma tecnologia que está sendo aperfeiçoada e permitirá no futuro que países exportem serviços, intermediados pela tradução automática e eliminando a barreira da língua. As pessoas olham com certo pessimismo para a inteligência artificial: “É isso que vai mudar o mundo?” Houve a mesma reação ao motor a vapor, à eletricidade, aos computadores. Provou-se que estavam erradas no longo prazo.
Quais lições o senhor tira desta nova revolução tecnológica?
O que aprendemos agora não é muito diferente de revoluções tecnológicas anteriores. Quando os protótipos aparecem, eles não estão prontos para ser adotados em larga escala. Isso ocorreu nos estágios iniciais do motor a vapor, cuja principal utilidade no começo era drenar as minas de carvão, que sofriam com inundações. Leva tempo para uma tecnologia se tornar efetiva. Mas o avanço tecnológico beneficia todo mundo. Apesar da disrupção causar dores no meio do caminho, ela traz mais vantagens no longo prazo.