Obra no eixo leste da transposição: até março, a água do rio São Francisco tomará todo o percurso de Pernambuco à Paraíba (Germano Lüders/Exame)
Renata Vieira
Publicado em 3 de março de 2017 às 05h55.
Última atualização em 3 de março de 2017 às 15h03.
Ceará, Paraíba e Pernambuco – De um caminhão-pipa, a água transborda e vaza, ligeira, calçada adiante. Refresca o chão fervente e umedece as raízes de um pequizeiro que, sob um sol inclemente de 40 graus, colore de verde e amarelo a única praça do povoado de Moderna, em Sertânia, coração do sertão pernambucano. Da varanda de casa, Alzira Umbelina, uma senhora de 68 anos, esbraveja com os dois rapazes que, sem muito cuidado, manuseiam as mangueiras do caminhão e deixam um tanto de água se espalhar pelo chão.
É fácil entender sua irritação. Há três anos, ela só recebe água potável na torneira a cada 15 dias. Com a água salobra tirada do poço aberto na praça é que ela lava as roupas e mata a sede dos poucos animais que ainda cria em seu pequeno sítio, a 2 quilômetros de casa. Há 42 anos vivendo em Moderna, Alzira tem hoje apenas uma vaca e um bezerro, algumas galinhas e poucos bodes magros, mais resistentes do que os bois à tortura da estiagem. As safras de milho e de feijão que serviam de alimento para a família e para os animais deram lugar a um solo arenoso e rachado. Alzira diz não se lembrar de seca pior do que esta. Mas recorda-se bem da promessa que escuta há décadas: “Sempre nos dizem que a água vai chegar, mas a tal da água nunca chegou”.
A 50 quilômetros dali nasce o rio Moxotó, eixo de uma das principais bacias hidrográficas do Nordeste, que receberá a água tão esperada por Alzira: a da transposição do rio São Francisco. Com 2 800 quilômetros de extensão ao longo de cinco estados, de Minas Gerais a Alagoas, o São Francisco detém 70% da oferta hídrica do Nordeste — que, por sua vez, guarda apenas 3% da reserva de água doce do país.
Objeto de estudo de vários governos desde o final do século 19, o projeto de desvio de suas águas em direção ao semiárido nordestino só saiu do papel em 2007, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Passados dez anos de obras, a transposição está prestes a ser concluída — ao custo de 9,6 bilhões de reais, mais que o dobro do orçamento traçado, e sob denúncias de corrupção.
Trata-se da maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil. Dividida em dois longos canais, a transposição levará 1,4% da vazão do rio São Francisco, partindo de Pernambuco, a rios não perenes e a 27 reservatórios de Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e também Pernambuco. Na cidade de Monteiro, na Paraíba, ponto final do chamado Eixo Leste da transposição, a água chegará até o começo de março.
Em abril, deverá estar disponível para captação no açude Epitácio Pessoa, conhecido como Boqueirão, responsável pelo abastecimento de 1 milhão de pessoas na região metropolitana de Campina Grande, a segunda maior do estado. Hoje, a Paraíba concentra o maior número de cidades atingidas pela seca. Quase 90% delas estão em situação de emergência pela falta de água. O nível dos reservatórios já é inferior a 10%. “Temos 42 cidades em colapso, sendo abastecidas somente por carros-pipa”, afirma João Azevêdo, secretário de Recursos Hídricos da Paraíba. “É o tipo de paliativo impossível de ser aplicado a uma grande cidade.”
No estado do Ceará, o reservatório de Castanhão, um dos maiores do Nordeste e fonte primária de abastecimento de Fortaleza, está com apenas 6% de sua capacidade de água. É justamente o Ceará que receberá o maior volume de água da transposição — quase 40%. “Se não chover nos próximos meses, a capital precisará racionar para ter água até o final do ano”, diz Francisco Teixeira, secretário de Recursos Hídricos do Ceará e ex-ministro da Integração Nacional.
Os municípios atendidos pelo maior dos canais, de 260 quilômetros de extensão, o Eixo Norte, porém, terão de esperar mais. Isso porque, em julho de 2016, a empreiteira Mendes Júnior, responsável por parte da obra, abandonou o canteiro depois de ser citada na Operação Lava-Jato. O trecho está sendo licitado novamente e a promessa do Ministério da Integração Nacional é que a obra seja concluída até dezembro. O trecho conduzirá a água captada na cidade de Cabrobó, em Pernambuco, a outras bacias hidrográficas importantes, como a do rio Jaguaribe, no Ceará, a do rio Piranhas-Açu, na Paraíba, e a do rio Apodi, no Rio Grande do Norte.
A chegada das águas da transposição do rio São Francisco à região não poderia ser mais oportuna. Mais de 23 milhões de pessoas vivem na caatinga nordestina, a região semiárida mais densamente povoa-da do mundo. O Nordeste enfrenta o sexto ano consecutivo de seca, a maior já registrada nos últimos 100 anos. Até o fechamento desta edição, em 20 de fevereiro, 742 municípios da região estavam em situação de emergência. As estimativas de perdas financeiras na agro-pecuária e na indústria somam mais de 100 bilhões de reais desde 2012.
Para entender o impacto da obra na vida de 12 milhões de pessoas — e o futuro das comunidades que moram em áreas onde a água não vai chegar —, EXAME percorreu mais de 2 000 quilômetros entre os estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba. A percepção geral da população dos oito municípios visitados pela reportagem é que as obras de transposição podem até ficar prontas, mas não terão impacto profundo na vida de quem mais sofre com a seca: quem mora nas zonas rurais.
“Ninguém aqui sabe se essa água vai mesmo chegar às comunidades”, diz Francisco Angeocélio, professor de educação infantil do município de Campos Sales, no Ceará. Já os mais de 30 especialistas entrevistados por EXAME estão menos preocupados com a obra em si — a água vai ser transportada, afinal — e mais com a forma como a estrutura será gerida. O medo de que tudo vire um grande elefante branco é grande, para dizer o mínimo.
De acordo com o governo federal, 390 cidades serão abastecidas pelas águas da transposição até 2025. O volume mínimo de água garantido aos estados beneficiados será de 26,4 metros cúbicos por segundo. Mas, dependendo da situação do rio São Francisco, essa vazão poderá aumentar e chegar a 128 metros cúbicos por segundo, mais do que o dobro do volume do Sistema Cantareira, que abastece cerca de 6 milhões de pessoas na capital paulista. O acesso à água, porém, não depende apenas dos quase 500 quilômetros de canais, reservatórios, aquedutos e túneis que os dois eixos principais abrangem e serão entregues pelo governo federal neste ano.
Um conjunto de outras obras complementares, a maioria sob a responsabilidade dos estados, será necessário para dar capilaridade à distribuição. Está prevista uma rede de mais de 1 000 quilômetros de adutoras e ramais. Uma das mais importantes conexões é a Adutora do Agreste, com mais de 400 quilômetros de extensão e que alcançará 68 municípios pernambucanos. Ela deverá ser concluída em 2018, mas só vai captar água da transposição quando outra obra, sob responsabilidade do governo federal, o Ramal do Agreste, estiver pronta. E isso só deverá ocorrer em 2020.
O descompasso entre os prazos das obras é apenas um dos imbróglios que hoje envolvem a transposição do rio São Francisco. Fatores-chave para a definição de um modelo de gestão para o projeto ainda estão em discussão. É ponto pacífico, por exemplo, que os estados beneficiados pela obra vão pagar pela água fornecida e terão de bancar a operação e a manutenção de toda a estrutura da transposição. Não se sabe ainda, porém, de que modo esse pagamento será feito, como o preço será repassado ao usuário final da água e que garantias esses estados oferecerão ao governo federal no caso de falta de pagamento.
Por ora, a Agência Nacional de Águas está formulando uma metodologia para calcular a tarifa a ser cobrada dos estados pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Levadas em conta as diferenças de tarifa de água entre os estados e as que existem entre consumidores industriais e consumidores de baixa renda, estima-se que as águas do São Francisco possam custar, em média, 3 reais por mês para cada usuário. Ninguém sabe quando haverá uma definição exata a esse respeito. “Para funcionar de maneira eficiente, um projeto dessa magnitude tem de ser bem remunerado”, diz Paulo Varella, diretor da Área de Gestão da Agência Nacional de Águas. “Caso contrário, essa imensa estrutura vai se deteriorar.”
Diferentemente de projetos passados de transposição do São Francisco, que previram destinar mais de 70% da água à agricultura irrigada, o atual prioriza o abastecimento humano. E o acelerado crescimento populacional da região ajuda a entender a inversão de prioridade. Na Paraíba, o açude de Boqueirão, inicialmente projetado para atender à demanda de Campina Grande e de outros oito municípios, hoje atende mais que o dobro de cidades — e está à beira do colapso. “O consumo humano é a prioridade máxima”, diz Helder Barbalho, ministro da Integração Nacional.
Isso não impede que a água do São Francisco tenha diferentes usos, na medida em que o abastecimento das grandes cidades esteja garantido. Atualmente, 340 000 hectares no entorno da bacia do São Francisco são irrigados, a exemplo do Polo Petrolina-Juazeiro, um dos maiores redutos de produção e exportação de frutas do país. No semiárido, apenas 70 000 hectares são irrigados. Estima-se que mais 150 000 hectares poderão se beneficiar da transposição. “Se houver compromisso por parte dos governos estaduais, ha-verá água suficiente para matar a sede e para promover o desenvolvimento econômico dos principais polos regionais do Nordeste”, afirma Francisco Teixeira, secretário de Recursos Hídricos do Ceará.
Até mesmo grandes empresas da região, sem informações precisas sobre quando e de que forma a água estará disponível, fazem planos contando com o pior cenário. É o caso da fabricante de bebidas Diageo. No Ceará desde 2012, quando adquiriu a marca de cachaça Ypióca, a companhia teve sua capaci-dade de produção reduzida a um terço após cinco anos de seca. Dependente da produção de cana-de-açúcar em Paraipaba, município a 98 quilômetros de Fortaleza, a empresa não irriga suas lavouras desde 2014. “Tentamos perfurar poços em vários pontos das fazendas, mas sem sucesso”, afirma Nelcina Tropardi, diretora de relações corporativas da Diageo no Brasil.
Foi aí que os executivos da empresa apostaram em testes com 16 variedades de cana, mais resistentes à seca. O processo de lavagem da cana foi eliminado e a implantação de uma estação de tratamento de efluentes permitiu que 15% do volume gerado na operação fosse reutilizado na própria fábrica para a execução de tarefas como lavagem de garrafas. De lá para cá, a economia no uso de água foi de 85%.
Quase sempre distantes de açudes e represas, pequenas comunidades rurais também desenvolveram ao longo dos últimos 20 anos tecnologias capazes de garantir água durante períodos severos de estiagem. Até porque apenas 30% das cidades do semiárido têm acesso universal à água. A principal dessas tecnologias: as cisternas — estruturas feitas de alvenaria ou de plástico que captam água da chuva por meio de calhas, calçadas e telhados. Hoje, elas atendem quase 1,2 milhão de famílias em todo o Nordeste — e conseguem garantir por até oito meses necessidades básicas.
“Com tecnologias simples e baratas, a lógica de combate à seca se transformou numa lógica de convivência com a seca”, afirma Ricardo Vieira, membro da Associação Cristã de Base, uma das 3 000 organizações civis que hoje formam a Articulação do Semiárido (ASA), uma rede que trabalha para disseminar práticas como essa na região.
No pequeno sítio batizado de Caboclo, na zona rural do Crato, no Ceará, uma faixa verde chama a atenção em meio à caatinga maltratada pela estiagem. Seu proprietário é o agricultor Luís Rodrigues, que faz parte do universo de 40% da população do semiárido que vive da lavoura e da criação de animais. Ele tem em sua horta milho, feijão, cenoura, beterraba, maracujá e mamão. O plantio, que hoje sustenta a família de cinco pessoas, só foi possível graças a uma grande cisterna de alvenaria.
Conectados a ela, pequenos canos levam água para a horta a conta-gotas. Com capacidade de armazenamento de 52 000 litros, as cisternas de produção já estão em quase 100 000 pequenas propriedades no semiárido. Outra estratégia que ganhou força nos últimos anos foi a exploração de espécies nativas da caatinga em consórcio com a criação de ovinos e caprinos — os chamados sistemas agroecológicos, menos suscetíveis à desertificação.
Foi o que fizeram a paraibana Célia Araújo, de 39 anos, e seu marido, José Aldo, de 46. Em 2016, o casal estava prestes a vender um sítio de solo já exaurido e com poucos animais quando decidiu implementar um sistema desse tipo. O plantio de espécies nativas resistentes à seca recarregou o solo de nutrientes. Foi então possível plantar palma-forrageira e mandacaru, que passaram a alimentar bodes e cabras. Em seis meses de testes, o sítio Rodeadouro já vende queijo de cabra e carne de bode, mas ainda depende da água de caminhões-pipa para matar a sede dos animais.
Uma estrutura para captar água da chuva, porém, ficou pronta neste ano. Trata-se de uma cisterna e de uma barragem subterrânea, que impede o escoamento da água da chuva e garante a umidade do solo por até cinco meses de seca. “Aos poucos aprendemos que é possível produzir de maneira mais resiliente sem desmatar a caatinga”, afirma Célia. Atualmente, a Paraíba detém os maiores rebanhos ovino e caprino do Brasil e também é a maior produtora de leite de cabra do país.
Não são poucos os especialistas temerosos quanto à alta expectativa suscitada pela transposição. Estima-se que quase metade da área da bacia do São Francisco tenha sido desmatada pela agro-pecuá-ria. Na região da nascente, em Minas Gerais, essa proporção é ainda maior: quase 60%. Isso aumenta o volume de terra e areia transportado para o leito do rio pelo vento e pela chuva. O esgoto não tratado lançado na calha do rio, em áreas próximas à nascente e à foz, também é um problema. “A situação do rio é crítica, e isso compromete diretamente sua capacidade de afluir água em quantidade e em qualidade para o resto da bacia e para a transposição”, diz Silvia Machado, uma das coordenadoras do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco.
O governo federal reformulou, no ano passado, o plano de revitalização do rio São Francisco, agora batizado de Novo Chico. Entre as metas está previsto quase 1 bilhão de reais em orçamento para garantir obras de saneamento até 2019. “Que a água da transposição vai chegar ao semiárido, isso é indiscutível”, afirma João Suassuna, hidrólogo e pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco. “O problema é que ela chegará antes que a bacia tenha sido, de fato, revitalizada.”
Além da degradação de diversos trechos do São Francisco, outra questão tem deixado os pesquisadores sob estado de alerta. É que uma série de prognósticos climáticos sobre a região semiárida sinaliza um aprofundamento da seca, no curto e no longo prazo. Em fevereiro, um alerta emitido por um grupo de cientistas vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia mostra que, até abril, há 75% de probalidade de que as chuvas fiquem na média e abaixo da média — justamente ao longo do período que deveria ser o mais chuvoso.
Outros estudos já mostram que em alguns pontos do semiárido, como é o caso da região de Araripina, em Pernambuco, a temperatura média vem aumentando em 1 grau a cada dez anos, ritmo dez vezes maior do que a média. Ao mesmo tempo, a taxa de chuvas tem diminuído cerca de 1,5% a cada ano, e a tendência, sobretudo com o aquecimento global, é de piora desse cenário. “O comportamento dessa região está se assemelhando cada vez mais ao de uma região de deserto”, diz Francis Lacerda, pesquisadora do Instituto Agronômico de Pernambuco.
Diante desse cenário, basear a gestão de crises de seca em registros passados não parece uma estratégia muito sensata. Para tentar tornar a administração das estiagens mais proativa — e menos reativa em momentos de emergência —, uma parceria entre o governo federal e o Banco Mundial deu origem, em 2016, ao Monitor de Secas do Nordeste, ferramenta de acompanhamento que permite saber, em detalhes, o estágio da seca de acordo com sua localização e as chances de progressão no curto, médio e longo prazo.
O que se espera é que esse tipo de informação auxilie os gestores locais a administrar a demanda de água mesmo que os reservatórios não estejam em situação crítica “Mais do que apenas infraestrutura, o que o Nordeste precisa hoje é de governantes capazes de usar informações relevantes para geri-la”, afirma Carmen Molejon, consultora do Banco Mundial e especialista em recursos hídricos. Se no começo de março a transposição do rio São Francisco realmente virar uma realidade para milhões de nordestinos, seus tão esperados benefícios dependerão — e muito — de que esse raciocínio seja posto em prática.