Revista Exame

Pandemia acelera a desigualdade e a educação é a forma de combate

Para Eduardo Giannetti da Fonseca, o estado e a sociedade brasileira precisam tornar a formação de capital humano uma prioridade para o país construir um futuro mais próspero

Eduardo Giannetti da Fonseca: “No Brasil, chegamos ao século 21 com uma agenda social ainda do século 19” (Germano Lüders/Exame)

Eduardo Giannetti da Fonseca: “No Brasil, chegamos ao século 21 com uma agenda social ainda do século 19” (Germano Lüders/Exame)

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Fabiane Stefano

Publicado em 29 de julho de 2021 às 06h00.

O economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca é um crítico ferrenho das disfunções que tornam o Brasil um recordista em desigualdade no mundo. Cerca de 1% da população mais rica do país detém quase metade da riqueza nacional.

A concentração de renda é resultado justamente de contradições, como o fato de 39% da renda nacional ser intermediada pelo setor público e, ainda assim, não haver saneamento público universalizado no país. Ou uma grande parte dos recursos da educação no país financiar os estudos da parcela mais rica da população.

Não dá para entender como um país de renda média, como o Brasil, não consegue atender minimamente às demandas da cidadania”, diz Giannetti da Fonseca. “Essa é a grande questão que precisamos enfrentar para conseguir ter um país menos desigual e mais próspero no futuro.” Leia a seguir trechos da entrevista do economista à EXAME CEO.

O que a pandemia revelou em termos de desigualdade no Brasil? 

A situação de emergência sanitária com a pandemia trouxe à tona a extensão da desigualdade com a qual o Brasil convive desde sempre e revela como isso nos fragiliza enquanto nação. São milhões de pessoas que não tinham condição de vida e de trabalho para conseguir atravessar uma perda temporária de renda porque não dispunham de nenhum tipo de poupança ou de recurso para uma situação grave como essa.

Por que a desigualdade no brasil ainda é persistentemente alta?

O Estado brasileiro arrecada por ano cerca de 33% do PIB com carga tributária bruta e, além disso, gasta mais do que arrecada.

Antes da pandemia, o déficit nominal do setor público era de 6% do PIB. Ou seja, em um país em que União, estados e municípios intermedeiam 39% da renda nacional, não há sequer saneamento básico no século 21? Já tivemos autoritarismo e democracia, governos de esquerda e de direita, mas o fato inescapável é que chegamos ao século 21 com uma agenda social ainda do século 19.

Não dá para entender como um país de renda média, como o Brasil, com um Estado grande como é o nosso, não consegue atender minimamente às demandas da cidadania por políticas públicas essenciais em áreas como saúde, educação, saneamento e segurança. Essa é a grande questão que precisamos enfrentar para conseguir ter um país menos desigual e mais próspero no futuro.

Isso é resultado de má aplicação de recursos públicos, de políticas públicas ruins, ou o país gasta pouco para enfrentar esses problemas?

É uma combinação dessas coisas. Temos Estado “meio” demais e “fim” de menos. Cada um dos 5.570 municípios no Brasil tem sua máquina pública, sua câmara de vereadores e outras estruturas. Por outro lado, gastamos 4%, 5%, às vezes até 6% do PIB com educação, mas uma parte muito expressiva desses recursos é capturada por grupos de renda média e alta que não precisariam receber subsídios e financiamento estatal para completar sua educação no ensino superior. Há um gasto desproporcional de dinheiro público no Brasil para financiar a educação dos ricos. Isso acontece na saúde, na Previdência e em outras ­áreas. Existe gasto muito mal focalizado.

Como é possível proporcionar igualdade de oportunidades no Brasil no cenário atual?

A principal dimensão da igualdade de oportunidades é a educação — a pessoa receber uma dotação de recursos que lhe permita desenvolver suas capacidades, competências e potencial humano. Estamos muito longe no Brasil de atender ao quesito de um mínimo de paridade nos recursos iniciais. Há um grande economista inglês do século 19, chamado Alfred Marshall, que criou a figura do Shakespeare analfabeto.

Um sujeito que teria sido um gênio universal como foi Shakespeare, mas que não foi porque nem sequer era alfabetizado. Pergunto-me quantos gênios brasileiros, não só na criação literária mas na ciência, no empreendedorismo, na inovação tecnológica, não estamos sacrificando por termos sonegado a eles um mínimo de condições para desenvolver seu esplendoroso talento que foi soterrado por uma partida muito desfavorável.

São pessoas que sofrem adversidades por terem nascido em uma família desestruturada, por terem sido subnutridas na infância, por não terem ido à creche, por não terem tido uma escola fundamental minimamente adequada, por terem crescido num ambiente de violência. É isso que não podemos mais aceitar. Se o Brasil não enfrentar essa questão, tudo mais vai continuar precário. 

Escola em Florianópolis: “A principal dimensão da igualdade de oportunidades é a educação” (Anderson Coelho / iShoot / Alamy/Getty Images)

Como tornar a educação uma prioridade?

A grande deficiência civilizatória brasileira é a formação de capital humano. Eu sonho com o surgimento no Brasil de um líder que represente hoje o que Juscelino Kubitschek representou na segunda metade do século 20 no tocante ao capital físico. Juscelino conseguiu incendiar a imaginação brasileira em torno do sonho da urbanização, da industrialização, da infraestrutura rodoviária, de Brasília.

O que precisamos hoje no Brasil é de um líder desse porte, que provoque o mesmo em torno do capital humano. Educação, conhecimento, inovação, a busca do aprimoramento das faculdades humanas nos mais diferentes campos de atividade. O Brasil na época do desenvolvimentismo fez um esforço brutal de formação de capital físico urbano e industrial, mas não fez um esforço compatível e da mesma ordem na formação de capital humano.

É o grande passo que falta para um país menos desequilibrado, menos desigual, com instituições mais sólidas, com uma democracia mais estabelecida, mais harmoniosa. É esse esforço coletivo, porque não é só do Estado, mas também da sociedade civil, das empresas, do conjunto da nação. É este o desafio que temos pela frente: a imaginação brasileira ser tomada pela ambição de melhorarmos como cidadãos educados que prezam e valorizam o conhecimento, que cuidam das novas gerações transferindo a elas os valores corretos no campo da ética. Esse é o meu sonho para o século 21 no Brasil. 

E como “incendiar" a sociedade brasileira em favor da educação? 

Lideranças capazes de fazer o equivalente ao que Juscelino fez. Não se trata apenas de uma figura messiânica de um presidente, longe disso, mas é a galvanização no espírito da sociedade de que, se nós não nos desenvolvermos como seres humanos por meio da educação, do conhecimento, da ética, seremos uma sociedade, na melhor das hipóteses, medíocre e, na pior, desastrosa. Os Estados Unidos, que também foram uma colônia, universalizaram o acesso ao ensino fundamental no final do século 19. O Brasil universalizou o acesso ao ensino fundamental no final do século 20, com um século de atraso.

E pior: é uma universalização em grande medida nominal, não é real. Muitos alunos concluem o ensino fundamental, mas na prática são analfabetos funcionais. E isso ocorre também no ensino médio e superior. Há pesquisas que mostram alunos de faculdades que não são plenamente alfabetizados. Não sabem separar um fato de uma opinião, não sabem ler e interpretar um texto um pouco mais complexo, não fazem operações aritméticas simples.

Agora, também não vamos ter a ilusão de que esse problema do qual estamos falando é uma responsabilidade unicamente do Estado brasileiro; não é. É da família brasileira, da empresa, é da nossa sociedade como um todo. As famílias e os cidadãos, nas pesquisas de opinião, demonstram uma preocupação com a questão educacional, o que é bom, mas a essa preocupação não corresponde um comprometimento efetivo no dia a dia. Isso não se reflete em acompanhamento do estudo dos filhos, interesse pela escola, oferecimento de oportunidades educacionais, de leitura para os jovens e para as crianças. 

Parece que as empresas estão mais à frente do que o setor público quando o assunto é igualdade e diversidade...

Vejo com muito bons olhos a preocupação do mundo corporativo em estar atento e implementar políticas de inclusão e aumento da diversidade em seus quadros funcionais, tanto no recrutamento quanto nos mecanismos de promoção dentro das estruturas corporativas. E vejo também nas empresas uma preocupação correta, bem-vinda e construtiva de ampliar a presença de grupos étnicos, de mulheres, de diversidade em seus quadros, tanto por uma questão ética, de representatividade, quanto por uma questão de eficiência, porque ao fazer isso a empresa se torna muito mais capaz de absorver talentos que de outro modo não estariam sendo integrados à atividade. É importante para as empresas que seus diretores tenham experiências de vida diversificadas para entender melhor os consumidores, as expectativas, a cultura. 

Como isso impacta o setor privado?

Antigamente as grandes corporações e os bancos só recrutavam egressos das melhores faculdades do país. Hoje isso mudou, e as empresas perceberam que é obtuso e errado. Há pessoas tremendamente talentosas, com enorme potencial de liderança e crescimento, que por uma desvantagem inicial não tiveram acesso às universidades de elite e não podem ficar de fora desse processo de recrutamento. As empresas antigamente usavam o domínio da língua inglesa como critério de seleção. Fazer isso é um gol contra. O fato de a pessoa não saber inglês não diz nada sobre sua capacidade de inovação, talento, capacidade lógica.

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