Revista Exame

Resolvido, mas nada resolvido nos EUA

Um acordo de última hora evitou o calote da dívida americana — mas ninguém sabe como acabar com o buraco nas contas do governo e fazer o país voltar a crescer

Barack Obama durante uma conferência em Washington: refém do acirramento das disputas ideológicas entre democratas e republicanos (Chip Somodevilla/Getty Images)

Barack Obama durante uma conferência em Washington: refém do acirramento das disputas ideológicas entre democratas e republicanos (Chip Somodevilla/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 4 de agosto de 2011 às 09h01.

Nova York - "Quando o burro briga com o elefante, o bem-estar de muitos outros países também está na zona de impacto.” Foi assim que a Xinhua, a agência de notícias oficial da China, descreveu em um editorial a crise que quase levou os Estados Unidos a um inimaginável calote.

Não foi uma piada nem uma alfinetada, muito pelo contrário: o burro é o símbolo do Partido Democrata; e o elefante, o do Partido Republicano. Os chineses, maiores detentores de papéis do Tesouro americano, e o resto do mundo respiraram aliviados quando o presidente Barack Obama assinou o plano que permitirá ao país continuar pagando suas contas em dia.

O acordo fechado aos 45 minutos do segundo tempo pode ter evitado uma nova catástrofe na maior economia do mundo, mas o problema da gigantesca dívida americana, que vai passar dos 15 trilhões de dólares, está muito longe de uma solução.

A queda de braço entre burros e elefantes vai se acirrar nos próximos meses, quando começa para valer a campanha presidencial de 2012 — e o risco é que a reputação dos Estados Unidos fique pelo caminho.

A esperança representada pela eleição de Barack Obama hoje é uma memória distante. O candidato prometeu aos americanos transformar Washington; o presidente é um refém das disputas políticas que acontecem nos corredores do Congresso.

O aperto fiscal que vem por aí vai exigir novas e complicadas negociações e, se o que se viu nas últimas semanas for alguma indicação, o drama vai continuar por um bom tempo. A meta combinada é cortar 2,4 trilhões de dólares do déficit nas contas públicas do país.

A palavra-chave nos próximos tempos nos Estados Unidos é austeridade — e isso pode representar uma diminuição de sua influência internacional. Isso significa menos dinheiro para investidas militares no exterior (e a diminuição considerável nos gastos no Iraque e no Afeganistão) e para eventuais novos pacotes de estímulo econômico, como o que foi costurado em 2009. 

Mas a preocupação imediata ao redor do mundo é com a capacidade do país de continuar honrando seus compromissos. A China tem quase 1,2 trilhão de dólares a receber dos Estados Unidos. Em seguida vêm o Japão, o Reino Unido, um grupo dos países exportadores de petróleo e o Brasil, com pouco mais de 200 bilhões de dólares em papéis do Tesouro americano.


Por enquanto, o risco de um calote foi afastado, mas isso não quer dizer que a credibilidade do maior — e até agora melhor — devedor do mundo tenha se mantido intacta. “Sempre houve um viés positivo em relação às notas do Tesouro americano”, disse a nova diretora do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde. “A crise atual está erodindo essa confiança.”

Das três grandes agências de análise de risco, apenas uma delas, a Fitch, já se pronunciou, afirmando que não haverá mudança na nota dos papéis americanos.

A expectativa é que Moody’s e Standard & Poor’s façam o mesmo (embora esta última tenha notado no passado que nada menos do que uma redução de 4 trilhões do déficit fosse necessária para a manutenção da nota máxima).

“A consequência de uma perda de confiança nos títulos americanos é tão grande que é difícil de imaginar”, diz Ricardo Reis, professor de economia da Universidade Columbia.

“Uma quantidade tremenda de contratos se baseia na existência de um ‘papel seguro’ — os papéis do Tesouro americano. Se houver uma mudança repentina, podemos ter um colapso pior que o que se seguiu à quebra do banco Lehman Brothers.”

Mesmo que as notas AAA sejam mantidas, as expectativas mudaram. Por trás dessa mudança de humor está um jogo político que vai render muitas manchetes até novembro de 2012. A ala radical dos republicanos, conhecida como movimento Tea Party, obteve ganhos expressivos nas eleições legislativas do fim do ano passado e tem levado os deputados e senadores do partido cada vez mais à direita.

O resultado disso é uma recusa feroz da oposição em aceitar aumento nos impostos. Para os integrantes do Tea Party, quanto menos governo melhor: só assim as empresas vão voltar a investir e a economia vai voltar a andar. Alguns, como a pré-candidata à Presidência Michele Bachmann, chegaram ao ponto de defender um calote, na prática.

“Em todos os lugares a que fui no país, as pessoas querem menos impostos, para criar empregos, e não querem que aumentemos o teto da dívida”, disse Bachmann. Do lado do Partido Democrata, a visão é diametralmente oposta: é hora de cobrar mais impostos, especialmente dos mais ricos, e manter os benefícios sociais intocados, pois só com estímulos do governo a economia vai crescer. 


Essa disputa ideológica levou os Estados Unidos à beira do calote e, para muitos comentaristas, está desviando a atenção do problema real, que é acertar as contas do governo de uma vez por todas. O acordo, escreveu o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, é um desastre.

“Vai prejudar uma economia já deprimida; vai provavelmente piorar o problema do déficit de longo prazo; e, acima de tudo, por demonstrar que a extorsão funciona e não cobra um preço político, vai levar a América em direção a um status de república das bananas.”

O cenário pode não ser tão extremo como o que prevê Krugman, mas está claro que a distância cada vez maior entre os partidos — e a falta de escrúpulos das lideranças políticas em um assunto tão delicado — aponta para um futuro preocupante para o país mais poderoso do mundo.

A economia, é claro, está ajudando (ou, no caso, atrapalhando). Se as guerras no Iraque e no Afeganistão foram dois dos principais temas da eleição passada, na campanha de reeleição de Obama não haverá outro tema além da recuperação do país — e, por enquanto, não há nem sinal dela.

De acordo com os economistas, a recessão pós-bolha imobiliária já acabou, mas na vida real a crise dá poucos sinais de abatimento. O PIB americano cresceu mísero 0,4% no primeiro trimestre do ano e 1,3% no segundo. Dos 8,7 milhões de empregos que desapareceram nos últimos três anos e meio, apenas 1,8 milhão foram recuperados.

Em junho, os consumidores americanos reduziram seus gastos pela primeira vez em dois anos, e a poupança aumentou, sinais de que a população do país ainda espera tempos difíceis pela frente. 

O acordo que evitou a crise não apresenta nenhuma saída para esses problemas. O que está decidido é que o presidente poderá aumentar o teto da dívida em 900 bilhões de dólares para chegar até o fim do ano (com um novo aumento de até 1,5 trilhão de dólares que garante um respiro até o fim de 2012).

Depois disso, será preciso colocar as contas em ordem. Um comitê de seis republicanos e seis democratas tem até o dia 23 de outubro para decidir a questão mais importante do imbróglio: cortar ainda mais os gastos sociais e os investimentos em educação e infraestrutura ou aumentar os impostos?


Essa é a resposta mais difícil — e justamente a que os eleitores americanos, e o resto do mundo, querem ouvir. O argumento pelo corte de investimentos sociais dá ideia da complexidade do problema. As despesas com saúde pública aumentarão, em média, 5,8% entre 2010 e 2020, segundo um estudo recém-publicado, um crescimento 1,1 ponto percentual superior ao crescimento do PIB.

Uma parcela significativa da população baby boomer vai poder desfrutar do programa Medicare, oferecido à população com mais de 65 anos de idade. E a participação do governo federal no pagamento desses serviços aumentará. Mesmo com taxas de crescimento populacional superiores às da Europa e do Japão, já se enxerga o buraco que vai aparecer — sem nenhuma solução concreta para tapá-lo, pelo menos por enquanto. 

“Todas as grandes economias do mundo estão se debatendo neste novo cenário econômico do século 21”, diz Walter Russell Meade, professor de relações internacionais da Universidade Bard e autor de vários livros sobre a decadência americana. “Apesar de tudo, os Estados Unidos têm lidado melhor com os problemas do que a União Europeia ou o Japão.”

Ele aponta que não houve até agora uma corrida contra o dólar, nem mesmo uma fuga dos papéis da dívida americana. Mas, mais que confiança nos Estados Unidos, isso talvez indique outra coisa: a insolvência da Grécia (e potencialmente de outros europeus, entre eles a Itália) e o impacto do terremoto e do tsunami no Japão deixam poucas alternativas para os investidores.

Ou seja: Meade é um dos poucos otimistas, ou um dos menos pessimistas. Mas até que ponto os políticos de Washington estão dispostos a insistir na intransigência deixou de ser um assunto de interesse só dos americanos. O plano referendado no começo de agosto apenas evitou uma catástrofe.

As decisões importantes foram empurradas para a frente. Seja Obama reeleito ou repita ele o exemplo de Jimmy Carter, último democrata a fracassar numa tentativa de reeleição, a polarização política do país ainda vai ser objeto de muita preocupação — em Washington e ao redor do mundo.

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