Revista Exame

Prontos para outra crise?

A globalização tornou crises financeiras inevitáveis, segundo o economista Martin Wolf. Um jeito de se proteger contra resultados tão devastadores nas próximas é o fortalecimento dos países emergentes

Manifestantes nos Estados Unidos: por anos o país gastou mais do que gerou riqueza (Mario Tama/AFP Photo)

Manifestantes nos Estados Unidos: por anos o país gastou mais do que gerou riqueza (Mario Tama/AFP Photo)

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Da Redação

Publicado em 29 de março de 2011 às 12h29.

O Banco Mundial publicou em 2003 um relatório sobre o sistema financeiro internacional que apresentava números impressionantes - desde o fim dos anos 70, o mundo assistira a 117 graves crises bancárias em 93 países. Nenhuma teve o alcance da atual, mas em todos os casos anteriores os reflexos também ultrapassaram as fronteiras dos países de origem. As crises do México, da Ásia e da Rússia, por exemplo, provocaram uma onda de desconfiança em relação a quase todos os mercados emergentes. Em muitos casos, resolver os problemas - sanear os bancos e fazer frente ao menos a parte das perdas dos correntistas - custou mais de 10% do produto interno bruto dos países envolvidos. O que isso mostra? Para Martin Wolf, colunista do jornal britânico The Financial Times e ex-economista sênior do Banco Mundial, trata-se de uma evidência de que a organização atual das finanças globais é uma fonte permanente de desequilíbrios, que resulta numa seqüência crônica de terremotos que logo se espalha mundo afora. Em seu recém-lançado livro, A Reconstrução do Sistema Financeiro Global, que chegará às livrarias brasileiras em dezembro, Wolf escreve: "Uma crise pode ser resultado de algum infortúnio; (uma centena delas) certamente é conseqüência de extrema falta de cuidado. De fato, alguns países (como a Argentina) foram tão descuidados que viveram mais de uma".

Chamado de "o jornalista financeiro mais proeminente do mundo" pelo ex-secretário do Tesouro americano Lawrence Summers, Martin Wolf está longe de se opor à integração financeira mundial. No livro, ele enumera diversas vantagens de "mercados liberais": as empresas ganham alternativas de financiamento, os investidores podem diversificar suas aplicações e a regulação econômica tende a ser mais rígida e transparente, por exemplo. Sua crítica a esse modelo, porém, é que ele vem acompanhado de uma série de riscos, proposital ou ingenuamente ignorados ao longo das últimas décadas. "Explorar as vantagens e minimizar os riscos (desse sistema) é um desafio monumental", escreve Wolf. "A história das finanças globais desde os anos 80 tem sido uma coleção de crises assustadoramente caras - não apenas em termos de custos para os contribuintes ou de renúncia de crescimento econômico mas também por abalar a vida de vítimas inocentes." A afirmação pode parecer um tanto exagerada, mas os argumentos defendidos por Wolf ao longo de mais de 200 páginas constroem um retrato bem convincente.

O livro demonstra que existe um padrão nas crises das últimas três décadas. Num mundo cada vez mais integrado, os problemas financeiros foram motivados, de acordo com o autor, por desequilíbrios no fluxo de recursos entre países desenvolvidos e emergentes. Uma das primeiras ondas desse movimento ocorreu na América Latina nos anos 70 e 80. Dezenas de países da região, entre eles o Brasil, financiaram a expansão de suas economias tomando empréstimos no exterior. Era uma estratégia que fazia sentido, afirma Wolf. Tratava-se de transferir recursos de países ricos para pobres. Em 1982, no entanto, quando o México anunciou o calote da dívida externa, o fluxo de capital estrangeiro para a região secou, o que provocou uma grave recessão. Em 1982 e 1983, o PIB latino-americano acumulou uma queda de quase 4%. "Assim, entre 1983 e 1991, os mercados emergentes ficaram, basicamente, fechados para balanço", escreve o autor. Uma nova onda de "generosidade" dos países ricos ocorreu em meados dos anos 90. A história se repetiu quando o colapso da economia da Tailândia, em 1997, interrompeu novamente o financiamento externo a países emergentes. Os reflexos dessa crise foram mais amplos: atingiram a Ásia naquele ano, a Rússia em 1998 e o Brasil em 1999, diz o autor.

O fim dos anos 90 marca uma mudança importante na política econômica dos países emergentes - em vez de importar capital, a maioria passou a exportar recursos. "Os efeitos dolorosos das crises (...) levaram as economias emergentes a empreender esforços para manter os juros baixos, sustentar superávits nas contas externas e acumular reservas internacionais", escreve Wolf. Com exceção dos juros baixos, o Brasil também seguiu essa cartilha. Entre 2000 e 2006, os países emergentes acumularam cerca de 2,7 trilhões de dólares em reservas internacionais, segundo estatísticas compiladas no livro. "Isso poderia sugerir que a economia mundial estava ganhando mais estabilidade. Seria um julgamento prematuro."


Da nova configuração, surgiu um novo desequilíbrio. Martin Wolf explica como a impressionante quantidade de recursos estocada pelo bloco dos emergentes acabou financiando os países ricos - em especial, a expansão descontrolada do mercado imobiliário americano. Numa passagem sarcástica, o autor compara os Estados Unidos a um "fundo de hedge extremamente lucrativo", numa referência ao fato de o país ter passado a se comportar como esses fundos - que tomam empréstimos para fazer investimentos de alto risco. Durante vários anos, diz, "o país foi abençoado com credores tão generosos que pôde gastar mais do que gerava de riqueza". Boa parte do novo fluxo de recursos veio da China e do Oriente Médio. Como se sabe, isso beneficiou o país por algum tempo, mas acabou gerando um pesado déficit externo, como havia ocorrido nas crises anteriores. Desta vez, houve a inversão dos papéis - e os países emergentes passaram para o lado dos credores. Para Wolf, essa é a raiz do colapso do setor imobiliário americano, gênese da crise financeira global. Ele argumenta que a política de juros baixos praticada pelo Federal Reserve, o banco central americano, e a regulação branda do mercado financeiro só contribuíram para exacerbar esse cenário de euforia - mas não foram suas causas principais. "Podemos ver que a chamada crise do subprime nos Estados Unidos não deveria ter sido uma surpresa. Ao contrário, é o que a experiência de três décadas passadas deveria ter levado a esperar", diz o autor.

Qual é a solução? Martin Wolf é quase pessimista nesse ponto. Ele acredita que as crises financeiras globais são praticamente inevitáveis, uma vez que as economias entre países estão interligadas de maneira irreversível. Diz, no entanto, que existem formas de reduzir o efeito contágio. Sua proposta central é que a saída depende dos emergentes. Wolf afirma que o mercado financeiro global só se tornará menos suscetível a crises de proporções mundiais quando as empresas e os governos desses países forem capazes de se financiar em suas moedas locais. Dessa forma, os emergentes ficariam menos vulneráveis aos altos e baixos do câmbio e ao mesmo tempo mais imunes aos abalos do mercado internacional de crédito. Para isso, defende ele, é preciso que esses países desenvolvam um sólido sistema bancário e um bem regulado mercado de capitais - um processo ainda incipiente para a maioria deles.

A obra é, de certa forma, uma continuação da publicação anterior de Wolf, Why Globalization Works ("Por que a globalização funciona", numa tradução livre), de 2004. Nesse primeiro livro, ele faz uma análise da economia mundial nos últimos 150 anos para mostrar os benefícios da globalização e do livre comércio. É, portanto, uma defesa da maior integração entre os países. No livro atual, Wolf se concentra apenas nos aspectos financeiros dessa integração. "Enquanto a maioria dos economistas reconhece as vantagens do livre comércio, o mesmo não é verdade para a liberalização das finanças globais", escreve. Para ele, "o desempenho do sistema financeiro tem sido o calcanhar-de-aquiles da era da globalização".

Num capítulo que fala sobre o colapso financeiro que se seguiu ao desmoronamento do mercado de hipotecas subprime nos Estados Unidos, Wolf lembra que, em meados de 2007, quando ele estava escrevendo o livro, economistas, investidores e membros de governo não viam - ou, ao menos, diziam ignorar - qualquer motivo para se preocupar com a situação das finanças globais. "A economia mundial estava crescendo de forma mais forte e balanceada que em anos anteriores (...), os países em desenvolvimento também estavam indo bem, particularmente na Ásia, e o mundo não vivia uma crise financeira desde 2001, quando houve o default da Argentina." O autor chama isso de "calma antes da tempestade". E lembra que não é improvável que um cenário como esse volte a se repetir.

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