Revista Exame

O que o Brasil pode aprender com a França, de Macron

A França elegeu Emmanuel Macron com a plataforma de combater a corrupção e reformar a política.

Emmanuel Macron: 
o presidente francês tenta aproveitar sua força inicial no Parlamento (Christian Hartmann/Reuters)

Emmanuel Macron: o presidente francês tenta aproveitar sua força inicial no Parlamento (Christian Hartmann/Reuters)

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Flávia Furlan

Publicado em 12 de julho de 2017 às 18h00.

Última atualização em 13 de julho de 2017 às 19h24.

São Paulo — No dia 3 de julho, o presidente da França, Emmanuel Macron, reuniu os 925 parlamentares franceses no Palácio de Versalhes, palco de momentos políticos históricos do país, para discursar sobre a mudança profunda que pretende realizar nos cinco anos de mandato. Essa foi a primeira vez que um presidente francês se dirigiu aos senadores e deputados logo depois de tomar posse — normalmente, essa tarefa cabe ao primeiro-ministro. Se a iniciativa de Macron era inédita, o discurso também foi: cara a cara com os parlamentares, ele disse que pretende diminuir em um terço o número de deputados e senadores.

A medida faz parte da plataforma com a qual Macron venceu as eleições em maio e que consiste em promover a moralização da vida pública e reformar a política. “Na França, a agenda contra a corrupção está vindo do topo, de um líder que acabou de vencer as eleições e tem forte credibilidade para dar andamento às reformas”, diz o economista chileno Daniel Kaufmann, referência mundial no combate à corrupção. Eis um exemplo que o Brasil, onde o presidente da República e seus dois antecessores — além de uma penca de altos funcionários públicos — estão respondendo a denúncias de desvios, deve observar de perto.

O que está acontecendo na França é que os eleitores já decidiram nas urnas que estão cansados da velha política. As pesquisas mostram que 88% dos franceses não confiam nos políticos. A corrupção percebida por lá é superior à de países vizinhos ou com o mesmo nível de renda — no ranking da Transparência Internacional, o país está na 23a posição, muito atrás dos nórdicos e da Nova Zelândia, que ocupam o topo, mas também do Reino Unido, que está na décima posição, e da Bélgica, na 15a. Além disso, a avaliação é que o sistema político francês é inchado.

O país tem um parlamentar para cada 72 000 habitantes, ante 106 000 na Alemanha, 166 000 no Japão e 350 000 no Brasil. Os escândalos de corrupção na França são de longa data. Desde a aprovação da Quinta República Francesa — a Constituição do general Charles de Gaulle da década de 50 que deu muito poder e prestígio à figura do presidente —, vira e mexe há episódios envolvendo o alto escalão do governo.

A saída francesa foi eleger Macron, um jovem de 39 anos vindo de um partido recém-criado por ele mesmo, o República em Marcha, e que nunca havia sido candidato. Desde 2012, ele ocupou os cargos de secretário-geral adjunto do presidente da República e, posteriormente, de ministro da Economia. “Macron não tem outra escolha a não ser enfatizar as reformas institucionais”, diz o filósofo Robert Zaretsky, que leciona história francesa na Universidade de Houston, nos Estados Unidos. “Esse foi o pedido dos franceses nas urnas e que acabou por levar ao colapso os partidos tradicionais de esquerda e de direita.”

O grande desafio de Macron é tentar unificar a França, que parece dividida depois da dura campanha contra a candidata da extrema direita, Marine Le Pen. “A eleição mostrou uma ansiedade em relação ao futuro e um desejo de mudança radical”, afirma o cientista político Vincent Martigny, pesquisador do Instituto de Ciências -Políticas de Paris. “Muitas pessoas estão esperando para ver se Macron cumprirá o que prometeu.”

Vai ser uma pedreira. O próprio governo de Macron começou com encrenca. Em junho, o presidente viu quatro ministros renunciar em 48 horas. Um era o ex-socialista Richard Ferrand, do Ministério da Coesão Territorial, que foi alvo de uma investigação de suspeita de favorecimento de sua mulher numa transação imobiliária. Os outros três são do partido centrista Movimento Democrático: Sylvie Goulard, da Defesa; Marielle de Sarnez, de Assuntos Europeus; e, o mais emblemático, François Bayrou, então ministro da Justiça, que estava tratando do pacote de moralização do país. A suspeita é que eles estejam envolvidos no desvio de recursos destinados à atividade no Parlamento Europeu para pagar funcionários de seu partido na França. Daí a concluir que a moralização está sendo implementada pelos sem moral é um pulo.

Na marcha francesa de combate à corrupção, parte do pacote de Macron tenta evitar que os políticos caiam em tentação. Se as medidas forem aprovadas, eles serão proibidos de empregar familiares. Um estudo feito pelo Escritório da Transparência da Vida Pública, uma das entidades criadas recentemente para acabar com a farra dos parlamentares, revelou que 20% dos 577 deputados e 348 senadores já contrataram parentes em seus gabinetes durante a vida pública. Em muitos casos, essas pessoas nem sequer dão expediente. No escândalo mais recente, chamado de Penelopegate, o candidato à Presidência François Fillon teria dado emprego à sua mulher, Penelope, que foi sua assistente parlamentar durante oito anos a um custo total de 800 000 euros.

As evidências são de que ela não tenha prestado o serviço — numa entrevista a uma emissora de televisão há alguns anos, Penelope falou categoricamente que nunca tinha sido assistente do marido. Fillon teria feito o mesmo com os dois filhos. Para evitar conflitos de interesse, os candidatos ao Parlamento também deverão estar afastados há pelo menos um ano de trabalhos de consultoria antes de ocupar o cargo. E só poderão ficar no posto público por, no máximo, três mandatos. No Brasil e em países como Estados Unidos, essa limitação não existe, com a argumentação de que a experiên-cia na política é um ativo valioso no Congresso. Os ministros franceses também não poderão mais ocupar um emprego público local. Hoje é possível um ministro acumular função em sua cidade de origem, por exemplo.

O cerco será ainda fechado aos partidos políticos. Hoje, eles são financiados publicamente, mas estão autorizados a pegar empréstimos. Indivíduos podem contribuir, mas empresas são proibidas. Pelo pacote, o financiamento só será feito por bancos de países da União Europeia, uma forma de diminuir o risco de empréstimos de origem suspeita. Já no caso das doações de pessoas físicas, novas regras imporão mais controle aos desembolsos. Além disso, haverá verificação das contas partidárias pelos Tribunais de Contas.

Cenário de mudança

O quadro é favorável para as mudanças propostas por Macron. Nas eleições para a Assembleia Legislativa, em junho, os partidos que o apoiam conquistaram mais de 60% das cadeiras e dois terços da Casa foram substituídos, o que oferece uma oportunidade de mudança. “O presidente tem maioria na Assembleia Nacional, e os parlamentares sabem que precisam responder ao clamor do combate à corrupção”, diz Paul Smith, especialista em política francesa na Universidade de Nottingham, na Inglaterra. Além da agenda da moralização, o novo presidente francês propõe uma série de reformas estruturais na economia, como uma mudança nas leis trabalhistas — um tema para lá de espinhoso na França. “A oposição às reformas deve vir mais em forma de protestos nas ruas do que no Parlamento”, diz Larissa Brunner, analista de política francesa da consultoria de risco político Oxford Analytica.

O movimento de combate à corrupção na França faz parte de uma onda global. Um gatilho para essa luta nos países desenvolvidos foi a crise de 2008. De lá para cá, as pessoas ficaram mais atentas aos abusos de poder — a classe média viu a renda diminuir e passou a cobrar mais dos políticos. Nos países emergentes, ocorreu algo semelhante. O fim do superciclo mundial de preços altos das matérias-primas reduziu o fluxo de dinheiro para os governos proveniente da exploração de recursos como petróleo e minerais. Com isso, a qualidade dos serviços públicos caiu justamente no momento em que a nova classe média, mais educada e empregada no mercado formal, pedia retorno dos altos impostos que paga.

Países como Ucrânia, Grécia e Iraque aprovaram pacotes anticorrupção nos últimos anos. O México também pariu o dele em 2015 e 2016, com a reforma de 14 artigos constitucionais e cinco leis. Entre as medidas estavam a criação de um sistema nacional anticorrupção e de uma promotoria independente. Além disso, o país passou a exigir uma declaração de patrimônio dos políticos e reforçou as penas para os crimes de pagamento de propina e enriquecimento ilícito. O pacote fazia parte da promessa de campanha do presidente Enrique Peña Nieto. Mas ele mesmo se enrolou em 2015 num escândalo em que sua mulher, Angélica Rivera, teria recebido uma mansão no valor de 7 milhões de dólares de um empresário beneficiado em licitações de obras do governo. Uma investigação posterior concluiu que não houve conflito de interesses. O pacote mexicano só foi à frente com a pressão da sociedade. Mas tem sofrido críticas de especialistas. “A versão adotada foi desfigurada no processo legislativo e, por enquanto, só serviu para simular o interesse do governo em resolver o problema”, diz o mexicano Gustavo Flores-Macías, professor na Universidade Cornell, nos Estados Unidos.

O Brasil não está atrasado na agenda de combate à corrupção. Parte das medidas anunciadas na França já existe por aqui. Por exemplo, o nepotismo é proibido no setor público, mas não em cargos executivos como os de ministros e de secretários, desde que comprovada a capacitação técnica do indicado. As contas dos partidos políticos já são fiscalizadas pela Justiça Eleitoral há décadas. A Operação Lava-Jato, um marco no assunto, só se tornou realidade porque ocorreram reformas institucionais. Na década de 90, houve a independência do Ministério Público Federal. Nos anos 2000, o fortalecimento da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União (hoje Ministério da Transparência, Controle e Fiscalização), que fiscalizou 24 bilhões de reais de dinheiro federal enviado aos municípios nos últimos 14 anos. De 2010 para cá foram criados instrumentos como a delação premiada e a lei de acesso, que já atendeu meio milhão de pedidos de informação dos órgãos públicos, e a pessoa jurídica passou a ser punida por atos de corrupção. Resultado: o número de processos de corrupção cresceu 233%, de 2004 a 2015, e o de pessoas condenadas por esse crime subiu 116%, de 2010 a 2014 (último dado disponível). “Os escândalos recentes dão a impressão de que a situação da corrupção no país piorou, mas a verdade é que o problema está vindo à tona”, diz o advogado Michael Mohallem, que pesquisa corrupção na Fundação Getulio Vargas.

Mas o Brasil tem muito por fazer. O combate à corrupção por ora está centrado em acabar com a impunidade. É preciso também fechar a porta de entrada para o crime. “Somente aumentar a punição não adianta”, diz o economista Johann Lambsdorff, professor na Universidade de Passau, na Alemanha, criador da metodologia para o índice de corrupção da Transparência Internacional. “É preciso ampliar na sociedade a confiança de que os políticos não terão como cair na tentação.” Altos cargos públicos continuam a ser ocupados mais por apadrinhamento do que por seleção técnica. A participação de empresas em licitações ainda pode ser feita só por carta-convite a escolhidas. Falta uma regulação da atividade de lobby para dar mais transparência a negociações no Congresso de grupos de interesse, como as empresas e as associações corporativas. A adoção de sistemas para proteger o cidadão que faz uma denúncia seria um instrumento útil para ajudar a desvendar esquemas de corrupção em órgãos públicos. Um exemplo recente é a Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, que investigou o conluio de funcionários públicos com frigoríficos para burlar regras de fiscalização. A operação só foi possível por causa de uma denúncia de um funcionário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Como mostram dezenas de delações da Operação Lava-Jato, também é preciso mudar o modelo eleitoral do país, nascedouro de boa parte dos esquemas. Nesse ponto, uma medida positiva foi o fim do financiamento de empresas privadas e a fixação de limites para os gastos com campanhas eleitorais após decisão do Supremo Tribunal Federal em outubro de 2015. Com base na nova regra de financiamento, um estudo de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e das universidades de Berkeley e Stanford, nos Estados Unidos, concluiu que os limites adotados nas campanhas municipais de 2016 aumentaram a competição entre os candidatos, reduziram a chance de os mais ricos se elegerem e diminuíram os casos de reeleição. “Ao estabelecer um teto para o gasto da campanha, vimos que mais candidatos concorreram. Esses candidatos tiveram perfil semelhante e se financiaram em grande parte com dinheiro próprio. Assim, os prefeitos tiveram mais dificuldade de se reeleger”, diz o economista Cláudio Ferraz, da PUC-Rio, um dos autores do estudo.

As eleições de 2018 representam uma chance de colocar de fato uma agenda anticorrupção em destaque no Brasil — como tem feito a França de Macron. E, por que não?, votar a tão alardeada reforma política, que ficou de lado nos últimos meses por causa da crise que afeta o governo Temer. Os parlamentares teriam de votar uma proposta até 30 de setembro para as regras valerem em 2018, um calendário já considerado bastante incerto. A reforma poderá estabelecer uma cláusula de barreira (só poderão estar no Congresso partidos que conquistarem uma quantidade mínima de votos a ser definida) e o fim das coligações entre partidos. “Em 2018, haverá uma oportunidade para o Brasil colocar de pé uma agenda de redução do incentivo à corrupção”, diz o chileno Kaufmann. “Para dar certo, essa agenda precisa ser feita no período de ‘lua de mel’, logo após a eleição. Depois, fica mais difícil.” Os brasileiros irão às urnas para escolher um novo presidente da República — e, quem sabe, para reforçar o passo na marcha do combate à corrupção.

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