Revista Exame

O capitalismo está pouco capitalista

O sistema que mais criou riqueza na história da humanidade agora amplia distorções, aponta o livro The Myth of Capitalism, um dos melhores de 2019

Distrito no Quênia: o mau desempenho do capitalismo moderno tem trazido aumento de preços, mais impactante para os mais pobres | Goran Tomasevic/Reuters

Distrito no Quênia: o mau desempenho do capitalismo moderno tem trazido aumento de preços, mais impactante para os mais pobres | Goran Tomasevic/Reuters

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Da Redação

Publicado em 19 de dezembro de 2019 às 05h30.

Última atualização em 19 de dezembro de 2019 às 06h30.

Quando se trata de perspectivas, o livro do economista americano Jonathan Tepper, The Myth of Capitalism: Monopolies and the Death of Competition (“O mito do capitalismo: monopólios e a morte da concorrência”, sem versão para o português), nasceu como um dos melhores do ano, segundo o jornal inglês Financial Times, e incorpora-se a uma intensa busca de explicações para o evidente desempenho defeituoso do capitalismo moderno, que tem gerado uma enorme insatisfação mundo afora.

A tese de Tepper é que, embora o capitalismo tenha se mostrado o melhor sistema para criação de riqueza e redução da pobreza da população, hoje o que vemos é algo totalmente diferente de sua origem, baseada na existência de mercados concorrenciais. Em outras palavras, a batalha da competição está sendo perdida, porque todos os setores estão se tornando altamente concentrados nas mãos de poucos. E capitalismo sem competição não é capitalismo.

O crescimento do poder de mercado pelas firmas dominantes tem resultado em menos investimento, menor produtividade, menor dinamismo, margens maiores, menores salários e maior concentração de riqueza. No setor de tecnologia, o que já não era bom fica muito pior, dada a prevalência do modelo “o ganhador leva tudo”. Isso é especialmente relevante no caso de Apple, Google, Amazon, Facebook e Microsoft, que “são ótimas para os acionistas, mas são arrogantes e matam a competição”, segundo Tepper.

Nos últimos dez anos, essas cinco grandes empresas compraram 436 companhias, desenvolvendo verdadeiros monopólios em muitas áreas fundamentais (como mecanismos de busca), tudo isso sem que os reguladores tivessem dito algo relevante a respeito. Foi só muito recentemente que o Departamento de Justiça e a Federal Trade Comission abriram processos para investigar práticas anticompetitivas de algumas dessas companhias.

O ponto central de Tepper é que se vive um intenso processo de concentração da produção dos diversos setores da economia. Ao longo do livro, ele faz uma extensa apresentação de evidências de monopólios em segmentos tão distintos quanto redes sociais, leite, ferrovias, chips e sementes. Duopólios aparecem em sistema de pagamentos, cerveja, publicidade online, vidros e outros. E, finalmente, oligopólios estão em segmentos como empresas aéreas, companhias telefônicas, bancos, assistência médica. Em alguns casos, como na indústria de carne, há uma reconstituição do caminho da concentração, citando em destaque a JBS e a Tyson Foods.

Essa concentração, naturalmente, decorre de grandes processos de fusões e aquisições de empresas. Na história dos Estados Unidos são bastante  conhecidos dois momentos muito intensos nessa direção: na passagem do século 19 para o século 20 e após 1990. O primeiro momento, que coincide com o auge de figuras como JP Morgan e John Rockefeller, acabou por levar à edição do Sherman Act, principal instrumento legal para o desenvolvimento da política antitruste. São as idas e vindas da força dessa política contra o monopólio que explicam o momento atual.

Maior concentração implica maior poder das empresas de elevar preços, aumentando suas margens. Em 2007, o economista Matthew Weinberg publicou um estudo sobre fusões entre competidores dos 22 anos anteriores e descobriu que a maioria dos negócios resultou em elevação de preços, tanto naquelas que se fundiram quanto nas rivais. Concluiu que a evidência de que fusões resultam em aumento de preços, e de margens, é devastadora.

Prédio do Google na Alemanha: concentração leva a maior lucratividade | Marc Müller/dpa/AGB Photo

Na mesma linha, John Kwoka, especialista em política de competição, mostrou que, em 95% dos casos, sempre que processos de fusões e aquisições resultaram em menos de seis competidores principais, os preços subiram 4,3%, em média. A consequência desse movimento é uma persistente elevação das margens das grandes empresas, e isso também está claramente demonstrado num trabalho recente de economistas do Fundo Monetário Internacional. Federico J. Díez e colegas constataram que entre 1980 e 2016 as margens das maiores companhias nos países avançados subiram, em média, 39%; e nos Estados Unidos, 42%.

É inequívoco que a concentração nos diversos setores leva a maiores margens e lucratividade, com fortes consequências sobre o sistema econômico. E estas não são pequenas, como é mostrado ao longo do livro. A parcela dos salários na renda nacional começa a se contrair na inversa relação da concentração dos mercados, e com ela há uma nítida piora na distribuição da renda pessoal, hoje universalmente conhecida e debatida. Além da piora da classe média, Tepper apresenta um dado que chama a atenção: 84% de todas as ações de empresas estão nas mãos dos 10% mais ricos da população.

John Rockefeller: seu império inspirou as leis antitruste no início do século 20 | Keystone-France/Getty Images

Toda essa transformação decorre do auge e do declínio da política antimonopólio. De fato, do final dos anos 30 ao início dos anos 80, a política pró-competição foi bem intensa. Em muitos casos, não podendo comprar concorrentes, as companhias começaram a fazer aquisições em outras áreas, formando grandes conglomerados.

Mais recentemente, uma nova fase de concentração veio a ocorrer e teve como um de seus suportes a imensa influência da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, onde pontificaram nomes como Eugene Fama, Richard Posner e Robert Bork. A crença de que a intervenção estatal sempre termina mal e que a desregulamentação seria positiva levou, por exemplo, à liberalização do setor financeiro e à grande crise de 2007 e 2008.

Ao contrário da regulação, o que se defendia era o livre funcionamento dos mercados: se a atividade fosse lucrativa, sempre apareceria a competição, e o bem-estar seria maximizado. Entretanto, como a evidência mostra, não foi o que aconteceu. Na verdade, a situação limite se verificou na importância dos gigantes da tecnologia. Como disse Tepper, a grande ironia é que, sendo contra monopólios e contra concentração de poder, Friedman e outros propugnaram políticas que acabaram por criar todas as condições para eles.

A conclusão não poderia ser outra a não ser a necessidade de uma reforma na direção de injetar competição no sistema. Mas isso ainda não sabemos como fazer. Estamos às voltas com o que parece ser o maior problema da economia global: a concentração do poder econômico e suas consequências. Afinal, capitalismo sem competição não é capitalismo. 


José Roberto Mendonça de Barros, sócio da consultoria MB Associados, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda de 1995 a 1998

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