Revista Exame

O BNDES mudou e quem dependia do crédito teve de "se coçar"

Uma nova política operacional é adotada pelo banco estatal, e as empresas brasileiras correm atrás de alternativas para financiar seus negócios

Luis Gambim, da DAF: a montadora americana está em processo de abertura de seu banco no país para financiar os clientes brasileiros (Marcelo Almeida/Exame)

Luis Gambim, da DAF: a montadora americana está em processo de abertura de seu banco no país para financiar os clientes brasileiros (Marcelo Almeida/Exame)

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Flávia Furlan

Publicado em 4 de maio de 2017 às 05h55.

Última atualização em 4 de maio de 2017 às 05h55.

São Paulo – Os executivos da montadora de caminhões americana DAF aguardam ansiosos a autorização para a abertura de seu banco no país — o pedido já foi feito e em 30 dias o plano de negócios será apresentado ao Banco Central. Assim como faz em outros mercados, o banco da montadora, parte do grupo Paccar, com receita global de 17 bilhões de dólares, vai ajudar a financiar os clientes na aquisição de veículos.

Por aqui, essa não era uma necessidade urgente quando a empresa chegou, em 2011, e investiu 1 bilhão de reais na construção de uma fábrica na cidade de Ponta Grossa, no Paraná, com capacidade para produzir 10 000 unidades por ano. Na época, a economia brasileira crescia 4% ao ano, a venda de caminhões batia recorde e o crédito era farto e barato. Passados alguns anos, já com a fábrica em operação, o cenário é outro. A economia encolheu e os clientes cortaram as encomendas.

Como se não bastasse, desde 2015 o acesso ao crédito ficou mais difícil. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que chegou a oferecer 77% do dinheiro para a compra de caminhões no país a uma taxa de juro de 2,5% ao ano, mudou de estratégia. O BNDES passou a financiar uma fatia menor do valor dos veículos. E quem dependia do crédito também teve de mudar.

Com seu banco, a DAF espera vender mais caminhões — hoje são 1 500 por ano. “Queremos estar com nosso banco pronto para quando o mercado reagir”, diz Luis Gambim, diretor comercial da DAF. Nos cálculos da DAF, em 2022 os recursos do BNDES vão representar metade do valor usado na compra de caminhões no país, abrindo espaço para o banco da montadora gradualmente crescer nos empréstimos — parte com repasses do BNDES, parte com capital próprio.

Não foi só a DAF que teve de encontrar uma saída diante do recuo do BNDES. Empresas dos setores de energia, máquinas, autopeças e outros estão convivendo com o fato de o banco não ser mais aquela fonte abundante de distribuição de dinheiro público a taxas camaradas. A ideia do governo é afastar o BNDES da orientação reforçada em 2009, após a crise econômica mundial, de anabolizar o setor produtivo.

De 2007 a 2014, a carteira do banco cresceu mais de quatro vezes, atingindo 11% do produto interno bruto e um quinto do crédito do país. Para um grupo seleto de empresas, as chamadas “campeãs nacionais”, foram destinados 40 bilhões de reais, em crédito e em participação acionária. O objetivo era que elas crescessem e representassem o Brasil pelo mundo. O avanço só foi possível porque o Tesouro Nacional aportou mais de 400 bilhões de reais no banco, em operações que embutiam subsídios também bilionários.

O fluxo de dinheiro era tanto que o BNDES chegou a financiar anualmente um valor três vezes maior do que o do Banco Mundial — organização multilateral que atende dezenas de países de renda média e baixa. Com a nomeação da economista Maria Silvia Bastos Marques para a presidência do BNDES em junho de 2016, o governo Michel Temer deu um basta ao crescimento exponencial que contribuiu para ampliar o rombo das contas públicas e não elevou o nível de investimento no país. “A mudança é positiva porque a política anterior trazia problemas fiscais e não se sustentaria no médio prazo”, diz Ricardo Carvalho, diretor da agência de classificação de risco Fitch.

De fato, não tinha como durar muito. Por isso, a política do BNDES começou a ser revista já em 2015, quando o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy decidiu fechar a torneira. A recessão também foi determinante para reduzir a demanda por empréstimos subsidiados. Por fim, o avanço da Operação Lava-Jato, que colocou no olho do furacão muitos dos grandes clientes do banco, ajudou a encolher ainda mais a atuação do BNDES — aos poucos, as delações de executivos da Odebrecht levantaram suspeitas de favorecimento envolvendo o banco durante os anos PT.

No começo de abril, Emílio Odebrecht, principal acionista do grupo, narrou que pediu ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para “prestigiar” e evitar “dificuldades” na extensão do valor de uma linha de crédito do BNDES para um serviço da empreiteira em Angola. O ex-presidente Marcelo Odebrecht e o ex-diretor de infraestrutura da construtora João Nogueira contaram que a empreiteira pagou 12 milhões de reais à empresa DM Desenvolvimento de Negócios Internacionais, indicada pelo ex-assessor do Ministério da Fazenda Luiz Eduardo Melin, para que ela ajudasse o grupo com informações nas demandas de financiamento para obras no exterior.

Em nota pública, o BNDES informou que instaurou uma comissão interna para apurar o caso. É fato, de todo modo, que o banco financiou quase 10 bilhões de dólares de empreitadas internacionais da Odebrecht, sobretudo na América Latina. Um dos exemplos foi o crédito de 682 milhões concedido à Odebrecht para a construção do porto de Mariel, em Cuba. No Peru, as investigações apontam que a distribuição de propina da Odebrecht envolve três ex-presidentes da República.

Independentemente de novos enroscos que o banco tenha ter de apurar no futuro, sob o comando de Maria Silvia foi colocada em curso uma nova política operacional que limita o acesso a dinheiro barato. O BNDES estipulou que sua participação nos empréstimos com taxas subsidiadas será de, no máximo, 80% do valor do projeto ou do bem a ser adquirido. Há gradações, dependendo do negócio — esse máximo é para projetos considerados de bom retorno social ou ambiental.

O restante terá de ser bancado pelo tomador ou por outras fontes de financiamento. “Daremos ênfase a uma atuação focada em projetos, e não mais em setores”, respondeu Maria Silvia a EXAME por e-mail. A taxa de longo prazo cobrada pelo banco, principal instrumento para financiamentos desse tipo no país, também vai mudar. Até dezembro, continuará valendo a Taxa de Juro de Longo Prazo (TJLP), que é fixada pelo Conselho Monetário Nacional e hoje está em 7% ao ano.

Segundo o economista Roberto Castello Branco, diretor do centro de estudos Crescimento & Desenvolvimento da Fundação Getulio Vargas, a TJLP foi concebida para flutuar ao longo do tempo, mas foi alterada apenas nove vezes de 2007 a 2016. Em quase todo esse período, ela ficou muito abaixo da taxa básica da economia — e daí surgia um subsídio implícito do governo nessas operações, já que o Tesouro captava os recursos a uma taxa superior àquela que era cobrada ao emprestar.

Em seu lugar, entrará gradualmente nos próximos cinco anos a nova taxa de longo prazo, a TLP, que seguirá um título público com prazo de cinco anos que rende um juro fixo mais a taxa de inflação. Um estudo feito pela economista Adriana Dupita, do banco Santander, mostra que, ao final dos cinco anos de transição da regra, a TLP deverá estar em 8,5% ao ano, acima da taxa básica de juro.

Por isso, muitas companhias já começaram a se movimentar diante das novas políticas. No ano passado, pela primeira vez em uma década, o mercado de capitais superou o banco de desenvolvimento como fonte de financiamento das empresas, segundo o Centro de Estudos do Instituto Ibmec. Dados da consultoria Inter.B mostram que, no financiamento à infraestrutura, a participação do BNDES caiu de 73%, em 2014, para 62%, em 2016 — já a emissão de títulos de dívida para financiar a infraestrutura subiu de 11% para 15% no período.

“Há muito tempo as emissões no mercado de capitais como um todo estão no patamar de 100 bilhões de reais”, diz José Eduardo Laloni, diretor da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais. “Com as mudanças no BNDES, os investidores podem ter mais apetite para financiar projetos de longo prazo.”

Um exemplo ocorreu nos leilões recentes de infraestrutura. A empresa espanhola Arteris venceu no final de abril a disputa para administrar os 720 quilômetros da rodovia dos Calçados, entre as cidades de Itaporanga e Franca, no interior de São Paulo. A concessão do governo paulista prevê investimentos de 5 bilhões de reais em 30 anos. Num projeto desse, no passado, o BNDES chegava a financiar 70% do valor com taxas subsidiadas. Agora, a fatia é de até 50%.

Porém, bancos internacionais se interessaram pelo projeto. Isso porque foi criada uma regra que permite ao concessionário abater a variação cambial do valor da outorga devida, numa espécie de proteção cambial. O International Finance Corporation, uma instituição do Banco Mundial, ofereceu 400 milhões de dólares à concessionária. “Temos mais alternativas e estamos avaliando todas as possibilidades”, afirma David Díaz, presidente da Arteris.

Com menos dinheiro barato do BNDES, as concessionárias terão de acessar fontes de crédito mais custosas, e o efeito será um pedágio mais caro. Estudos acadêmicos mostram que a retirada da TJLP poderia encarecer 20% as tarifas — e isso tem sido uma das críticas em relação ao recuo do BNDES. “O problema maior é que antes eram criadas tarifas artificialmente baixas, mas toda a sociedade pagava a conta dos subsídios do BNDES”, diz Diogo Berger, chefe da área de projetos de infraestrutura do Santander.

É verdade que muita gente aproveitou os tempos de dinheiro fácil para atualizar e ampliar sua estrutura. A fabricante gaúcha de carrocerias para caminhões Randon investiu nos últimos anos para expandir a capacidade de produção para 26 000 semirreboques por ano em suas três fábricas. No entanto, as vendas anuais da empresa estão em 10 000 unidades. “Nossa capacidade seria suficiente para abastecer todo o mercado brasileiro de semirreboques hoje”, afirma Geraldo Santa Catharina, diretor financeiro da Randon. “Olhando no retrovisor, houve um exagero.”

Apesar de reconhecer a necessidade de mudanças, os empresários reclamam da velocidade, do formato e da dose das mudanças em curso. Com o BNDES no futuro oferecendo juros de mercado, parte da indústria argumenta que as margens, já apertadas, serão ainda mais espremidas. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo elaborou um estudo em que mostra que, com a adoção da nova modalidade de juros, os financiamentos com recursos do BNDES ficarão mais caros a ponto de fazer cair em 0,5 ponto do PIB o investimento médio anual das empresas no país. Com isso, deixariam de ser criados 500 000 empregos, sempre segundo a Fiesp.

“Sem a participação do BNDES, a vida será muito mais difícil e a retomada da produção industrial para níveis sustentáveis não acontecerá”, diz Alcides Braga, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Implementos Rodoviários. No setor de infraestrutura, há reclamações sobre a alta exigência de garantias por parte do banco, deixando pouco para os demais financiadores do projeto. Em resposta, o BNDES diz que está em estágio avançado de negociação com os bancos para compartilhar garantias.

Lentidão nos empréstimos

Outra frente de insatisfação é a demora na liberação dos empréstimos, o que obriga os empresários a buscar recursos temporários nos bancos privados, pagando juros altos. “A morosidade do BNDES aumentou nos últimos dois anos”, diz Eduardo Sattamini, presidente da geradora de energia Engie. “Temos casos em que recebemos os recursos juntamente com a entrada em operação comercial.”

No Complexo Eólico Santa Mônica, um projeto de 460 milhões de reais da Engie no município de Trairi, no Ceará, a entrada em funcionamento se deu no segundo semestre do ano passado, mas os recursos do BNDES só chegaram em fevereiro deste ano. Um levantamento feito pelo próprio BNDES mostra que, nas operações não automáticas (o que exclui as feitas por agentes financeiros e de até 20 milhões de reais), o prazo médio de liberação é de 315 dias, podendo chegar a 2 518 dias. A meta do BNDES é já neste ano fechar pelo menos metade das liberações em até 180 dias, aprimorando os processos.

Para que os planos de Maria Silvia de fato se concretizem, ela tem o desafio de convencer os próprios funcionários de carreira do banco das mudanças que estão sendo feitas. Segundo EXAME apurou, muitos técnicos reclamam da nova diretoria. Um exemplo da resistência foi a mobilização de 600 funcionários contra a nova taxa de longo prazo, a TLP, em assembleia realizada em fevereiro.

Na cultura do banco, a hierarquia sempre foi seguida à risca e esse tipo de manifestação é considerado inédito. “Seja no setor público, seja no privado, é natural que o que é novo cause resistência, principalmente nos funcionários mais antigos”, diz Eliane Lustosa, diretora da área de mercado de capitais do BNDES. “Mas nossa avaliação é que o banco precisa discutir as melhores formas para que se torne mais eficiente.”

Os críticos reclamam que não houve diálogo com os técnicos nem apresentação de pesquisas que justifiquem a TLP. Dizem ainda que a nova diretoria teria alegado que a mudança seria feita via projeto de lei, garantindo uma discussão mais aprofundada sobre a nova metodologia. No dia 26 de abril, porém, o presidente Michel Temer editou uma medida provisória instituindo a nova taxa, o que enfurece parte do corpo técnico do banco.

Em nada melhora o clima entre os funcionários o fato de operações consideradas nebulosas voltarem à tona. Além das pressões que envolvem os novos desdobramentos da Lava-Jato (a rodada de depoimentos de executivos da empreiteira OAS deve ocorrer em breve), em abril, o Tribunal de Contas da União avançou em outro ponto sensível: determinou que se investigue o empréstimo de 750 milhões de dólares do BNDES à JBS, uma das empresas eleitas da política de campeões nacionais, para a compra do frigorífico americano Swift em 2007.

De acordo com o tribunal, há indícios de favorecimento à JBS na liberação do recurso. O banco alegou que ajuda nas investigações. A JBS diz que as operações foram feitas com lisura. As investigações têm efeito dentro do BNDES: geram um temor de técnicos em assinar documentos, reduzindo a celeridade dos processos. Desde janeiro, quando a Justiça Federal de Mato Grosso do Sul confirmou uma liminar de bloqueio de bens de 23 funcionários do BNDES, entre técnicos, diretores e até o ex-presidente Luciano Coutinho, no caso do financiamento à Usina São Fernando, do pecuarista José Carlos Bumlai, há tensão pelos corredores do banco.

Que a vida ficou mais dura para quem depende do BNDES é óbvio. Mas, no longo prazo, as mudanças trarão impactos positivos para a economia. Um desses benefícios está na política de combate à inflação. Economistas apontam que o crédito subsidiado torna a política monetária menos eficiente. Metade do crédito no Brasil é de alguma forma subsidiado, sendo 42% operados pelo BNDES. Isso exige que o Banco Central tenha de fazer movimentos mais fortes na taxa básica de juro para conseguir efeito sobre a outra metade do volume de crédito, que responde à flutuação dos juros de mercado. O governo estima que a taxa Selic poderá cair 1 ponto com uma nova postura do BNDES.

“Mexer no juro cobrado pelo banco foi uma das maneiras encontradas de arrumar essa distorção na política monetária e fazer o juro básico cair”, diz um técnico da equipe econômica que participou da decisão. Também há impactos na política fiscal: o Tesouro Nacional economiza 5 bilhões de reais a cada 1 ponto de redução da diferença entre o juro do BNDES e a taxa básica da economia, segundo um estudo do banco Santander.

Assim como em outros aspectos da economia, a mudança no BNDES expõe as disfunções do país nos últimos anos. À medida que o Banco Central puder reduzir mais o juro básico, investidores antes acomodados pelos retornos altos dos títulos públicos terão de buscar a rentabilidade no financiamento aos negócios. É fato também que reduzir apenas a participação do BNDES na economia não resolve todos os problemas da nação.

“Se o governo não fizesse nada do ponto de vista fiscal, encolher o BNDES seria negativo para a atividade”, diz Solange Srour, economista-chefe da gestora de recursos ARX. “Por isso, outras coisas precisam andar juntas. A agenda de reformas também precisa passar para reduzir o risco do país.” Parece coerente que a política fiscal e a monetária caminhem juntas, o que não aconteceu nos últimos anos. O novo BNDES é apenas mais uma peça nesse processo de reorganização do Brasil.

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