Exército no Espírito Santo: sobrou para os militares apaziguarem a crise de comando na polícia capixaba (Tânia Rego/Agência Brasil)
Leo Branco
Publicado em 1 de março de 2017 às 05h55.
Última atualização em 2 de março de 2017 às 16h06.
São Paulo – A segunda-feira 6 de fevereiro transformou-se numa data emblemática do despreparo do Estado brasileiro para cumprir a missão de evitar o caos social. No Espírito Santo, um motim de policiais por melhores salários, iniciado dois dias antes, abrira espaço para a bandidagem tomar conta das maiores cidades. Dezenas de saques a lojas e assaltos nas ruas impuseram um toque de recolher à população da Grande Vitória.
Nas primeiras 24 horas foram cometidos 40 assassinatos, dez vezes a média diária normal para o padrão capixaba (em 17 dias de rebelião, a contagem chegou a 177 mortos). Enquanto isso, em Brasília, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, cumpria o último expediente na pasta. Desde então, Moraes está com a cabeça no Supremo Tribunal Federal (STF), para onde foi indicado pelo presidente Michel Temer.
O ministério que deixou para trás, responsável em última instância por colocar em pé uma resposta à baderna no Espírito Santo, ficou num completo vazio de poder. Até o fechamento desta edição, em 20 de fevereiro, não havia uma clara indicação de quem assumiria a pasta após Carlos Velloso, ministro aposentado do STF, ter recusado o convite de Temer — que, segundo o jurista, busca alguém disposto a “salvar o Brasil” no cargo.
Entre os cotados está o vice-procurador-geral da República, José Bonifácio de Andrada, jurista mineiro próximo a políticos do PSDB. Essa solução garantiria o apoio tucano em votações importantes para o governo no Congresso. Também não está claro se a Secretaria de Segurança Pública, hoje parte do Ministério da Justiça, fica onde está ou vai para um gabinete ligado à Presidência. Só após o Carnaval deve sair uma decisão. Até lá, medidas concretas para “salvar o Brasil” estarão em suspenso.
Um mês antes do terror capixaba, uma sequência de rebeliões em presídios, que começaram em Manaus e se espalharam para Boa Vista e Natal, deixando 119 mortos, apressou o Ministério da Justiça a lançar um plano nacional de segurança. É a sexta tentativa federal de organizar o enfrentamento ao crime desde 2000. No rol das 70 medidas do plano está o reforço do combate ao narcotráfico em fronteiras, o investimento de 1,5 bilhão de reais na abertura de 25 000 vagas em presídios dos estados e na construção de cinco prisões federais, além de aportes para modernizar as polícias estaduais.
O anúncio das medidas não conseguiu evitar a crise de comando na polícia capixaba, que ensaiou se alastrar para o vizinho Rio de Janeiro. Em nível federal, a principal resposta à crise veio do Exército. Para o Espírito Santo, onde boa parte dos 10 000 policiais segue amotinada e 10% do contingente está sendo processado por insubordinação, foram enviados 3 400 soldados, além de 200 homens da Força Nacional. No auge da crise capixaba, a ação do governo federal foi comandada diretamente pelo ministro da Defesa, Raul Jungmann.
Embora eficaz na retomada da normalidade, o uso das Forças Armadas é uma aberração — por definição, o papel do Exército é garantir a soberania nacional. “Alguém do Ministério da Justiça deveria estar resolvendo a crise no Espírito Santo”, diz Isabel Figueiredo, diretora da Secretaria de Segurança Pública de 2011 a 2014 e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o principal centro de estudos de violência do país. “É um indício de como a pasta anda desvalorizada.”
Se nada mudar, o pacote de medidas contra o crime do governo Temer deve seguir o mesmo caminho dos anteriores. Embora cheios de boas ideias, os planos de segurança acabaram surtindo pouquíssimo efeito no combate ao crime. Há muitas razões para o fracasso. A começar pela atuação anêmica da União no assunto: a Constituição de 1988 coloca sobre os estados o dever de gerir as polícias civil e militar. Mesmo assim, diante do clamor da sociedade por respostas em meio a eclosões de violência, todos os presidentes, desde Fernando Henrique Cardoso, criaram estratégias para o tema.
Mas boa parte do anunciado acabou nunca saindo do papel, uma característica comum a outras áreas do governo federal — basta lembrar que os programas de infraestrutura PAC 1 e PAC 2 concluíram somente 17% das obras anunciadas em sete anos. O primeiro plano nacional de segurança foi lançado em junho de 2000 após uma ação desastrada da polícia carioca no sequestro da linha de ônibus 174 causar a morte de uma passageira e do próprio sequestrador.
O projeto tinha 112 medidas ambiciosas anticrime, como a integração das polícias civil e militar e a construção de 25 presídios federais nos dois anos que restavam de governo FHC. A união das forças de segurança, que depende de mudança na legislação, nunca chegou a andar no Congresso, muito por causa da rixa que as corporações nutrem entre si. Do papel saíram quatro presídios, entregues no governo Lula, e um fundo para a modernização das forças de segurança estaduais.
Aberto em 2001, o fundo sofreu sucessivos cortes em detrimento de outras prioridades do Ministério da Justiça, como a Polícia Federal. Em 2016, a União dividiu 400 milhões de reais entre os 27 estados. “Em termos reais, é uma queda de 48% em relação ao início do fundo”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O governo Lula, em seus dois mandatos, foi o mais prolífico em ideias para a segurança pública. Os dois planos nacionais que lançou somam 248 objetivos — entre eles a criação da Força Nacional, uma tropa de elite com 1 000 homens enviados em crises como a do Espírito Santo e a do Rio de Janeiro. Boa parte das metas, porém, ficou pelo caminho. Um exemplo é a abertura de um banco de dados nacional para as estatísticas criminais, algo essencial para usar mais inteligência em favor da segurança.
Anunciado em 2003, o sistema só saiu nove anos mais tarde e segue incompleto. O projeto previa equipes regionais de estatísticos para ajudar os estados a padronizar o registro criminal. Nada disso foi feito, em grande medida pela pressão dos governadores, que nunca se sentiram confortáveis com a ingerência federal sobre dados de criminalidade frequentemente negativos a eles. Então, até hoje, cada estado computa os crimes à sua maneira e manda quando quer os dados para o Ministério da Justiça. “As informações estão atualizadas só até 2014 e para apenas seis tipos de crime”, diz o criminologista Tulio Kahn. “O banco de dados é insuficiente para a avaliação e para o planejamento de políticas públicas.”
Além da falta de rigor na execução, houve sucessivas mudanças de rumo nos programas. Um caso exemplar é o do Pronasci, o segundo plano de Lula, lançado em 2007. Ele previa investir 6,2 bilhões de reais na redução à metade, até 2012, da taxa de homicídios no Brasil, que então estava em 24 casos por 100 000 habitantes ao ano — hoje a taxa beira 26 casos. A estratégia era fechar parcerias com municípios de 11 regiões metropolitanas para montar programas sociais voltados para os jovens de 15 a 29 anos, faixa etária com maior risco de morte violenta.
A abordagem preventiva foi inspirada em bons exemplos internacionais no combate à violência, como o de Bogotá e o de Medellín, na Colômbia. O problema é que, para ganhar apoio político, o governo federal mudou as regras no meio do caminho para beneficiar também cidades do interior. Os recursos foram diluídos em quase 200 municípios, alguns sem indícios de violência descontrolada, como a gaúcha São Borja, a 600 quilômetros de Porto Alegre, onde a taxa de homicídios só superou a média nacional uma vez de 1999 a 2013.
Coincidência ou não, a cidade é a terra natal do então ministro da Justiça, Tarso Genro. “São Borja é uma região de roubo de gado”, diz Tarso Genro. “Onde o programa foi aplicado houve redução dos homicídios.” Mas o resultado geral é que o Pronasci fracassou na meta de reduzir os assassinatos no país: após cinco anos, em vez de cair, a taxa reportada pelos estados subiu 8%.
O governo seguinte, de Dilma Rousseff, em vez de avaliar os erros e consertá-los, resolveu abandonar o Pronasci e criar outro plano praticamente do zero. Batizado de Brasil Mais Seguro, ele foi lançado em 2012 em meio a uma onda de assassinatos em Alagoas e teve como marca o envio de tropas da Força Nacional ao estado — medida que representou o oposto do que estava no Pronasci, que pretendia investir num policiamento comunitário aos moldes das unidades de polícia pacificadora nas favelas cariocas. Na última tacada, em 2015, diante de índices crescentes de assassinatos no país inteiro, Dilma lançou um segundo programa contra homicídios, mas a proposta parou no Congresso com o impeachment.
Uma das consequências da incapacidade crônica do governo federal em deslanchar um plano de segurança é o fato de que a conta da violência ficou mais onerosa. A começar pelas despesas do próprio governo. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desde 2002 os gastos públicos aumentaram 69% — em 2015, foram 81 bilhões de reais, no total de União, estados e municípios. É um avanço superior ao do PIB no período, de 49%.
Em proporção ao tamanho da economia, o Brasil gasta mais do que paí-ses desenvolvidos, como França e Estados Unidos. “Boa parte é usada em salários e aposentadorias. Sobra pouco para melhorar as condições de trabalho na ponta”, diz o sociólogo Luis Flávio Sapori, pesquisador de violência da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. As consequências são uma polícia que não investiga as causas da violência — apenas 8% dos assassinatos são esclarecidos no país, ante 96% na Alemanha — e nossa permanência no rol dos lugares mais perigosos do mundo.
Em 2014, o Brasil ocupava o décimo lugar na lista de assassinatos por habitante da Organização das Nações Unidas, encabeçada por Honduras, El Salvador e Venezuela. Além das mortes — que superam os 50 000 por ano —, a insegurança causa danos à economia. De acordo com a Confederação Nacional das Indústrias, 4% do faturamento das associadas é gasto com segurança privada e perdas com roubos (veja quadro ao lado).
Sem um plano efetivo para coordenar as ações no país, sobra para os estados se virarem como podem na linha de frente da segurança pública. Neste momento, com raras exceções, os governadores estão às voltas com um cenário de arrecadação em queda e demandas sociais crescentes. O risco, nessas horas, é enxergar na austeridade fiscal a causa dos distúrbios. Essa tentação cresceu porque o Espírito Santo, palco das últimas demonstrações de violência, tem justamente um governo que fez a lição de casa e que vinha colhendo bons resultados na segurança.
O governador capixaba, Paulo Hartung, cortou as despesas em 8% desde 2015 e em dois anos elevou o gasto com segurança em 10% no estado, historicamente violento. Os recursos permitiram seguir adiante um programa de reformas em presídios e treinar policiais civis e militares para a prevenção de violência em áreas barra-pesada de nove cidades. Com essas medidas, a taxa de assassinatos no Espírito Santo caiu 32% desde 2010. Por que, então, explodiu ali uma crise de comando?
Para os especialistas em segurança, o motim no Espírito Santo está ligado à falta de canais de diálogo entre policiais e técnicos das secretarias de Segurança sobre pautas como aumento salarial e melhores condições de trabalho. “Isso explica por que os policiais sentem a necessidade de recorrer a uma ruptura radical para ser ouvidos”, diz o cientista político Robert Muggah, do Instituto Igarapé, centro de estudos da violência do Rio de Janeiro.
A experiência internacional mostra que, quando o governo federal toma as rédeas da política de segurança, o país inteiro sai ganhando. Na trajetória recente dos Estados Unidos há um bom exemplo. Lá, desde os anos 60, a Casa Branca coloca fundos à disposição para estados e municípios modernizarem equipamentos e pagar cursos de reciclagem aos policiais. Em troca, exige dos comandos locais padrões de governança como a uniformização das estatísticas criminais.
Em 1994, em meio a uma onda de violência recorde, o presidente Bill Clinton redobrou a aposta e convenceu o Congresso a aprovar um aporte de 30 bilhões de dólares para estados e municípios reforçarem a segurança. Um quinto dessa verba foi destinado ao aprimoramento de programas de policiamento comunitário. Foram contratados cerca de 100 000 novos policiais nos seis anos seguintes. E quase 10 bilhões de dólares foram aplicados à construção de presídios. O investimento nas polícias reduziu os crimes violentos e ajudou o país a diminuir a criminalidade geral pela metade em 2013 em relação ao pico de 1991 — hoje essas taxas se mantêm estáveis.
No Brasil, o governo de Michel Temer já tem as bases para agir. O plano anunciado por Alexandre de Moraes tem o mérito de retomar ideias elogiadas pelos especialistas em programas anteriores (Moraes é criticado por não deixar claro que as medidas que anunciou já existiam antes de sua passagem pelo Ministério da Justiça). Entre as medidas propostas estão a formação de uma força-tarefa para rastrear armas ilegais, emperrada desde 2012, a criação de uma força policial especializada em crimes contra a mulher e um mutirão do Ministério da Justiça com as secretarias estaduais de Segurança e o Judiciário para fazer um pente-fino nos processos dos presos provisórios. Falta agora um ministro para a pasta que seja capaz de, enfim, transformar intenções em realidade. E para que os brasileiros possam ter confiança de que o Estado é capaz de dar conta de sua missão mais essencial.