Revista Exame

Luz no fim do túnel?

Um novo ciclo presidencial é o momento para discutir o governo ideal — mais eficiente no atendimento à população, menos permeável à politicagem. Sem isso, não há desenvolvimento possível


	Não acaba nunca: pelo país, muitas obras, como a transposição do rio São Francisco, acumulam atraso e estouro de verba
 (Ueslei Marcelino/Reuters)

Não acaba nunca: pelo país, muitas obras, como a transposição do rio São Francisco, acumulam atraso e estouro de verba (Ueslei Marcelino/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 21 de novembro de 2014 às 09h00.

São Paulo - Discutir o papel e o tamanho do Estado é algo que a humanidade faz há séculos. Nos anos 1700, o filósofo inglês John Locke dizia que a função principal do poder era a garantia da propriedade privada e dos direitos individuais. Já o suíço Jean-Jacques Rousseau defendia que o governo deveria atuar para reduzir a desigualdade. De lá para cá, cada sociedade foi escolhendo sua variante.

Países com tradição liberal tendem a optar por uma versão mais enxuta, que abra mais espaço para o cidadão. O Brasil, por sua vez, sempre teve um Estado mais atuante. Até aí, vá lá: pode-se argumentar que há exemplos virtuosos nos dois modelos.

O dilema, para nós, é que o Estado se tornou não a solução, mas o problema. Temos uma carga tributária das mais pesadas — e serviços tipicamente subdesenvolvidos. Nos últimos quatro anos, o intervencionismo foi ao exagero, mas o Banco Central vem perdendo a briga com a inflação.

Mais do que os debates teóricos, são escolhas como essas — mais policiais nas ruas ou mais dinheiro para empresas amigas — que definirão que país vamos construir.

Na escolha entre Dilma Rousseff, do PT, e o tucano Aécio Neves (esta reportagem foi finalizada cinco dias antes da votação final), o Brasil está definindo que tipo de governo terá por quatro anos, pelo menos.

Nenhum candidato defende um Estado mínimo — nem a Constituição de 1988 permitiria que assim fosse —, mas o resultado da eleição indica nitidamente como o setor público continuará a exercer sua função.

“O primeiro passo para o desenvolvimento sustentável é ter um governo com gestão eficiente”, diz Mauricio Harger, presidente do Grupo Mexichem, dono de marcas como a Amanco. “Isso permite o aumento dos investimentos públicos e melhora o ambiente de negócios.”

As discussões mais modernas sobre o tamanho do Estado na economia se dão em três frentes. Quanto e como o Estado deve intervir para produzir crescimento econômico; como deve proceder para distribuir renda e entregar serviços que reduzam a desigualdade de oportunidades; e como regular o mercado da forma mais eficiente possível.

Intervir na economia é uma enorme tentação para governantes sobretudo por essas bandas do mundo, onde pululam exemplos extremados, como os de Venezuela e Argentina. Mas o consenso entre estudiosos está distante do modo como as coisas funcionam por aqui.

O americano Steven Kelman, professor de administração pública na Universidade Harvard, defende que os governos se limitem a prover educação de qualidade para todos, a criar infraestrutura adequada e a garantir que as instituições não sejam permeáveis a favorecimentos ilícitos ou imorais a grupos específicos.

“Isso deveria ser o bastante para criar as bases do crescimento”, diz Kelman. A lógica é que a sociedade não pode ter a impressão de que a maneira mais fácil de enriquecer é recorrendo a favores do governo. O caminho para o sucesso precisa depender mais do esforço do que das conexões pessoais.

“É o que diferencia as instituições de um país desenvolvido daquelas de um país em desenvolvimento”, afirma Kelman. O Brasil não cumpre bem nenhuma das três medidas citadas pelo professor de Harvard e se aventura em um caminho perigoso quando se trata de distribuir benesses.

O caso de exagero mais flagrante está na gestão da economia, com um elenco crescente de medidas para tentar impulsionar o consumo e os investimentos,  tomadas como se tudo respondesse diretamente à vontade da presidente.

Como consequência dessa empreitada voluntariosa, os subsídios e as desonerações representarão uma herança de 550 bilhões de reais de passivo para o próximo governo, nas contas do economista Felipe Salto, da Tendências Consultoria. Isso vai exigir um baita esforço do próximo presidente para reequilibrar as contas.

Na prática, o resultado de tanto estímulo foi pífio: de 2011 a 2014, a média de crescimento anual da economia deve ficar abaixo de 2%. Os investimentos caíram ano a ano e estão atualmente na faixa dos 16% do PIB. Empresários e consumidores estão pessimistas em relação ao futuro próximo.

“Precisamos de uma nova mentalidade no Brasil, que valorize a iniciativa privada”, diz Marco Stefanini, dono da empresa de serviços de tecnologia Stefanini. “E isso só vai acontecer reduzindo o grau de intervencionismo do Estado na economia.”

O irônico é que boa parte do fracasso dos últimos anos não ocorreu a despeito das medidas do governo — mas por causa dessas medidas. Ao mexer demais nas regras do jogo, Brasília provocou instabilidade e deteriorou o ambiente de negócios.

“O atual governo criou uma série de medidas discricionárias para tentar gerar crescimento”, diz o economista Marcos Lisboa, vice-presidente da escola de negócios Insper. “Mas conseguiu apenas enfraquecer as instituições e, quando isso ocorre, o efeito é o que estamos vendo.”

Cair nas graças

Quando a credibilidade das instituições é abalada, toda a confiança no governo vai por água abaixo. Uma das políticas mais questionadas dos últimos anos é a da atuação do BNDES, banco estatal voltado para a promoção do investimento. Apesar de ser uma das instituições públicas mais respeitadas por seu corpo técnico qualificado, o BNDES se viu nos últimos anos cercado de questionamentos.

Desde 2008, o banco distribuiu, para um grupo seleto de empresas, cerca de 400 bilhões de reais em empréstimos a juros abaixo da média de mercado. Foi a política de escolha de campeões nacionais. Diversas questões foram levantadas: por que algumas empresas foram escolhidas e outras não? Qual a eficácia dessa política?

Aldo Musacchio, professor da Universidade Harvard, e Sérgio Lazzarini, do Insper, há anos estudam em conjunto os financiamentos do BNDES. A primeira crítica que fazem: as informações sobre o estoque de empréstimo por empresa não são públicas.

“Só conseguimos descobrir os repasses feitos às empresas de capital aberto porque olhamos o balanço delas e vimos que conseguiram dinheiro a juros subsidiados”, diz Lazzarini.

Do que foi possível analisar, eles chegaram a um resultado: cerca de 60% dos empréstimos vão para empresas grandes. “São recursos públicos para companhias que podem facilmente obter financiamento no mercado, sem necessidade de juros subsidiados”, afirma Musacchio.

Os dois fizeram um estudo estatístico que mostrou que empresas que doam recursos a campanhas eleitorais obtêm empréstimos em média de 46 milhões de dólares para cada deputado eleito que elas apoiam. Doar a políticos vencedores ajuda a empresa a ser selecionada para projetos do governo, que em geral recebem subsídios.

Um estudo do pesquisador Taylor Ruas, da Universidade de Boston, mostrou que empresas que doaram a deputados do PT receberam o equivalente a até 39 vezes o valor da doação na forma de contratos públicos. “Essas empresas caem nas graças dos governantes”, diz Lazzarini.

A relação baseada na troca de favores entre público e privado é o que o cientista político americano Stephen Haber chama de capitalismo de compadrio. “Trata-se de um sistema em que aqueles próximos do poder recebem favores como crédito mais barato ou monopólios de mercado”, escreveu Haber no livro Capitalismo de Compadrio e Crescimento Econômico na América Latina, organizado por ele em 2002. 

Protegido: controlado pelo governo, o setor de petróleo avança menos do que poderia e é repleto de negócios suspeitos (Divulgação)

O governo também ganha: será por acaso que hoje é tão importante preencher a máquina pública com nomes do partido? Um levantamento feito pela cientista política Maria Celina D’Araujo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, comparou a filiação partidária dos ocupantes de cargos do alto escalão da burocracia federal.

São os postos que formam o chamado “núcleo duro” da administração, logo abaixo de ministros. Com base em formulários preenchidos por 1 030 dirigentes dos últimos quatro governos, Maria Celina concluiu que o governo Dilma foi o “mais partidário dos governos petistas”.

Um em cada quatro membros da elite burocrática do governo atual é filiado a partidos políticos. E, dos filiados, 82% são do PT e 18% de partidos da coalizão. No governo FHC, 18% dos altos burocratas eram filiados a partidos, dos quais metade tinha inscrição no PSDB.

“Essas nomeações refletem preferências políticas e, provavelmente, recursos adicionais de poder nas mãos do partido”, avaliou Maria Celina no livro Redemocratização e Mudança Social no Brasil, publicado recentemente.

O aparelhamento também afeta o segundo pilar de atuação proposto por Kelman — de que forma o Estado se posiciona em relação aos mercados. Aqui o melhor exemplo são as agências reguladoras. Elas foram instituídas entre 1996 e 2001, na esteira das privatizações, para criar regras, fiscalizar investimentos e evitar abusos em diversos setores.

Para exercer bem sua função, precisam ser independentes tanto do governo quanto do mercado. Nos últimos anos, essa ideia escorreu pelo ralo. Os investidores não conseguem ver nos técnicos que comandam as agências autonomia de atuação em relação ao Executivo.

A Aneel, agência reguladora do setor de energia elétrica, é apontada como uma das mais obedientes ao que interessa ao Palácio do Planalto. Há pouco tempo, provocou fortes suspeitas a postergação de uma mudança no cálculo do subsídio que o governo dá à conta de luz de famílias de baixa renda.

Prevista em lei de 2010, a medida deveria ter entrado em vigor neste ano — mas foi adiada. Ao mesmo tempo, a estreia de um sistema que permitiria às distribuidoras repassar elevações de custos às tarifas também foi empurrada para 2015. É difícil não relacionar as mudanças às eleições.

Afinal, aumentos no preço da energia ao longo de 2014 poderiam arranhar a imagem de Dilma. As contas que sobram vão se somar a outras que o setor arrastará nos próximos anos, com efeitos sobre a economia como um todo.

“A previsibilidade na área de energia está completamente destruída, seja pelas medidas intempestivas da presidente Dilma, seja pela subordinação completa que a Aneel demonstra ao governo”, diz o presidente de uma associação empresarial do setor.

Outra interferência malvista se deu no setor de telefonia. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) é a responsável por fazer os leilões das faixas de frequência para os diversos serviços prestados no setor.

Até o fim de 2013, o presidente da Anatel, João Rezende, vinha dando declarações de que gostaria que o leilão da faixa de 700 megahertz — feito para complementar a cobertura de internet móvel 4G — abrisse mão de arrecadação em troca de compromissos das operadoras com a melhoria do serviço.

Afinal, é por qualidade e cobertura que a Anatel deve zelar, como fez no leilão de 3G, em que exigiu que a telefonia móvel chegasse a todos os municípios. Mas, desta vez, não foi o que se viu. No leilão realizado no fim de setembro, o foco foi a arrecadação de 5,8 bilhões de reais para ajudar a fechar as contas do governo.

Não foram cobrados novos compromissos das operadoras. “O ideal seria exigir investimento em troca dos lotes leiloados”, diz Rezende. “Mas a ausência de obrigações vai facilitar que as empresas cumpram as metas assumidas anteriormente. A decisão não teve interferência do Tesouro.”

Pode ter sido assim. Mas funcionários da Anatel afirmam que a maioria dos diretores está inteiramente alinhada com os objetivos do governo.

Investimentos emperrados

Um relatório divulgado no primeiro semestre pelo Tribunal de Contas da União avaliou a qualidade de seis desses órgãos seguindo parâmetros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Foram avaliadas a ANTT, que regula os transportes terrestres; a ANP, do petróleo; a Antaq, dos transportes aquaviários; a Anatel, de telefonia; a Aneel, de energia elétrica; e a Anac, de aviação civil. Em duas delas, ANTT e ANP, o nível de transparência da tomada de decisões foi classificado como ruim; o tempo em que cargos de diretoria ficaram vagos foi considerado alto demais; e nenhuma delas tem política de gestão de riscos.

Os parâmetros de qualidade em regulação estabelecidos pela OCDE indicam que o orçamento das agências precisa ser protegido da possibilidade de retaliação política.

Um documento conjunto das associações de servidores das principais agências e enviado às equipes dos candidatos à Presidência da República apontou a autonomia orçamentária como a prioridade para o resgate da independência desses órgãos.

“Hoje, muitos reguladores deixam de fazer vistorias in loco devido a restrições orçamentárias”, diz o presidente da associação dos servidores de uma das agências.

Os fundos setoriais, que são alimentados pelas taxas de fiscalização cobradas pelas agências, chegam a arrecadar 12,5 bilhões de reais por ano, mas o governo federal liberou menos de 3 bilhões em 2013 para custear as atividades das reguladoras. O restante foi retido para o superávit primário.

Engana-se quem pensa que a discussão sobre como o Estado deve regular a economia é trivial. Tanto não é que o francês Jean Tirole, professor da Toulouse School of Economics, ganhou o Prêmio Nobel de Economia deste ano por seus estudos sobre concorrência e regulação de mercados, com atenção especial ao setor de telecomunicações.

A teoria principal de Tirole tenta mostrar até que ponto o regulador pode exigir do regulado sem alterar sua decisão de investimento. “Pela lógica de Tirole, o Estado não deve aumentar a expropriação dos lucros de uma empresa se ela passa a ganhar mais por esforços próprios, como investimento em melhoria da produtividade”, diz João Manoel Pinho de Mello, professor de economia na escola de negócios Insper.

Quando o Estado interfere, acaba afetando diretamente o humor dos empresários. “O governo no Brasil quer controlar tudo”, diz Julian Thomas, presidente da transportadora marítima Hamburg Süd. “E isso emperra a economia.” O setor químico, por exemplo, que depende muito do custo da eletricidade para pôr de pé seus projetos, não tem nenhuma fábrica nova prevista para os próximos anos.

“Ninguém vai planejar investimento hoje se não houver indicações de que, em quatro ou cinco anos, que é o tempo que leva a construção de uma fábrica, o custo da energia estará em patamar competitivo”, diz Fernando Figueiredo, presidente da Associação Brasileira da Indústria Química.

No caso das telecomunicações, as mudanças afastaram investidores estrangeiros — o que, Rezende admite, foi sua maior frustração. “A falta de independência do regulador desestimulou novas operadoras a participar do leilão”, diz Eduardo Tude, presidente da Teleco, uma consultoria de telecomunicações.

A serviço do poder

Redistribuir renda e promover a igualdade social é o terceiro pilar de atuação do Estado que precisa ser bem discutido. Nesse aspecto, o Brasil teve avanços: pelo Índice de Gini, que mostra a concentração de renda, o país reduziu 10% as desigualdades de 2003 para cá.

Boa parte disso vem de programas de transferência de renda, mas é crucial melhorar serviços públicos, como educação, saúde e segurança, para oferecer igualdade de oportunidades. Nesse aspecto, além de mais dinheiro, faz diferença a qualidade dos servidores públicos, para que eles implementem políticas de governo de forma eficiente.

“A profissionalização dos gestores da máquina pública é a recomendação número 1 de todos os organismos internacionais para melhorar a qualidade institucional”, diz o consultor espanhol Francisco Longo, professor do Instituto de Governança Pública da escola de negócios Esade, de Barcelona.

A confusão mais comum é imaginar que esse fortalecimento dos quadros do setor público ocorre por meio de mais contratações. Nos últimos dez anos, o número de servidores ativos dos Três Poderes e do Ministério Público cresceu 30%.

“No caso brasileiro, o mais urgente a fazer é uma reforma de base que permita a avaliação de ­desempenho dos funcionários públicos e a flexibilização das carreiras para facilitar tanto promoções quanto demissões por cumprimento ou não das metas”, diz Regina Pacheco, coordenadora do mestrado em administração pública da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

Um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento, divulgado no início deste ano, mostra que a discussão sobre meritocracia no serviço público avançou muito na América Latina na última década. Mas o Brasil parece ter parado no tempo.

Em 2004, liderávamos o ranking de países latino-americanos em qualidade do servidor público, indicador que considera elementos como o planejamento de ações, a avaliação de desempenho e a organização de funções. Mas a última versão do ranking, com dados de 2012, mostra que fomos ultrapassados pelo Chile.

O Brasil foi um dos únicos países que ficaram praticamente estagnados no número de pontos — foi de 64 para 65 num total de 100. Enquanto isso, o Chile avançou 8 pontos; a Costa Rica subiu 7; a Colômbia, 6; e a República Dominicana, partindo de uma base menor, subiu 12 pontos.

O relatório do BID diz que “o sistema de avaliação de desempenho dos servidores brasileiros se mostra frágil, e o processo de consolidação dos avanços na área pública tem um dinamismo menor do que tinha no passado”. O próximo presidente não pode se contentar com a máquina pública que está aí.

Para que o Brasil se torne um país desenvolvido, precisará ser muito melhor que seus vizinhos. Afinal, com exceção do Chile atual, a América Latina nunca foi um primor quando se trata de qualidade das instituições.

Infelizmente, esses pontos não foram debatidos de forma clara pelos dois candidatos. Dilma e Aécio ficaram só na superfície do problema. A estratégia foi resgatar os casos mais recentes para colocar em xeque a ética e a honestidade do adversário e de seu grupo político.

Fato é que o pior efeito do esquema de drenagem de recursos da Petrobras para beneficiar interesses dos partidos políticos, inclusive os de oposição, vai além da ordem moral: esquemas assim mostram como as instituições hoje servem mais ao poder do que à população. É hora de inverter o sentido para o que recomendaram os melhores pensadores clássicos: todo poder deve servir ao povo.

Acompanhe tudo sobre:Desenvolvimento econômicoEdição 1076EleiçõesGoverno

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