BRF: segundo o Ministério Público do Trabalho, foram mais de 30 000 afastamentos na unidade de Uberlândia (Divulgação)
Da Redação
Publicado em 28 de setembro de 2012 às 06h00.
São Paulo - A mineira Dayana de Oliveira Santos, de 28 anos, arrumou seu primeiro emprego de carteira assinada em abril de 2009 na unidade de aves da BRF de Uberlândia, onde foi trabalhar na desossa de frango. Quatro meses depois, começou a sentir dores no braço direito — era uma tendinite, causada pelos mais de 50 movimentos com as mãos que ela fazia por minuto.
Em dezembro daquele ano, Dayana fez duas cirurgias no antebraço, mas as dores não cessaram. Ela acabou sendo afastada em julho de 2010 e até hoje não pôde voltar a trabalhar. Mãe de duas crianças, de 4 e 6 anos, Dayana vive atualmente dos 800 reais do auxílio-doença que recebe do governo e tudo indica que será aposentada por invalidez.
“Desde que fiquei doente, não consigo carregar meus filhos”, afirma. Sua colega Elizabet Almeida Nunes, de 34 anos, cortava peito de peru na mesma empresa e se afastou em fevereiro deste ano depois de tirar 15 licenças de dois ou três dias por causa das dores que sentia nos braços desde o final de 2010 — e diz que agora não volta mais à BRF.
Longe de se tratar de casos isolados, os problemas de saúde enfrentados por Dayana e Elizabet são mais comuns do que se imagina no Brasil.
De maio do ano passado para cá, o Ministério Público do Trabalho vistoriou 25 frigoríficos e abatedouros em todo o país — entre eles unidades da BRF, JBS, Marfrig e Minerva, os maiores do setor — e encontrou um cenário que julgou preocupante: funcionários que passavam 8 horas em pé nas linhas de abate e processamento de carne, exposição por horas a fio a temperaturas em torno de 10 graus e até restrições para uso do banheiro.
Embora o universo investigado seja relativamente pequeno — estima-se que existam no país cerca de 2 000 frigoríficos e abatedouros —, os dados são alarmantes. Segundo cálculos dos procuradores, entre 20% e 30% de toda a mão de obra empregada no setor de aves no Brasil, ou 100 000 pessoas, possui alguma doença ligada ao trabalho.
Até agora, a unidade da BRF em Uberlândia, Minas Gerais, foi a que apresentou o quadro mais grave. O MPT encontrou registros de mais de 30 000 afastamentos por motivo de doença só em 2010 — 12 000 deles diretamente ligados a esforços repetitivos. Como a unidade emprega cerca de 3 500 funcionários em suas linhas de abate e processamento de carne, na prática é como se cada um deles fosse afastado do trabalho por pelo menos um dia três vezes no ano.
Em 2011, a situação não foi muito diferente: foram 8 200 afastamentos por lesões diretamente relacionadas à atividade. “Poucos ambientes de trabalho hoje oferecem tantos riscos à saúde como o de frigoríficos”, diz o procurador Sandro Sardá, que coordena a equipe do Ministério Público do Trabalho. Por meio de nota, a BRF afirmou que está contestando na Justiça os dados do MPT e diz ter diminuído a frequência de afastamentos em 39% entre 2010 e 2011 em todas as unidades da empresa.
Em um setor intensivo em mão de obra e com pouca mecanização, como o de carnes, é natural que o número de problemas ligados ao trabalho aumente conforme a produção. E ela cresceu freneticamente no Brasil na última década: saltou de 16 milhões de toneladas em 2001 para 26 milhões em 2011, fazendo do país o segundo maior produtor mundial de carne bovina e o terceiro maior de carne de frango.
As exportações, por sua vez, mais que triplicaram no mesmo período, chegando a 29 bilhões de reais no ano passado — hoje, um em cada seis frangos consumidos no planeta saem daqui. A dificuldade está em criar mecanismos capazes de proteger os trabalhadores sem prejudicar o funcionamento de um dos setores mais pujantes da economia.
De acordo com o MPT, os problemas de saúde dos funcionários de abatedouros e frigoríficos poderiam ser reduzidos com pausas que somariam 1 hora durante a jornada, além da diminuição no número de horas extras. Ocorre que, em muitos casos, são os próprios trabalhadores que querem a extensão do horário.
“Quando ameaçamos cortar a hora extra em uma unidade, houve ameaça de greve”, diz Wilson Mello, vice-presidente de assuntos corporativos da BRF. “O funcionário já conta com aqueles 300 reais a mais no fim do mês.”
Se tiver de conceder mais pausas aos empregados, a BRF estima perdas da ordem de 500 milhões de reais por ano — a não ser que promova mudanças, como introduzir novos turnos nas fábricas e investir em máquinas para tornar o processo menos manual. Isso sem falar no agravamento de um já sério problema de escassez de mão de obra no setor. O frigorífico Marfrig, por exemplo, está com 2 000 vagas abertas.
Apesar de se tratar de uma indústria gigantesca, não existe consenso no mundo sobre a melhor maneira de lidar com os problemas inerentes a esse tipo de trabalho, e tampouco sobre o papel do Estado nessa regulação. Na China e na Indonésia, importantes produtores de carne, o funcionário é livre para escolher quantas horas deseja trabalhar — lá, as jornadas frequentemente ultrapassam as 15 horas diárias.
Nos Estados Unidos e na Europa, o trabalho de desossa é geralmente realizado por imigrantes, e o tempo de pausa e a quantidade de horas extras são determinados em comum acordo entre a empresa e o sindicato, sem nenhuma interferência do governo.
No Brasil, embora as companhias tenham liberdade para determinar o esquema de trabalho, na prática elas ficam sujeitas a uma miríade de leis, nem sempre relacionadas diretamente à atividade (no caso de esforços repetitivos, por exemplo, costuma-se recorrer a uma norma usada em geral para o setor de datilografia).
“Temos apenas 13 ou 14 processos trabalhistas em nossa operação americana”, diz Francisco de Assis e Silva, diretor jurídico do JBS, a maior empresa de proteína animal do mundo. “No Brasil, são 6 000.” Outros 12 frigoríficos devem ser inspecionados pelo MPT num futuro próximo.
O Ministério do Trabalho deve publicar até o fim deste ano uma regulamentação específica para os frigoríficos. É o que a sociedade e as empresas esperam.