Crianças no Cazaquistão: dinheiro de propina virou verba para ONG (Divulgação/Site Exame)
Raphaela Sereno
Publicado em 14 de novembro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 14 de novembro de 2016 às 05h55.
São Paulo — Quase 20 anos à frente do centro de Estudos da Sociedade Civil do Instituto Johns Hopkins para Saúde e Política Social, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, o americano Lester Salamon foi o primeiro a realizar estudos empíricos sobre o terceiro setor em seu país, nos anos 70. De lá para cá, ele se dedica a analisar mecanismos de interação entre governos, ONGs e empresas em prol do investimento social no mundo inteiro.
Em seu último livro, Philanthropication thru Privatization: Building Permanent Endowments for the Common Good — a versão em português, Filantropização via Privatização: Garantindo Receitas Permanentes para o Bem Comum, será lançada no Brasil neste mês —, Lester apresenta o conceito de filantropização, que ele criou para explicar um fenômeno que ocorre pelo menos desde os anos 60 em vários países.
Trata-se de um processo em que ativos públicos — empresas, royalties pagos pelo setor privado e até patrimônios arquitetônicos — são transformados, total ou parcialmente, em fundos patrimoniais geridos por fundações independentes, cujos rendimentos são convertidos em benefícios sociais. O objetivo é garantir receitas de longo prazo — e fora do orçamento dos governos — para enfrentar problemas crônicos, como pobreza e falta de acesso à educação.
Lester e outros nove especialistas mapearam mais de 500 casos em cerca de 20 países. Juntas, as fundações estudadas somam 136 bilhões de dólares em ativos. Para ele, o Brasil pode aproveitar a onda de concessões para criar um modelo próprio de financiamento do terceiro setor. De seu escritório em Baltimore, Salamon falou a EXAME.
Exame - O senhor defende que parte do dinheiro arrecadado pelo governo nos processos de privatização ou de concessões públicas devem dar origem a fundações independentes. Por quê?
Lester - Instituições independentes podem se arriscar mais em suas estratégias, apostar em inovação, sem medo do reflexo político que poderiam ter. O governo absorve muito dinheiro e é muito difícil ter noção exata do destino que é dado a ele. Além disso, a administração pública se vê paralisada na hora de tomar decisões impopulares, mesmo que sejam necessárias. Ainda que as empresas criem as próprias fundações — o que é ótimo —, elas geralmente têm orçamentos atrelados a lucros e a perdas conjunturais.
É por isso que ter um setor sem fins lucrativos forte é importante para um país. A Fundação Volkswagen, por exemplo, que nasceu em 1962, quando a montadora alemã saiu do controle do estado e foi listada na bolsa de valores, surgiu totalmente independente da empresa em termos de gestão. Hoje, ela é uma das principais referências mundiais em fomento à pesquisa científica, com 3 bilhões de dólares em ativos.
Exame - Há um contexto propício a isso hoje?
Lester - O processo de privatização permanece bastante vivo no mundo. De 2012 a 2015, as privatizações somaram globalmente 812 bilhões de dólares, um recorde histórico. Em destaque, estão países como Reino Unido e China. Esse número considera apenas a venda de empresas estatais. Essa, porém, é apenas uma das maneiras pelas quais bens públicos são transferidos à iniciativa privada. Há outros negócios entre governos e investidores que podem dar origem a fundações independentes.
Exame - Que negócios são esses?
Lester - Há alguns modelos consolidados. O primeiro deles está baseado em ativos sob regulação do estado, como as loterias, que em geral precisam de uma licença para operar — e pagam por isso. O melhor exemplo de uso desses recursos em prol de um bem público é a King Baudouin Foundation, entidade com sede na Bélgica que se dedica a temas como capacitação profissional e saúde. Um terço do orçamento dela vem dos rendimentos da loteria belga.
Há ainda um esquema baseado na conversão de uma dívida. Numa operação de perdão de dívida externa, o país credor pode exigir que o governo devedor aplique determinado montante de recursos proveniente de privatizações num fundo em moeda local e transfira isso a instituições filantrópicas. É o caso da Foundation for Polish-German Cooperation (Fundação de Cooperação Polaco-Alemã), em Varsóvia, na Polônia. Em 1991, o governo alemão perdoou um saldo remanescente de um empréstimo tomado pelo governo polonês em 1975 depois da criação dessa fundação.
Exame - Qual é o principal desafio para o avanço da filantropização?
Lester - Convencer os governos a separar mesmo uma fração dos recursos provenientes das privatizações pode ser uma tarefa difícil. Por outro lado, a opção de associar as vendas futuras à criação de fundos patrimoniais de caridade voltados para os cidadãos locais pode ajudar a suavizar a hostilidade que a privatização tem gerado. A filantropização é uma forma de combater essa resistência. No caso dos royalties da mineração, em vez de direcioná-los a governos locais, por que não repassá-los a um fundo patrimonial sob gestão de uma fundação independente?
Daí os benefícios viriam não só mais rapidamente como também seriam mais visíveis para todos. Os governos podem transferir parte de suas responsabilidades para instituições que cuidem de questões complexas, como a regeneração urbana, o desenvolvimento de regiões atrasadas e o desmatamento. Eles podem ganhar credibilidade perante os eleitores ao tomar tais medidas.
Exame - Que regras podem garantir o bom funcionamento dessas fundações?
Lester - Em primeiro lugar é preciso mostrar aos cidadãos que é possível estabelecer parcerias van-tajosas entre governos, empresas e comunidade. O segundo desafio é garantir que as fundações resultantes desses processos sejam transparentes e ca-pazes de minimizar conflitos de interesse entre o público e o privado. Isso demanda um con-trole rígido e independente dessas instituições, as quais são passíveis de desconfiança, tal como ocorre com governos e empresas.
Exame - Esses modelos já são suficientemente conhecidos em países emergentes?
Lester - Uma condição fundamental para que esses modelos se popularizem é informação. Mapeamos mais de 500 casos de fundações que emergiram de algum tipo de privatização em todo o mundo, sobretudo na Áustria, na República Checa, na Alemanha, na Itália, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos. É preciso tornar isso explícito de maneira sistematizada. Uma vez que essa ideia se torne mais visível à sociedade civil, empresários e formuladores de políticas públicas, cada país pode encontrar seu modelo ideal.
Exame - No caso do Brasil, que modelo poderia funcionar?
Lester - Hoje, a ideia de privatização no Brasil se materializa nos programas de concessões. A forma de aplicar a ideia da filantropização às concessões ainda é um desafio. O país tem feito um esforço grande para privatizar alguns serviços, como portos, aeroportos e rodovias.
Se parte dos recursos oriundos desses programas de concessões for canalizada para fundações, a percepção de benefício social da privatização se ampliará para a sociedade civil. Trata-se de um montante que poderia ser direcionado, por exemplo, à ampliação do acesso à internet no país, ainda muito aquém de seu porte. Há um leque de possibilidades para esses recursos em vez de simplesmente mergulhá-los no orçamento do governo.
Exame - Recursos recuperados de escândalos de corrupção, como os obtidos recentemente pela Lava-Jato, poderiam servir a esse propósito?
Lester - Sim. Na maioria das vezes, esse dinheiro fica parado em contas bancárias sob disputas judiciais. E o que acontece depois que esse dinheiro é recuperado? Boa parte das pessoas acredita que o retorno desses recursos ao governo poderia colocá-los novamente em esquemas de corrupção.
Surgiu, então, a ideia de repassá-los a uma ONG. Há um exemplo emblemático no Cazaquistão, o da Bota Foundation. Em 2008, uma parceria entre o governo local e os governos americano e suíço repatriou 100 milhões de dólares oriundos de casos de corrupção no setor de petróleo — tudo em prol dessa instituição que cuida de crianças e jovens pobres do país.