Revista Exame

E agora, prefeito? Grandes cidades pedem (muitas) soluções

Contas desarrumadas, servidores descontentes e uma população que exige mais. Quem assumiu vai ter de mostrar que não é bom só de discurso

São Paulo - O prefeito eleito, João Doria recebe o cargo do ex prefeito, Fernando Haddad, durante cerimônia no Teatro Municipal (Rovena Rosa/Agência Brasil)

São Paulo - O prefeito eleito, João Doria recebe o cargo do ex prefeito, Fernando Haddad, durante cerimônia no Teatro Municipal (Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Flávia Furlan

Publicado em 13 de fevereiro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 13 de fevereiro de 2017 às 05h55.

São Paulo — O início do ano tem sido tumultuado em Florianópolis. Desta vez, a culpa não é só dos milhares de turistas que lotam as praias da capital catarinense no verão. A questão é que, desde 17 de janeiro, boa parte dos 10 000 funcionários da prefeitura está de braços cruzados. Até o fechamento desta edição, em 6 de fevereiro, a greve não tinha prazo para acabar. Os transtornos se amontoam: moradores e visitantes frequentemente dão de cara com postos de saúde e creches fechados. A paralisação foi motivada por um ajuste fiscal anunciado pelo prefeito Gean Loureiro (PMDB) logo após a posse em janeiro.

No rol das 40 medidas de austeridade estão o corte de 300 cargos comissionados e o fim de benesses típicas de governos perdulários, como a concessão de licenças remuneradas de três meses aos funcionários com mais de cinco anos de casa, o pagamento de horas extras pelo triplo do valor normal e o custeio de um passe livre nos ônibus para mais de 17 000 estudantes. Agora os servidores terão “apenas” férias de 30 dias e adicional de 50% sobre o valor normal durante as horas extras.

Apenas estudantes de famílias carentes poderão tomar a condução de graça. Os demais pagarão meia passagem. O aperto tem o objetivo de reverter o rombo municipal, superior a 1 bilhão de reais no ano passado. Nas palavras do prefeito, é algo essencial para a própria sobrevivência da prefeitura, que gasta 58% do orçamento com a folha de pagamentos — 7 pontos acima do recomendado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. “Sem as medidas de ajuste, em setembro não teremos mais recursos para pagar funcionários”, afirma Loureiro.

O corte nas contas públicas em Florianópolis não é exceção. Depois de União e estados anunciarem ajustes por causa da queda na arrecadação de impostos causada pela crise econômica, chegou a vez de os municípios encararem a faxina. Aliás, muitas cidades brasileiras começaram o ano com um problema que tem se espalhado como um rastilho de pólvora aceso: a falta de segurança causada pelas revoltas em presídios e greves brancas de policiais.

Manaus, Porto Velho, Natal e, mais recentemente, Vitória, só para ficar nas capitais, foram abaladas por fugas de presos e crime correndo solto nas ruas. É uma situação que escapa à alçada dos prefeitos — a segurança cabe primordialmente aos governos estaduais, e a União tem sido chamada para prestar socorro, com a Força Nacional e o Exército. Mas afeta diretamente os cidadãos e é mais uma dor de cabeça para o poder municipal.

Passado pouco mais de um mês desde a posse, os prefeitos Brasil afora têm de encarar uma realidade de modo geral dura e começar a mostrar a que vieram. É verdade que não há prefeituras com endividamento comparável ao de estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, em que as dívidas beiram o dobro das receitas. Mas mais de 70 administrações já declararam calamidade financeira desde janeiro, de acordo com a Confederação Nacional dos Municípios.

No ano passado, pela primeira vez desde 1998, as despesas superaram as receitas na soma dos 5 570 municípios do país, de acordo com a consultoria 4E. As prefeituras foram salvas por um fato extraordinário: a entrada de 12 bilhões de reais provenientes de impostos sobre recursos privados que estavam no exterior e foram legalizados com autorização do governo federal. Isso permitiu que os municípios fechassem as contas de 2016 com superávit conjunto de 5 bilhões de reais. Na projeção do banco Itaú, as prefeituras deverão receber mais 1,5 bilhão de reais neste ano gerado por tributos sobre o dinheiro de brasileiros no exterior. “Se os recursos não vierem, o déficit chegará a 500 milhões de reais”, afirma Pedro Schneider, economista do Itaú.

O que está por trás do rombo das prefeituras? Em primeiro lugar, a incapacidade de gerar receitas próprias. Há uma enorme dependência de repasses dos estados e da União para fechar as contas. O problema vem da Constituição de 1988, que atribuiu aos municípios a responsabilidade pelos serviços básicos de saúde e educação, mas deu pouca margem para arrecadação de tributos — a maioria dos fiscos municipais vive de cobrar o imposto sobre serviços e o imposto predial e territorial urbano.

O resultado é que mesmo as maiores cidades brasileiras não conseguem ser autossustentáveis. É o que diz um estudo da consultoria Macroplan, com indicadores fiscais dos 100 maiores centros urbanos, que concentram 39% da população e 50% da riqueza produzida no país. Nessa tropa de elite, apenas seis cidades arrecadam mais do que recebem via repasses.

Em 2015, as transferências para as 100 maiores cidades somaram 91 bilhões de reais, 19% mais do que a arrecadação própria com impostos. E, como a crise econômica afetou todas as esferas, essa fonte de receitas também minguou: somente em 2015 a queda foi de 6%. “As grandes cidades não estão quebradas”, diz Glaucio Neves, diretor da Macroplan. “Mas, sem uma agenda de melhorias de gestão, elas poderão ter problemas fiscais sérios.”

Elevar a arrecadação de tributos para reduzir a dependência é uma intenção de muitos prefeitos empossados em janeiro. Em Fortaleza, onde, para cada 1 real que a União e o estado do Ceará investem na cidade, a prefeitura levanta 56 centavos, em janeiro o prefeito reeleito, Roberto Cláudio (PDT), anunciou um mutirão para aumentar as receitas. A meta é juntar 250 milhões de reais em 2017, o equivalente a 5% do orçamento anual.

No pacote estão inovações como medidas para simplificar a abertura de negócios, processo que deverá ser online a partir de abril, além do pagamento de um bônus de produtividade para os empregados do fisco municipal e da venda de permissões para erguer prédios que extrapolem os limites do Plano Diretor. “Há uma dezena de projetos de grandes edifícios sendo avaliados pela prefeitura”, diz Cláudio.

“Em apenas dois deles, a previsão é arrecadar 37 milhões de reais.” Sem o dinheiro extra será difícil cumprir as promessas de campanha, que incluem a construção de um hospital com 200 leitos, quatro policlínicas e um corredor de ônibus do sul ao centro de Fortaleza. Em situação mais favorável, Cláudio se elegeu pela primeira vez em 2012 com promessas como tapar todos os buracos da cidade em um ano e erguer 11 clínicas — marcas que não cumpriu. “Por causa da crise, agora tive de fazer promessas mais parcimoniosas”, diz Cláudio.

Declarar guerra aos devedores é outra saída de muitas prefeituras. Em Curitiba, o prefeito Rafael Greca (PMN) quer informatizar a cobrança aos inadimplentes. “Há 200 000 processos de devedores parados na gaveta”, diz Greca, que alega ter recebido a prefeitura com 1,2 bilhão de reais de restos a pagar deixados pela gestão anterior. Segundo o ex-prefeito Gustavo Fruet (PDT), isso ocorreu por causa da crise. “A demanda pelos serviços de educação e saúde cresceu por pessoas que antes eram atendidas pela rede privada, mas nossa receita caiu”, diz Fruet.

Como se não bastasse depender muito de um dinheiro sobre o qual têm pouco controle, as cidades vêm expandindo as despesas num ritmo superior ao das receitas. Desde 2010, a arrecadação dos 100 maiores municípios cresceu 15% em termos reais. Já as despesas acumularam aumento de 18%. Na ponta, a consequência para o cidadão é um conjunto de governos com fôlego cada vez menor para investimentos de fato transformadores: apenas uma em cada seis cidades analisadas pela Macroplan consegue manter um saldo após a quitação das despesas.

A grande maioria fica apenas no feijão com arroz do orçamento: o cumprimento dos repasses previstos em lei para educação e saúde consome mais da metade dos recursos em dois terços das cidades. E, nessas condições, qualquer corte acaba sendo bastante sentido pela população. Em Belo Horizonte, onde 58% da receita tem algum destino previsto por lei, os secretários do prefeito Alexandre Kalil (PHS) estão às voltas com as consequências de um corte de 100 milhões de reais feito em 2016, na gestão de Márcio Lacerda (PSB). “Tiraram até a verba para os inseticidas dos abrigos de sem-teto, que agora estão cheios de percevejos”, diz o secretário de Finanças da capital mineira, Fuad Noman.

A evolução dos indicadores sociais nas maiores cidades do país reflete a anemia de recursos. Os números melhoraram, mas ainda estão muito aquém do desejável. A mortalidade infantil — que caiu 33% de 2004 a 2014, de acordo com o levantamento da Macroplan — segue em 12 casos por 1 000 habitantes, alta até mesmo para padrões latino-americanos. No Chile, a taxa é de oito casos.

O volume de esgoto tratado, que subiu de 41% para 50% de 2005 a 2015, é ainda uma vergonha — o enorme volume sem tratamento está entre as causas de epidemias como dengue e zika que infestam as cidades. O problema é que, daqui para a frente, tudo indica que o avanço lento da qualidade de vida não vai mais ser tolerado como antes. Os brasileiros estão mais críticos em relação aos serviços públicos que recebem.

Uma pesquisa do Instituto Ipsos em 72 cidades mostra que a população se queixa mais dos problemas urbanos: em janeiro de 2015, a violência afetava 23% dos entrevistados. Em junho do ano passado, o índice foi de 27%. No mesmo período, a proporção que se queixou de mau atendimento médico subiu 4 pontos percentuais e chegou a 21%. Quem leva a maior parcela de culpa são os prefeitos: para 48% dos entrevistados, o trabalho deles é ruim ou péssimo.

A nota é pior do que a do presidente da República e a dos governadores, que receberam, respectivamente, 44% e 43% de ruim ou péssimo na pesquisa do Ipsos. A bronca maior com os prefeitos se deve ao fato de esse ser o cargo executivo mais próximo do cidadão — e o primeiro alvo quando a violência sobe ou a saúde vai mal. “O prefeito é quase como um síndico de prédio: todos esperam dele alguma solução”, diz Danilo Cersosimo, diretor do Ipsos.

Privatizações

Diante de uma população cada vez mais impaciente, e de menos recursos para agradá-la, fechar parcerias com a iniciativa privada entrou na pauta dos prefeitos que tomaram posse em janeiro. Em São Paulo, João Doria (PSDB) espera privatizar o Centro de Exposições do Anhembi e o Autódromo de Interlagos ainda em 2017 e fala em conceder parques e cemitérios a gestores privados. A ideia é cobrir um buraco deixado no orçamento planejado para este ano pela gestão anterior. “Há 2,4 bilhões de reais em despesas sem cobertura neste ano”, diz Caio Megale, secretário de Finanças de São Paulo.

No Rio de Janeiro, o governo de Marcelo Crivella (PRB), além de conceder ativos como o Teatro Municipal, o Museu da Imagem e do Som e a estatal de iluminação pública RioLuz, quer municipalizar o estádio do Maracanã e o serviço de água e esgoto na cidade para em seguida fazer parcerias público-privadas com esses ativos. Também quer vender a carteira de dívida da prefeitura por 300 milhões de reais — a transação financeira depende de uma lei passar pelo Congresso, o que não tem prazo para ocorrer. Tudo isso para driblar uma arrecadação que não para de cair. “Deveremos arrecadar 26 bilhões de reais neste ano, 9% menos do que havia sido previsto no ano passado”, afirma Maria Eduarda Berto, secretária de Finanças da prefeitura carioca.

Além de repassar para a iniciativa privada a gestão daquilo que não é essencial, há prefeitos buscando parcerias inclusive para o coração da máquina pública. Em Porto Alegre, capital que também está sofrendo os efeitos da crise nos cofres do governo estadual, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) enxugou o número de secretarias de 37 para 15 e criou uma só para avaliar oportunidades de parcerias privadas nas demais — medida também tomada pelos prefeitos de Curitiba e Fortaleza.

Para gerenciar uma prefeitura que, nas suas contas, gasta 13% mais do que arrecada — número que o prefeito anterior, José Fortunati, contesta, dizendo que é inflado —, Marchezan Júnior aplicou um limite de 9 300 reais aos salários de cargos comissionados e busca bons nomes da iniciativa privada para ocupá-los. Um dos primeiros atos de seu governo foi a abertura do Banco de Talentos, um site de seleção de profissionais. O projeto foi desenvolvido em parceria com a consultoria Falconi e com o Juntos pelo Desenvolvimento Sustentável, projeto da organização social Comunitas para melhoria da gestão pública.

Desde janeiro, o site já recebeu mais de 6 000 currículos e de lá saiu a nova diretoria inteira da Carris, empresa que gere o transporte público na capital gaúcha. Entre os selecionados estão ex-alunos de universidades prestigiadas dos Estados Unidos e da França e sem filiação política. “A prioridade nas nomeações é de profissionais que saibam fazer mais com menos recursos”, diz Marchezan Júnior. Disposição para ser austero e criatividade nas soluções é parte do receituário que os prefeitos vão ter de adotar para cumprir o que prometeram meses atrás nas campanhas. O cidadão, eles podem estar certos, vai cobrar.

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