Revista Exame

Decifrando a baixa renda

Os consumidores das classes C, D e E se tornaram prioridade para as empresas — mas para boa parte delas ainda são um enigma a ser desvendado

O publicitário André Torretta, de A Ponte: 110 pesquisadores vasculham a periferia de quatro capitais brasileiras (Germano Lüders/Exame)

O publicitário André Torretta, de A Ponte: 110 pesquisadores vasculham a periferia de quatro capitais brasileiras (Germano Lüders/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 29 de março de 2011 às 11h31.

O salão de festas da Associação Desportiva da Polícia Militar, no bairro da Penha, na zona leste de São Paulo, está longe de figurar no circuito das baladas da cidade. Desconhecido da maioria dos paulistanos, o espaço costuma abrigar shows de grupos de pagode, axé e música sertaneja, todos com apelo nitidamente popular. Cada evento realizado no local é capaz de atrair multidões como a que aparece estampada na foto ao lado. Na ocasião, um show de grupos de pagode chamado Melhores Momentos, ocorrido em agosto, atraiu 17 000 pessoas. A maioria delas pertencente ao que os especialistas em estudos socioeconômicos chamam genericamente de “baixa renda”, a camada da população brasileira cada vez mais cortejada pelas empresas graças a seu crescente potencial de consumo. Ou seja, o show na Associação Desportiva da Polícia Militar seria uma excelente oportunidade para essas empresas exporem suas marcas e produtos — mas não é isso que acontece. No salão onde ocorrem os shows, por exemplo, não há um único anúncio ou ação de marketing. Assim como os paulistanos das classes A e B, os publicitários e executivos de marketing ignoram a existência desses eventos. “Fala-se muito a respeito das classes C e D, mas na verdade se conhece muito pouco o mundo em que essas pessoas vivem”, diz o publicitário André Torretta, dono da empresa de pesquisa A Ponte, especializada em marketing para a baixa renda. O próprio Torretta, por exemplo, não tinha a menor idéia do que acontecia na Associação Desportiva da Polícia Militar até seus eventos serem descobertos por um dos pesquisadores de sua empresa.

Desde a estabilização econômica, a partir do Plano Real, o contínuo aumento no poder de compra das famílias com renda entre 550 e 1 100 reais transformou-as no alvo prioritário das empresas de produtos de consumo no Brasil. Para atender esse mercado, estimado em 159 milhões de pessoas, ou o equivalente a 85% da população brasileira, grandes corporações globais, como Nestlé, Unilever e Pepsico, mudaram a fórmula de seus produtos, simplificaram as embalagens, reduziram custos, montaram novas fábricas e redes de distribuição. No entanto, apesar de todos os progressos já obtidos com essa estratégia, há um crescente interesse das empresas em compreender melhor como esse público se comporta, quais as suas necessidades e, principalmente, quais as melhores formas de comunicação. “Existe uma preocupação por parte das empresas e das agências de publicidade em entender o perfil do consumidor de baixa renda”, diz Luís Minoru, diretor executivo da Ipsos Public Affairs, especializada em pesquisa social e de opinião pública. “Até porque tem acontecido o que chamamos de efeito manada da baixa renda. O raciocínio é: se meu competidor vai atrás das classes populares, eu também vou.”

É nesse contexto que entram consultorias como A Ponte, de Torretta. Refratárias a pesquisas de opinião, as pessoas da chamada base da pirâmide tendem a ver com desconfiança abordagens feitas por desconhecidos, dificultando a obtenção de dados confiáveis sobre seu universo. Para vencer esse entrave, Torretta formou uma equipe de pesquisadores recrutados dentro das próprias comunidades estudadas, os chamados “antenas”. Ao todo, são 110 pessoas que trabalham nos bairros da periferia de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Salvador e de Recife. Munidos de câmeras fotográficas digitais, os antenas se dedicam a tarefas que vão desde registrar o almoço de domingo das famílias da vizinhança até fazer um levantamento sobre as formas de lazer nas comunidades onde moram. Foi numa pesquisa desse tipo que se descobriu o potencial inexplorado de eventos e shows populares. Recentemente, tomando como base as pesquisas da consultoria, a operadora de telefones celulares Claro resolveu patrocinar uma dessas festas no bairro do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo. Além de pagar os custos do evento, representantes da operadora distribuíram créditos de celular aos presentes. “Da mesma forma que temos produtos como o iPhone, queremos também crescer nas classes C e D”, diz Francisco de Oliveira, diretor regional da Claro para o estado de São Paulo.


Em um país de dimensões continentais como o Brasil, é natural que gostos e padrões de consumo variem de uma região para outra. No caso das famílias de baixa renda, essa discrepância é ainda maior. As diferenças vão desde particularidades da linguagem até padrões de comportamento completamente distintos. Para entender melhor essas disparidades regionais, a agência de publicidade DPZ criou um grupo de cinco profissionais de diferentes áreas que funciona como uma espécie de unidade ambulante. O grupo já realizou pesquisas nas regiões Nordeste e Sul e no interior de São Paulo justamente para conhecer as especificidades das classes C e D em cada uma dessas regiões. “Descobrimos que, entre as pessoas da classe C no Nordeste, produtos recomendados pelos amigos, no chamado boca-a-boca, tendem a ser mais bem-sucedidos do que outros que têm propaganda caríssima”, diz Adriana Fávero, diretora de planejamento e pesquisa em mídia da DPZ. “É por fatos como esse que falar de igual para igual com a baixa renda tornou-se uma demanda real para os anunciantes.”

Esse tipo de preocupação das empresas não é um fenômeno exclusivo do Brasil. A tendência é forte também em outros países em que a maioria dos consumidores se concentra nas camadas mais pobres da população, como a Índia. Empresas globais de telefonia celular, como Motorola e Nokia, e de alimentos e produtos de higiene, como Unilever, são algumas das companhias que buscam ir além da conhecida classe média nesses mercados. A Philips, gigante holandesa dos eletrônicos, percebeu recentemente uma oportunidade na Índia ao olhar com atenção a forma como cerca de 100 milhões de famílias preparam suas refeições na zona rural do país. Nessas regiões sem eletricidade, é comum que as pessoas mantenham fogareiros a lenha dentro das casas para preparar a comida. O resultado é que a maioria desses imóveis é constantemente tomada por uma densa fumaça que provoca índices altíssimos de poluição e doenças respiratórias. Em uma parceria entre a matriz, na Holanda, e a filial na Índia, a Philips criou o Chulha, um fogão a lenha feito de concreto e argila e dotado de um sistema de exaustão de fumaça. Com preço máximo de 10 dólares, o Chulha permitiu à Philips cravar sua presença em um mercado onde não teria nenhuma chance de vender seus produtos — afinal de contas, ninguém vai comprar eletrodomésticos onde não há energia elétrica. Mais uma prova de que, para ter uma estratégia bem-sucedida nesse mercado, é preciso, antes de tudo, entender como essas pessoas vivem.

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