Revista Exame

De onde veio o bife que você comeu no almoço?

A pressão por transparência na produção de alimentos está em alta no mundo inteiro, inclusive no Brasil

Escolha criteriosa: cada vez mais o consumidor quer saber como o alimento foi produzido  (Alexandre Severo/Exame)

Escolha criteriosa: cada vez mais o consumidor quer saber como o alimento foi produzido (Alexandre Severo/Exame)

LB

Leo Branco

Publicado em 13 de julho de 2017 às 05h48.

Última atualização em 13 de julho de 2017 às 19h49.

São Paulo — Quem passa pelos corredores de um dos 404 supermercados da rede americana Walmart espalhados pelo Brasil pode deparar, no balcão das carnes, com uma cena inusitada: consumidores com o celular apontado para as etiquetas com códigos de barras coladas nas embalagens das peças nobres, como picanha e filé-mignon. O motivo? Descobrir a origem da carne, quando o boi foi abatido e até a vacinação a que o rebanho foi submetido.

As informações que estão ali fazem parte de um monitoramento que começa na fazenda. Brincos com sensores são instalados em cada animal e mandam os dados de ganho de peso para um software armazenado em nuvem. Não para por aí. A plataforma também permite o registro de informações sobre o manuseio da carne nos frigoríficos e nas transportadoras e ainda quais eram as condições de saúde do animal no fim da vida, onde foi realizado o abate. O sistema de leitura da ficha da carne pelo celular começou a ser implantado pela subsidiária brasileira do Walmart há dois anos, numa tentativa de acabar com os casos de carnes vindas de pastagens abertas ilegalmente em áreas de florestas em estados como Pará  e Mato Grosso do Sul. O rastreamento deve se expandir para outras regiões até o fim do ano.

Toda a tecnologia foi desenvolvida pela startup Safe Trace, de Itajubá, no interior de Minas Gerais. É ela que entra em contato com os fazendeiros para instalar os sensores na boiada e colocar as informações na plataforma. Graças à Safe Trace, hoje, a unidade brasileira do Walmart é reconhecida por entidades ambientalistas, como a americana The Nature Conservancy, pelo esforço de evitar que a carne proveniente de áreas desmatadas chegue às gôndolas. Para o Walmart, esse é um caminho sem volta. “Os consumidores hoje têm uma causa para tudo, inclusive para o que comem”, diz Luiz Herrisson, diretor de sustentabilidade do Walmart Brasil. “Manter boas práticas de produção e mostrá-las aos consumidores passou a ser essencial na venda.” A empresa planeja gradual-mente estender a transparência sobre o histórico dos produtos para outras linhas de alimentos.

A preocupação do Walmart é exemplar de uma tendência que está afetando a cadeia do agronegócio mundo afora: cada vez mais os consumidores querem ter informações sobre a origem da comida que põem na mesa. Uma pesquisa recente da consultoria Nielsen com 30 000 entrevistados em 63 países mostrou que a maioria prefere adquirir um alimento do fabricante ou do vendedor que revela como é seu processo de produção. O dado referente ao Brasil, de 74% de preferência pelas empresas mais transparentes, está na média da América Latina, que só perde para a Ásia nessa exigência. E tudo indica que esse tipo de comportamento só vai crescer daqui para a frente.

Um estudo da consultoria em inteligência de mercado Mintel com 2 000 consumidores americanos acima de 18 anos mostrou que os jovens de até 38 anos, a chamada geração do milênio, costumam ser mais criteriosos com a alimentação do que os mais velhos. Quase metade dos entrevistados dessa faixa etária declarou desconfiar que a produção feita por grandes indústrias alimentícias não siga boas práticas de qualidade. Entre os mais velhos, apenas 18% levantam tais questões. Na mesma pesquisa, seis em cada dez jovens declararam só ir ao mercado para comprar comida fresca. Dos alimentos processados, passam longe.

A pressão crescente sobre a indústria alimentícia para dar transparência aos processos produtivos fez surgir um mercado para os “alimentos éticos”. A expressão, que vem sendo usada por ambientalistas desde meados dos anos 60, define a produção e o comércio de produtos de origem agrícola que, ao menos pelo que diz a propaganda, foram gerados segundo práticas que levam ao bem-estar de todos na cadeia produtiva.

O conceito serve para alimentos sem agrotóxicos, que muita gente acredita causar danos à saúde, mas também para boas práticas de produção, como o pagamento de um valor justo para o fazendeiro ou um manejo que evite maus-tratos ao animal. Comum a cada um desses casos está invariavelmente a divulgação das práticas éticas para um cliente que queira consumir um alimento sem culpa — mesmo pagando mais do que faria por um similar cuja produção não segue esses preceitos.

No mundo inteiro, a venda de alimentos e bebidas com algum apelo mais politicamente correto movimenta hoje um mercado de 800 bilhões de dólares, segundo dados da Euromonitor. A consultoria, focada no consumo, há três anos passou a acompanhar separadamente a categoria dos alimentos cujos fornecedores apregoam o apego a boas práticas na produção. A razão é a velocidade de crescimento das vendas desse leque cada vez mais amplo de produtos.

Em 2020, as receitas desses negócios deverão ultrapassar 1 trilhão de dólares, na previsão da Euromonitor. Exemplo do potencial desse mercado é a expansão da varejista americana Whole Foods, que transformou a preocupação com a origem dos produtos em negócio bilionário. Fundada em 1980, em junho a Whole Foods passou para as mãos da gigante do varejo eletrônico Amazon por quase 14 bilhões de dólares. Mesmo em países emergentes, como o Brasil, onde o baixo padrão de renda poderia dificultar a expansão de cadeias produtivas com esse mote, produzir alimentos de forma sustentável é um bom negócio.

Segundo a Euromonitor, as vendas desses alimentos no Brasil deverão chegar em três anos a 66 bilhões de dólares, quase um terço a mais do que os 50 bilhões de dólares do ano passado. É um mercado que deverá crescer mais no Brasil do que em outros grandes países emergentes, como a China e a Indonésia. No mesmo período, o consumo brasileiro de alimentos e bebidas fabricados sem a preocupação ética deverá crescer apenas 9%.

De ponta a ponta

Na raiz do processo de disseminação dos alimentos “éticos” está o desenvolvimento tecnológico. Esse mercado só se tornou possível porque hoje já existem sensores que acompanham o funcionamento completo de uma fazenda e colocam os dados colhidos na internet, à disposição de todos os envolvidos na cadeia do alimento, da lavoura até a mesa, como produtores rurais, indústrias processadoras, varejistas e consumidores.

Os celulares, por sua vez, são capazes de fazer um consumidor acessar rapidamente as informações e torná-las um critério importante, ao lado de preço e qualidade do produto, na tomada de decisão sobre a compra de um alimento. Muitas das inovações vêm de startups que estão nascendo e crescendo para atender às novas demandas.

A Safe Trace, uma “veterana”, pois foi fundada em 2006, prevê neste ano triplicar a base de clientes que rastreiam suas cadeias produtivas, hoje em cerca de 150 produtores rurais, varejistas e frigoríficos. A estimativa é de expansão das vendas dos serviços em 50%. No início do ano, a projeção era menor, de 30%. Mas a empresa acabou beneficiada pela crise de confiança sobre a produção da carne brasileira, sobretudo no exterior, causada pela Operação Carne Fraca, deflagrada pela Polícia Federal em março. “A operação despertou a atenção de muitos frigoríficos para a importância de dar satisfação aos clientes sobre seus processos”, diz Vasco Picchi, sócio da Safe Trace.

A maior demanda dos consumidores de alimentos com apelo ético é comprar algo produzido sem agrotóxicos. Segundo pesquisa da Mintel feita no ano passado com 300 consumidores brasileiros, praticamente metade deles disse que topa pagar mais por um produto quando é orgânico e livre de químicos.

É um comportamento que persiste mesmo em classes sociais de menor renda: entre os entrevistados das classes DE, o índice de quem paga mais por orgânicos é de 47%, apenas 7 pontos a menos do que os entrevistados das classes AB. Uma necessidade das fabricantes de defensivos agrícolas é criar opções para que o produtor rural consiga eliminar as pragas com pouco ou nenhum uso de químicos. Foi daí que surgiu o negócio da Promip, start-up de Engenheiro Coelho, no interior paulista. A empresa cria vespas e ácaros para atacar os parasitas do campo.

Os pesquisadores da Promip trabalham em parceria com grandes fabricantes de defensivos agrícolas, como a americana DuPont e a alemã Basf, em projetos de pesquisa de alternativas biológicas para o  excesso no uso de agrotóxicos nas fazendas — o que, em muitos casos, leva à perda de eficiência do químico e a prejuízos para as fabricantes de defensivos. Esse trabalho, a principal fonte de receita da Promip, deve fazer a empresa faturar 15 milhões de reais neste ano, 30% mais do que em 2016.

As regras mais duras para a produção de alimentos no país também impulsionam boas práticas. Um exemplo é uma norma editada em 2015 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária que permite a retirada de circulação de produtos que não condizem com as informações do rótulo, algo comum em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, há pelo menos oito décadas.

A medida abriu oportunidades para a PariPassu, startup de Florianópolis, que desenvolveu um software em que produtores de frutas e hortaliças registram informações como data de plantio, insumos utilizados no preparo da terra e modo de transporte até o varejista. As informações podem ser checadas pelo consumidor num código de barras nas embalagens encontradas nas gôndolas. Então, ele pode checar se o que está sendo especificado pelo rótulo do alimento é realmente aquilo que foi produzido, assim como faria a Anvisa com seus fiscais.

Atualmente, 1,2 milhão de toneladas de alimentos são rastreadas pelo sistema, 20% a mais do que era realizado antes da legislação. Boa parte dos novos negócios da PariPassu veio de produtores de orgânicos, que, agora, precisam demonstrar perante a lei que, de fato, produzem orgânicos. Outra norma que impulsionou a transparência na produção dos alimentos veio do Banco Central (BC). Em 2015, o BC criou punições para quem dá crédito para negócios que cometem crimes ambientais.

Essa regra ajudou a Agrotools, empresa que mantém um banco de dados online com imagens de satélite de desmatamentos em 1,7 milhão de fazendas Brasil afora. No ano passado, as receitas da startup paulistana cresceram cinco vezes, para 30 milhões de reais. “Instituições financeiras, como Banco do Brasil e BTG Pactual, nos consultam para checar se os tomadores de empréstimos estão regularizados”, diz Sergio Rocha, fundador da Agrotools.

E a pressão da lei para dar mais transparência à cadeia do agronegócio só deve aumentar daqui para a frente com o Cadastro Ambiental Rural, uma espécie de censo fundiário que deverá entrar em pleno vigor em dezembro de 2017. A consequência: os donos de propriedades rurais que não compartilharem as informações sobre como fazem o manejo de suas lavouras, bem como o tamanho das florestas que mantêm da porteira para dentro, não poderão mais obter financiamento para a safra daqui a dois anos. “Quem não se adaptar vai ter de largar a atividade”, diz Rodrigo Lima, sócio da consultoria ambiental AgroÍcone, que faz assessoria para o manejo sustentável em lavouras.

No longo prazo, é bem provável que as pressões globais levem a um agronegócio mais transparente, a começar por tratados de responsabilidade ambiental ratificados por multinacionais — exemplo disso é a Declaração de Florestas de Nova York, assinada em 2014 pelas Nações Unidas e 52 multinacionais, como a rede de lanchonetes McDonald’s e a fabricante de alimentos Cargill, para eliminar o desmatamento ilegal até 2030.

O próprio enriquecimento da população mundial deve pressionar por uma produção que leve em consideração boas práticas. Segundo estimativas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o clube dos países mais desenvolvidos, o crescimento econômico de nações asiáticas e africanas deverá colocar mais 2 bilhões de pessoas na classe média nos próximos 20 anos. Esses novos emergentes terão melhor nível educacional e mais acesso à tecnologia. Com isso, deverão demandar também mais informações sobre a comida que levam à mesa.

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