Revista Exame

Empreendedores brasileiros, cidadãos do mundo

Um crescente grupo de empreendedores brasileiros mira outros países para suas empresas. Para eles, o Brasil é um grande mercado — mas o mundo é maior

Alessio Alionço, da Pipefy: a maioria da equipe no Brasil, mas clientes no mundo todo   (Divulgação/Divulgação)

Alessio Alionço, da Pipefy: a maioria da equipe no Brasil, mas clientes no mundo todo (Divulgação/Divulgação)

DC

David Cohen

Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h42.

Última atualização em 24 de outubro de 2019 às 11h32.

Em 2019 as startups brasileiras mudaram de patamar. Uma dezena delas atingiu o status de unicórnio, quando são avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares. Elas chegaram lá atacando carências brasileiras, formando uma grande base de clientes e, depois, só depois, passaram a pensar na expansão internacional. Foi assim com a fintech Nubank e com a empresa de entregas Loggi, que anunciaram neste ano a expansão, respectivamente, para a América Latina e para a Europa.

Há, porém, outro grupo de startups que já nascem mirando o mercado global muito antes de conseguir avaliações bilionárias. Estas seguem o exemplo de empreendedores de mercados menores, como Israel e Colômbia, onde ir além das fronteiras é quase uma obrigação desde o primeiro plano de negócios.

É o caso do paranaense Alessio Alionço, criador do software de gestão Pipefy. Alionço era consultor de processos empresariais e lidava com equipes de tecnologia da informação sobrecarregadas por qualquer mudança de sistema. Fundou a Pipefy em 2015, oferecendo um software que o gestor pode administrar sem consultores e técnicos.

O negócio já nasceu com foco internacional. “Se resolvemos um problema comum a qualquer empresa, não há diferencial competitivo em ter um software apenas em português e atender apenas um mercado”, diz Alionço. Segundo ele, o sistema da Pipefy eleva a produtividade das empresas em 35%, em média.

A jornalista catarinense Emília Chagas teve uma visão de mercado e resultados similares para a Contentools, plataforma de gestão de marketing de conteúdo. “Percebemos um problema de organização comum a determinado perfil e tamanho de empresa e de área de marketing, sem distinção por região”, diz Emília. O país que mais comprava soluções desse tipo eram os Estados Unidos, e a empresa mudou a sede para lá em 2015. Seu sistema sugere canais de venda próximos a partir de métricas de conversão anteriores. Segundo ela, a produtividade das equipes de marketing e vendas cresce de 50% a 80%.

Uma das grandes vantagens de mirar o mundo, e não só o Brasil, é driblar nossa falta de mão de obra. O carioca e psicólogo de formação Guilherme Cerqueira criou a startup de pesquisas com o consumidor Worthix em 2015, convencido, após 15 anos de trabalho em outra empresa do ramo, de que era preciso desenvolver métricas melhores para a satisfação dos clientes. Teve, então, a ideia de construir uma inteligência artificial que fizesse perguntas adaptáveis ao diálogo com o consumidor.

Quando o usuário cita muito o preço, por exemplo, ouve mais perguntas sobre o tema para o sistema entender se o preço é determinante na decisão de compra. “Para ir além dos questionários comuns e responder por que um consumidor resolve adquirir um produto ou serviço, precisava de analistas capacitados em inteligência artificial. Ainda não existiam no Brasil”, diz Cerqueira. Ele foi para os Estados Unidos com a família em 2016.

Ida para a Meca

A escolha natural para disputar o mercado global é começar pelo Vale do Silício. A “meca das startups” tem a maior densidade de negócios escaláveis e inovadores per capita. Pipefy, Contentools e Worthix não só se estabeleceram na região mas passaram pelo mesmo programa que os conectaria ao resto do mundo. A aceleradora 500 Startups deu impulso a mais de 2 mil startups, 49% delas vindas de fora dos Estados Unidos. Há mais de 40 negócios brasileiros no portfólio.

“Os investidores falavam que não viam bons empreendedores, empresas e acordos no Brasil. O surgimento de unicórnios gerou referências e atraiu a atenção”, diz Bedy Yang, brasileira e sócia da 500 Startups. Quem também viu o aumento do apetite foi o fundo de investimento Valor Capital Group. Especializado em aproximar os mercados americano e brasileiro, o fundo mantém investimentos em 44 startups, incluindo a Pipefy e a Worthix.

“O ecossistema de empreendedorismo é conectado, com negócios similares nascendo na Argentina ou na Rússia. O Brasil está cada vez mais antenado e bem inserido no movimento global de inovação”, diz Michael Nicklas, sócio do Valor Capital Group.

Ter o Vale do Silício como sede potencializa a carteira de clientes. A Pipefy atende cerca de 15 mil empresas, como o banco Santander e a fabricante de automóveis Volvo, em mais de 150 países. Já a Contentools se uniu à plataforma americana de marketing de crescimento GrowthHackers em novembro de 2018.

Os negócios atendem 2.700 equipes de marketing de empresas como o gigante da computação IBM e a farmacêutica Roche em mais de 70 países. A Worthix atende mais de 80 clientes em seis países, do Banco do Brasil à rede de cafeterias Starbucks.

No Vale do Silício é preciso competir com os melhores, mas lá estão também os maiores bolsos. O paulista Henrique Dubugras e o carioca Pedro Franceschi abandonaram o curso de ciência da computação na Universidade de Stanford para se dedicar à fintech de cartões de crédito Brex, que criaram em 2017.

Eles já haviam fundado a fintech Pagar.me em solo brasileiro, vendida à empresa de pagamentos Stone em 2016. A ida ao Vale se deu para “criar uma empresa de centenas de milhões de dólares” e “fazer as conexões certas”, afirmou Dubugras em entrevista anterior a EXAME. A Brex é avaliada em 2,6 bilhões de dólares. Também em 2017, a recifense In Loco começou sua expansão pelos Estados Unidos.

O plano se intensificou em junho deste ano, após um aporte de 20 milhões de dólares feito por fundos como o Valor Capital Group. A plataforma de academias como benefício corporativo Gympass colocou o pé no acelerador em sua expansão americana no mesmo mês, diante de 300 milhões de dólares recebidos do conglomerado japonês de telecomunicações SoftBank e completados por veículos como o Valor Capital Group.

Se é um caminho excepcional para a multiplicação de oportunidades, o Vale do Silício está longe de ser o único. Que o diga a Tempest Security Intelligence, fundada no ano 2000 por ex-alunos da Universidade Federal de Pernambuco. A ideia era combater fraudes, roubos de dados, vazamentos e extorsão. “A internacionalização sempre esteve em nossa cabeça, porque o mercado de segurança é global”, diz Cristiano Lincoln Mattos, cofundador e presidente da Tempest.

Lincoln tinha certeza de que seria possível competir lá fora, até porque — infelizmente — o Brasil está na vanguarda do crime. “Nos Estados Unidos, cartão de banco não tem chip, só tarja magnética, porque lá não havia o crime de clonagem”, diz. Aqui, ele já ocorre há 15 anos.

Chicko Sousa: ele queria ser local, foi puxado para ser global | Danilo Verpa/Folhapress

Mesmo assim, a Tempest só começou a internacionalização em 2011, quando um ex-funcionário se tornou representante da empresa em Londres. O primeiro cliente foi a revista The Economist, com o serviço de monitoramento das principais ameaças de invasão. O testemunho da Economist em seu site catapultou a procura pela Tempest.

O mercado internacional (até agora Reino Unido, Suíça, Suécia e Estados Unidos) já responde por 15% da receita, que deverá fechar neste ano em 130 milhões de reais. Em 2020, a Tempest pretende captar de 25 milhões a 30 milhões de dólares de investidores, 40% disso para financiar o crescimento lá fora.

A atual onda de brasileiros ganhando o mundo representa uma mudança não só quantitativa como também qualitativa. “Antigamente, a internacionalização de uma empresa seguia o modelo de Upsala, estabelecido na universidade sueca”, diz Luís Antônio Dib, professor de negócios internacionais e planejamento estratégico na Coppead, escola de negócios da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que estudou o assunto em sua tese de doutorado. Por esse modelo, a empresa começa a exportar, depois abre uma subsidiária, adquire experiência local e, finalmente, abre uma fábrica fora.

Atrás do dinheiro

Mas, desde os anos 90, começou a ser notado o fenômeno de empresas de pequeno porte se internacionalizando, algo que a consultoria McKinsey apelidou de Born Global (nascida global). O Brasil engrenou nessa nova lógica. Em parte, porque nosso grande mercado interno atravessa uma crise.

Mas, principalmente, pela abertura de fronteiras, em várias frentes: informações mais disponíveis; tecnologia que derruba custos; oferta de investidores. E também pelo contato com o mundo. Só nos últimos três anos, o número de brasileiros estudando no exterior cresceu de 220 mil para 365 mil. Dos 100 fundadores de startups brasileiras promissoras analisados pela plataforma de inovação Distrito, 22% concluíram o estudo superior no exterior. Sem falar nos empregados de multinacionais, que hoje viajam muito mais.

Às vezes, nem é preciso sair para o mundo. No caso de Francisco Goulão Rego, conhecido como Chicko Sousa, o mundo veio bater à sua porta. Português criado em Curitiba desde os 5 anos, Sousa formou-se em engenharia mecânica e trabalhou na Volvo. Aos 19, fez estágio na Suécia. Aos 22, ofereceram-lhe um plano de carreira até os 35 anos. Ele se assustou. Pediu demissão e foi trabalhar no grupo Kapersul, de plásticos e papéis.

“Em 11 anos, montei 13 fábricas de coleta de resíduos, tratamento de madeira, gerenciamento de resíduos perigosos”, diz Sousa. Aí cansou. Em 2013 pediu as contas e montou uma consultoria de controles ambientais, a Greening Soluções. Seu software de controle dos materiais, baseado na tecnologia de blockchain, logo apresentou um subproduto: aumento de eficiência no transporte, no armazenamento e na detecção de falhas. “A Renault economizou 400 mil reais com o software”, afirma Sousa. Daí montou a Plataforma Verde, hoje com mais de 1.500 clientes.

Colômbia: lá as startups naturalmente miram o exterior | Daniel Garzón/VWPics/AGB Photo

Até aí, nada a ver com internacionalização. Mas, no ano passado, uma missão do Fórum Econômico Mundial, de Davos, na Suíça, premiou a Plataforma Verde como uma das empresas pioneiras em tecnologia, pela solução de rastreabilidade. “Entrei em crise de identidade: eu achava que estava na área de meio ambiente, descobri que tinha uma empresa de tecnologia”, diz Sousa.

Com o palco dos seminários e das comissões do Fórum de Davos, a Plataforma Verde logo se espalhou. “Temos requisições de governos africanos, projetos piloto no Chile e na Argentina, uma negociação no México, pedidos da Sérvia e de alguns estados dos Estados Unidos.” Sousa recebeu 100 mil libras do governo britânico para abrir um escritório em Londres.

Há dois meses, iniciou um road show para atrair investimentos. A empresa ampliou o número de funcionários de 39 para 70. E já tem mais de 400 cidades como clientes de gestão de lixo. “No Brasil, o sistema é doado; lá fora, vai ser vendido”, afirma ele.

“Antigamente, as empresas tendiam a respeitar a distância psíquica”, diz Dib, da Coppead. “Elas iam para países vizinhos ou para Portugal.” Hoje, as oportunidades parecem ter desbancado os temores. Uma delas é a arbitragem: manter funcionários no Brasil, ao custo local, e vender serviços no exterior é um impulso e tanto. A Pipefy concentra 180 dos 200 funcionários no país, com uma sede em Curitiba. A Contentools está com 20 dos 40 empregados em Florianópolis. A Worthix tem 15 desenvolvedores de tecnologia no Rio de Janeiro, de um total de 50 funcionários. “Com a remuneração de um vendedor americano mediano, contratamos os melhores do mercado no Brasil”, afirma Alionço.

Outra oportunidade é o tamanho do mercado. “Só a Inglaterra tem um mercado seis vezes maior do que o brasileiro, e ele cresce a um ritmo maior”, diz Lincoln, da Tempest. A lógica é irresistível: é preciso ir aonde o dinheiro está. 

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