Revista Exame

As bolhas da quarentena

Com a pandemia ainda em alta, grupos de amigos criam regras para socializar-se presencialmente, mas só entre eles. A saúde mental agradece

A relações-públicas Rubia Prado(à dir.), com o marido e amigos: isolamento em grupo com regras previamente acordadas em Ubatuba, no litoral de São Paulo  (Foto/Divulgação)

A relações-públicas Rubia Prado(à dir.), com o marido e amigos: isolamento em grupo com regras previamente acordadas em Ubatuba, no litoral de São Paulo (Foto/Divulgação)

BC

Beatriz Correia

Publicado em 2 de julho de 2020 às 05h15.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h12.

No princípio era o pânico. Asmática e por isso incluída no grupo de risco para o novo coronavírus, a relações-públicas Rubia Prado se autoimpôs um período de reclusão uma semana antes da quarentena decretada pelo governo de São Paulo. Na companhia do marido, o empresário Patrick Cartolano, isolou-se no apartamento do casal na capital e passou a arredar pé de casa só para ir ao térreo exercitar-se.

Com a rápida escalada de casos de covid-19 no país, riscou da lista até as atividades ao ar livre — compras, apenas pelo delivery. Voltou a pisar na rua só 70 dias depois. Fim do isolamento? Não exatamente. Ela trocou a quarentena a dois por outra na Praia de Itamambuca, em Ubatuba, na companhia de mais dois casais, um deles com um bebê de 8 meses.

A princípio, o plano é passar três meses na casa alugada, que dispõe de quatro suítes e distrações como piscina e churrasqueira. “Estávamos todos em regime de home office, cumprindo à risca as determinações das autoridades de saúde e angustiados com a falta de convivência com outras pessoas. Por que não nos juntarmos?” Não se trata de férias na praia.

O grupo acordou que ninguém pode se encontrar com pessoas de fora do círculo, caminhadas à beira-mar não são permitidas nos fins de semana, quando há muita gente, e quem se candidata a ir ao mercado precisa higienizar cada item depois e correr para o banho em seguida. Também estabeleceu que a TV não precisa ficar ligada o tempo todo, bombardeando com notícias angustiantes, e que as refeições devem ser feitas à mesa, em conjunto. “A atenção aos riscos do novo coronavírus continua, mas os dias ficaram mais leves, sem a neurose nem a ansiedade de antes”, resume Prado.

O grupo está vivendo numa bolha. Uma bolha para a quarentena, melhor dizendo, que epidemiologistas e profissionais da saúde mental têm apontado como um caminho eficaz para preservar a sanidade sem comprometer a batalha contra o surto viral. Em geral, é formada por duas ou três famílias que concordam em socializar-se ao vivo e em cores — e com mais ninguém. Dentro da bolha, abre-se mão do uso de máscaras e do distanciamento de 1,8 metro recomendado pela OMS para diminuir os riscos de contágio. Fora dela, as orientações para conter a pandemia são obedecidas com rigor redobrado.

“Isso só funciona para famílias extremamente conscientes da responsabilidade que estão assumindo e que confiam umas nas outras”, alerta a psicanalista Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP. “Quem descumprir o combinado, encontrando alguém de fora, por exemplo, estará colocando todo o grupo em risco.” Observadas as ressalvas, Iaconelli é favorável à ideia.

E diz que é chegada a hora de encarar o fato de que a pandemia está longe do fim e é preciso adaptar-se à nova realidade — com prazo de validade, espera-se. “É o que tem para hoje. O que nos resta é reduzir os danos com base no que aprendemos com a quarentena até aqui”, afirma. “Tire o que é prejudicial, como happy hours diárias, e invista no que traz bem-estar. Com o isolamento, muita gente está sendo tragada pela ansiedade e pela depressão. A saúde mental, portanto, deve ser prioritária.”

Uma pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) serve de termômetro para o tamanho do problema. Aproximadamente 90% dos médicos associados notaram o agravamento do estado de pacientes em razão da pandemia e quase 68% viram a clientela aumentar com o isolamento. Os transtornos mais diagnosticados: depressão, ansiedade e síndrome do pânico. Na visão de especialistas da área, a escalada da covid-19 desencadeou duas outras ondas. A segunda envolve as doenças que não foram tratadas durante a pandemia, em geral porque não se buscou atendimento médico. E a terceira agrupa as moléstias crônicas, agravadas por ter sido deixadas de lado.

O governo da Bélgica encampou a ideia das bolhas sociais em maio. Autorizou cada família a receber até quatro pessoas, cujas casas pode frequentar — desde que mais ninguém faça parte do círculo. Recomenda também o uso de áreas externas para os encontros e deixar beijos e abraços para quando vier a vacina. “A separação física daqueles que amamos se tornou, em alguns casos, insuportável”, justificou Sophie Wilmès, primeira-ministra do país.

Inicialmente apelidada de “quebra-cabeça de quatro pessoas”, a recomendação foi afrouxada e já ampliou o círculo para 15 pessoas. O primeiro país que implementou uma ideia similar foi a Nova Zelândia, mas é bom ressaltar que, com seus 4,8 milhões de habitantes, ali o isolamento já faz parte da paisagem. A do Reino Unido é chamada de bolha de apoio e prevê regras parecidas.

Quem você chamaria para sua bolha? Uma escolha óbvia entre casais com filhos é eleger amigos na mesma situação. Caso os participantes sejam substituídos, é prudente aguardar duas semanas entre cada configuração, o tempo máximo de incubação do novo coronavírus, pelo que se sabe — é fundamental que nenhum dos envolvidos apresente sintomas da doença que assola o mundo.

“É importante que todos tenham gostos parecidos”, diz a dermatologista Vera Rebelo. Moradora de um condomínio horizontal em Alphaville, na Grande São Paulo, ela formou sua bolha com as duas filhas, com quem divide a casa, e com dois casais de amigos de longa data que moram na vizinhança. “Não sabemos quando tudo isso vai acabar, por isso nos reunimos toda semana para festejar, mas sem pôr ninguém em risco.”

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