André Lahóz (à esq.), de Exame; Carlos Fávaro, vice-governador de Mato Grosso; Justiniano Netto, do Governo do Pará; Adalberto Veríssimo, do Imazon; e Gustavo Junqueira, da Sociedade Rural Brasileira: consenso de que o Brasil pode ser protagonista na agenda do clima (Germano Luders/Exame)
Renata Vieira
Publicado em 2 de dezembro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 2 de dezembro de 2016 às 05h55.
São Paulo — Segundo a organização meteorológica Mundial, nos primeiros nove meses deste ano, o aquecimento da Terra chegou a 1,2 grau Celsius acima da média pré-industrial. Com isso, há hoje 95% de risco de que 2016 bata o recorde absoluto de ano mais quente desde que a entidade, criada pelas Nações Unidas, passou a registrar a temperatura do planeta em 1961. O alerta foi dado durante a 22a Conferência Internacional do Clima, realizada no Marrocos no mês passado.
As negociações na cidade de Marrakesh tiveram como objetivo definir as regras de implementação do tão celebrado Acordo de Paris, estabelecido um ano antes na COP-21, e que representou o mais abrangente compromisso global de redução das emissões de gases de efeito estufa já assinado pelos países. Ratificado em apenas 11 meses, o documento de Paris já tem a chancela de 114 países, responsáveis por cerca de 70% das emissões globais. A adesão representa mais do que o dobro necessário para que o acordo entrasse em vigor.
As propostas colocadas à mesa até agora, no entanto, não garantem um futuro seguro. Estudos mostram que, somadas as metas de todos os países, o aquecimento do planeta poderá chegar a 3 graus no final do século em comparação à temperatura média registrada na era pré-industrial — o que ultrapassa, e muito, o limite traçado durante a COP-21 e considerado seguro pelos cientistas, de menos de 2 graus.
Outra ameaça com consequências incertas é a eleição de Donald Trump, cético declarado do aquecimento global, à Presidência dos Estados Unidos. Enquanto isso, outras lideranças mundiais como China, França e também Brasil reforçaram seus compromissos. “O país deixou de defender o direito à poluição por causa de seu estágio de desenvolvimento para assumir metas como qualquer nação rica”, afirma Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima, rede de organizações que monitoram e discutem mudanças climáticas no Brasil.
As oportunidades do país nessa agenda foram discutidas no 8o EXAME Fórum de Sustentabilidade, realizado no dia 28 de novembro em São Paulo. O Brasil definiu a meta de diminuir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2020 — e em 43% até 2030, em comparação com os níveis registrados em 2005. Para tanto, definiu objetivos centrados, sobretudo, no agronegócio e nas florestas. Entre eles estão zerar o desmatamento ilegal nos próximos 15 anos e recuperar 12 milhões de hectares de floresta.
Além de restaurar 15 milhões de hectares de pastagens degradadas que, exauridas pela pecuária extensiva, somam mais de 40 milhões de hectares em todo o país. Quando anunciados em 2015, os objetivos brasileiros inspiraram credibilidade lá fora. Afinal, é notório que nos últimos dez anos o Brasil conseguiu reduzir mais de 70% do desmatamento da Amazônia. Por aqui, especialistas começam a ficar receosos quanto ao rigor com que essas metas serão perseguidas.
Isso porque dados recentes revelam que, entre 2015 e 2016, o desmatamento na região cresceu 29% e quase chegou a 8 000 quilômetros quadrados — uma área seis vezes maior do que a da cidade do Rio de Janeiro. Para Adalberto Veríssimo, cofundador e pesquisador sênior do instituto de pesquisa Imazon, os avanços conquistados nos últimos anos são louváveis, mas geraram certa acomodação no governo. “O esforço de fiscalização foi e continua sendo importante”, afirma. “Mas sem políticas públicas voltadas para o desenvolvimento de uma economia sustentável na Amazônia não haverá avanços no longo prazo.”
Veríssimo refere-se às oportunidades na região para a intensificação da pecuária — que hoje ocupa 80% da área desmatada da Amazônia — e à destinação de áreas de floresta sob a alçada do governo federal a atividades de manejo sustentável de madeira.
As dificuldades de migrar de uma economia baseada na destruição das florestas para outra baseada na conservação vêm sendo enfrentadas, sobretudo, por dois estados brasileiros: Mato Grosso e Pará. Juntos, eles estão entre os maiores responsáveis pelo desmatamento da Amazônia nos últimos anos. Ainda assim, nesses estados também podem ser encontradas algumas das melhores iniciativas de gestão sustentável do agronegócio.
O Programa Municípios Verdes, presente em 107 municípios paraenses, é um deles. Criado em 2011 após um amplo pacto de combate ao desmatamento em Paragominas — até 2008 um dos campeões da destruição da floresta no país —, o programa oferece assistência técnica e ambiental a produtores.
Ele também repassa às cidades parte do ICMS arrecadado pelo estado, de acordo com o desempenho ambiental de cada uma delas, e, em última instância, pune os produtores que desmatam ilegalmente. “São ações baseadas no sermão, na cenoura e no porrete”, diz Justiniano Netto, secretário extraordinário de Estado para a coordenação do Programa Municípios Verdes. “Políticas ambientais já foram vistas como hostis ao desenvolvimento, mas hoje os produtores já perceberam que a degradação pelo desmatamento é o que asfixia a economia.”
Em Mato Grosso, maior produtor de soja e dono do maior rebanho bovino do país, um caminho nessa direção começa a ser traçado. No ano passado, o estado anunciou um programa ousado de produção sustentável e conservação florestal. Batizada de Produzir, Conservar e Incluir, a iniciativa pretende converter 6 milhões de hectares de pastagens de baixa produtividade — aquelas que abrigam até 1 cabeça de gado por hectare — em cultivos de alta produtividade e florestas plantadas.
O estado também quer zerar o desmatamento ilegal até 2020 — dez anos antes do prazo prometido pelo governo federal. O tamanho da ambição é proporcional ao desafio. “Já freamos 90% do desmatamento desde 2004, mas ainda há problemas críticos de grilagem de terra no estado”, diz Carlos Fávaro, vice-governador de Mato Grosso.
Os especialistas ouvidos durante o EXAME Fórum foram unânimes ao declarar que há outras tarefas igualmente complexas a ser executadas para que o agronegócio alcance um novo patamar de eficiência — e de proteção ambiental. Uma delas: estabelecer uma política pública efetiva de planejamento territorial agropecuário. O que significa, na prática, converter em lavouras as áreas de pastagens degradadas que tenham aptidão agrícola — em vez de avançar sobre áreas estratégicas da ótica da segurança hídrica e climática.
Uma análise do cerrado, bioma onde a agropecuária brasileira está concentrada, ilustra esse raciocínio. “Hoje, há 18 milhões de hectares de pastagens aptas a ser convertidas em lavouras no cerrado sem que uma árvore precise ser derrubada”, afirma Arnaldo Carneiro, diretor de gestão territorial inteligente do Agroicone. “O dilema entre produção e conservação é uma falácia”, afirma.
Um primeiro passo nesse sentido já foi dado. Nos últimos dois anos, uma força-tarefa entre o Ministério do Meio Ambiente e os órgãos ambientais dos estados resultou em quase 400 milhões de hectares — cerca de 4 milhões de imóveis rurais — mapeados em todo o país pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR). Voluntariamente, produtores indicaram em imagens de satélite as áreas produtivas e as de vegetação — conservadas ou degradadas — de suas propriedades numa plataforma digital.
Como as informações são declaradas, elas ainda passarão por uma checagem, que vai comparar as imagens atuais das propriedades com as de 2008, ano-limite para os produtores que desmataram serem anistiados. Esses parâmetros foram definidos no Código Florestal, atualizado em 2012. Pela lei, agricultores e pecuaristas são obrigados a manter não apenas trechos de mata à beira de rios e córregos mas também cotas de vegetação que variam de 20% a 80%.
Metade dos produtores que se cadastraram na plataforma manifestou o interesse de regularizar seus passivos. Por ora, estima-se que o déficit de áreas de vegetação esteja em torno de 24 milhões de hectares. O que o CAR permitiu aferir com mais precisão é que quase 100 milhões de hectares de vegetação nativa — extensão semelhante à de todas as unidades de conservação administradas pelo governo federal — estão hoje em mãos privadas.
“Só um amplo pacto com o setor vai garantir o manejo sustentável e a conservação dessas áreas”, diz Raimundo Deusdará, diretor do Serviço Florestal Brasileiro, ligado ao Ministério do Meio Ambiente. Para dar continuidade a esse diagnóstico do uso da terra no Brasil, o governo acabou de lançar outra plataforma, que vai disponibilizar todos os dados do CAR para consulta pública. “Com essas informações, empresas, investidores e sociedade civil vão poder saber quem está cumprindo a lei”, afirma.
Que há um longo caminho a ser perseguido até que a agropecuária brasileira possa ser chamada de 100% sustentável, não há dúvida. Mas hoje não é mais utopia imaginar esse cenário. Há pelo menos seis anos as experiências de integração entre lavoura, pecuária e floresta têm crescido no país. Trata-se de sistemas em que o tempo útil da terra ao longo de um ano é utilizado por meio da rotação de culturas e animais. Numa área de plantio de soja, por exemplo, a terra está em atividade durante apenas 42% desse período.
Em consórcio com capim ou milho, a área é aproveitada em 80% do período. A adição de pasto e floresta torna a área 100% utilizável o ano inteiro. A conclusão é da Embrapa, que há pelo menos 30 anos vem estudando diversos modelos de integração. Hoje, 11 milhões de hectares desses sistemas foram contabilizados no país. É nessa tecnologia de produção genuinamente brasileira que está a maior oportunidade de redução das emissões da agropecuária — responsável por 22% do total do país —, aliada ao ganho de produtividade do setor.
A lotação de bois por hectare em sistemas integrados chega a ser quatro vezes maior em comparação com um sistema tradicional. “É a esse tipo de tecnologia que os avanços em sustentabilidade no campo estarão cada vez mais atrelados”, afirma Gustavo Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira. Desde 2011, há crédito para a promoção de sistemas como esses. Ele é contemplado pelo Programa Agricultura de Baixo Carbono (ABC).
Na última safra, o total de recursos provisionados alcançou 3 bilhões de reais — mas só 2 bilhões foram repassados. “Em 50 anos, o Brasil pode ter toda a sua agropecuária em integração, mas ainda faltam informação e mais recursos para que isso ocorra”, afirma Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa. Enquanto a maioria dos estados se prepara para avaliar as informações registradas por produtores no CAR, uma experiência pioneira se destaca no Espírito Santo.
Desde 2013, um programa coordenado pela Secretaria de Meio Ambiente, o Reflorestar, dá assistência técnica a produtores e os remunera pela conservação e restauração de florestas em suas propriedades. O objetivo é garantir a normalidade do ciclo hidrológico na região, que nos últimos dois anos passou por uma de suas maiores secas. “Temos um montante de 55 milhões de reais para chegar a 160 000 hectares de floresta em pé”, afirma Marcos Sossai, coordenador do programa.
Até agora a iniciativa direcionou cerca de 28 milhões de reais para 1 800 produtores. Um dos próximos passos é mensurar o impacto econômico que essa injeção de capital vem provocando nos municípios. Especialistas nessa seara concordam que, para acelerar processos de restauração de matas nativas, é fundamental torná-los economicamente viáveis, tais como já são os mercados de eucalipto e pínus.
É a aposta da Symbiosis, empresa que nasceu em 2008 e se dedica a plantar árvores de madeira nobre, como pau-brasil e jacarandá, para a produção de móveis. Ela tem hoje 700 hectares plantados no sul da Bahia e espera chegar a 30 000 hectares em 2025. “O reflorestamento comercial não apenas faz sentido financeiramente como também promove a restauração de áreas de preservação permanente”, afirma Renato de Jesus, diretor técnico e operacional da Symbiosis.
Para que o país bata suas metas de redução de emissões é crucial que experiências como a do Reflorestar e da Symbiosis se multipliquem país afora. Fácil não será, mas a boa notícia é que produção e proteção começam a andar de mãos dadas.