Revista Exame

A estética dos protestos

O streetwear veio da periferia e foi apropriado pelo luxo. Com as manifestações antirracistas, as grifes terão de rever sua história

Loja da Dolce & Gabbana em Nova York: depredação nos protestos antirracistas (Scott Heins)

Loja da Dolce & Gabbana em Nova York: depredação nos protestos antirracistas (Scott Heins)

BC

Beatriz Correia

Publicado em 18 de junho de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h37.

Nos protestos antirracistas pelo mundo desde o final de maio, lojas de grifes de luxo foram saqueadas e tiveram suas vitrines pichadas. As imagens não são apenas simbólicas para ilustrar o racismo sistêmico no Ocidente contra os negros, que saíram às ruas para cobrar mudanças após a morte do segurança George Floyd pelas mãos de um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos. As cenas ilustram um paradoxo: as mesmas roupas usadas pelos jovens das periferias e vistas por parte do poder público como ameaça tornaram-se objetos de desejo nas passarelas chiques das capitais da moda.

A estética urbana composta de abrigos esportivos, tênis vistosos, bandanas e acessórios de metal é quase um uniforme dos protestos recentes, como se assumisse a função de roupa de combate da juventude inconformada com a repressão. Ao longo dos últimos anos esse combo passeia pelas semanas de moda e infla os caixas das marcas — mas com a mesma força é uma espécie de alerta para que policiais abordem, revistem e, em situações mais corriqueiras do que se imaginava, matem quem as veste.

Talvez o caso mais emblemático dessa relação esquizofrênica da moda com as ruas tenha sido a morte do adolescente negro Trayvon Martin em 2012, assassinado a tiros por um segurança que suspeitava de seus movimentos próximo ao condomínio no qual trabalhava, em Sanford, na Flórida. Um dos motivos para essa suspeita e seu desfecho trágico teria sido o casaco que o rapaz de 17 anos usava. Naquele ano, os jornais americanos estamparam a chamada Million Hoodie March, a marcha em que jovens vestiam hoodies, como são chamados os moletons com capuz.

Na mesma época começaram a sair as primeiras reportagens sobre a explosão da considerada grife de streetwear mais cool do mundo, a Supreme. Cinco anos depois, 50% da marca, que vende esse mesmo tipo de moletom com capuz, só que feito em parceria com grifes que aumentam em dezenas de milhares de dólares seu valor no varejo, seria comprada por 500 milhões de dólares pela firma de private equity Carlyle Group.

Desde a virada do século, as indústrias da moda e do entretenimento transitam nesse estado de dicotomia constante. A chegada do hip-hop aos ouvidos das elites brancas e a ascensão de ícones da cultura pop fora do padrão loiro das divas adolescentes foram acompanhadas de um estouro da indumentária streetwear. Seus elementos estéticos, oriundos das regiões periféricas dos centros urbanos, eram vinculados no cinema, na música e nas séries de TV ao crime, mas logo ganharam nova roupagem no guarda-roupa de grifes como Louis Vuitton, Calvin Klein e Gucci.

“Ocorreu um processo de anulação das origens da cultura street­wear.­ Ela começou nos anos 1970, e não nos 1990, como se propagou. Não tem nada a ver com o skate californiano, mas, sim, com os jovens pretos das periferias que não tinham como pagar por roupas caras e usavam peças esportivas de segunda mão”, afirma a estrategista de imagem e conteúdo Igi Ayedun, fundadora do MJournal, plataforma de análises já usada por empresas como C&A e Coca-Cola.

Enquanto subiam os preços das ações dos grupos Kering, LVMH e PVH, para citar os donos das marcas mais atuantes nessa estética, as linhas sociais que separam quem pode ou não pagar por seus produtos ficavam mais evidentes. “A origem do problema é que a relação que a moda construiu com os jovens periféricos não foi autêntica, e sim puramente comercial”, afirma Kevin David, diretor criativo da agência e produtora Mooc. “Quando um branco usa esses elementos de moda, é legal, mas, quando um negro usa, é marginal. A estética dos protestos é a estética desse vilão criado pela sociedade.”

De acordo com David, para que as mudanças nesse entendimento aconteçam é preciso mexer nas próprias estruturas internas das marcas de moda, não apenas naquilo que se vende na foto. Isso tem acontecido, ainda que lentamente. Dois anos atrás, a Louis Vuitton contratou o estilista Virgil Abloh para chefiar a divisão masculina da marca. Ele se tornaria o primeiro negro de origem pobre à frente de uma marca de luxo. Sob sua tesoura, a grife francesa promoveu diversos projetos de inclusão de jovens das periferias americanas.

Aqui no Brasil ainda é raro ver nos ateliês jovens estilistas negros. O mineiro Otavio Augusto furou esse bloqueio quando participou da equipe que assinou uma coleção da Ellus no ano passado inspirada nas origens da marca paulista com o streetwear. A estética do desfile na São Paulo Fashion Week foi toda construída em cima da indumentária industrial, com roupas utilitárias semelhantes às dos protestos de hoje. Na passarela, os modelos usaram máscaras de proteção. “Não há outro caminho para desfazer o racismo instalado na moda a não ser ocupar os espaços criativos”, diz Augusto, que planeja lançar neste ano a própria marca.

“As marcas que quiserem comunicar para os jovens vão ter de rever sua estratégia para vender a estética da rua, porque eles vão estar mais atentos ao discurso e à prática das empresas”, afirma o diretor criativo do Studio Frágil, Vinícius Tex. Vinícius é um dos nomes por trás de uma colaboração emblemática entre sua plataforma de design e a marca carioca Ahlma. A peça em questão é uma camiseta, já esgotada no mercado, em que se viam nas costas uma arma e um aviso, infelizmente, cada vez mais urgente: “Não atire”.

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