Revista Exame

Por que bolsas de estudo e cotas afirmativas são a chave para a diversidade?

Bolsas e cotas ajudam a aumentar o acesso de grupos minorizados ao mercado de trabalho e são fundamentais para que esses perfis alcancem cargos de liderança

Wellington Vitorino, bolsista do MIT e fundador do Instituto Four: para ele, cotas são uma medida paliativa inteligente de reparação social e racial (Iara Morselli/Divulgação)

Wellington Vitorino, bolsista do MIT e fundador do Instituto Four: para ele, cotas são uma medida paliativa inteligente de reparação social e racial (Iara Morselli/Divulgação)

DR

Da Redação

Publicado em 30 de junho de 2022 às 06h00.

Última atualização em 30 de junho de 2022 às 17h30.

Que oportunidades na educação mudam vidas ninguém questiona. Mas o que hoje é pouco debatido no Brasil é que elas também ajudam a fomentar diversidade, especialmente em cargos de liderança nas empresas. Assim, bolsas e cotas têm se tornado fundamentais para mudar a realidade de grupos minorizados.

No último estudo Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, realizado pelo Instituto Ethos em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dá para visualizar o afunilamento hierárquico desses grupos nas maiores corporações do país. As mulheres ocupam 55,9% das vagas de aprendizes, o mais baixo nível na hierarquia corporativa, mas representam apenas 11% dos conselhos de administração, o mais alto. As pessoas negras têm menos representatividade ainda. Nos conselhos de administração, são 4,9% do total, mas 57,5% dos aprendizes. Já pessoas com deficiência são raras em qualquer posição: no conselho de administração, sem nenhuma representatividade sequer, ou como aprendizes, 0,83% do total.

No estudo não há dados comparativos sobre orientação sexual ou identidade de gênero, mas constata-se que somente 8,5% das empresas participantes desenvolvem alguma política voltada para o público ­LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros/Travestis, Intersexuais e demais) no processo de contratação.

Gênios desperdiçados

Anderson Caio Silva é um ponto fora dessa curva. Negro, filho de uma faxineira e de um “faz-tudo”, ele sempre estudou em escola pública. Sua vida mudou quando descobriu um cursinho preparatório para o Enem gratuito voltado para alunos de baixa renda. “Foi uma expansão de consciência. Eu nem sabia que a Universidade de São Paulo [USP] era gratuita”, conta Silva, que passou em ciências da computação na faculdade em São Carlos, no interior paulista. “A graduação era a oportunidade de mudar a vida da minha família.”

Foi um começo desafiador: além da defasagem de conteúdo, ele não tinha computador. Mas o rapaz que entrou na quinta chamada saiu com a terceira melhor nota da turma e conseguiu um estágio na sede do Google, nos Estados Unidos. Mesmo bom tecnicamente, lhe faltavam habilidades comportamentais. Silva, então, procurou a Fundação Estudar, que oferece bolsas de estudo para jovens visando formar líderes comprometidos com o país, e o Instituto Four, organização que desenvolve jovens líderes que buscam maneiras de solucionar problemas do Brasil. “Mais do que dinheiro, eu buscava desenvolvimento, pois queria empreender no terceiro setor”, justifica.

Aos 23 anos, assumiu como diretor em uma escola preparatória de concursos para advogados. Lá, chegou a CEO interino e sócio. Depois, se tornou Chief Technology Officer (CTO) e sócio também da startup de cosméticos Sallve. E não parou aí. O executivo acaba de criar um negócio de sistemas operacionais para e-commerce com a ajuda de investidores-anjo e de um fundo de venture capital. “O Brasil mata gênios todo dia. Perdi parentes e amigos assassinados ou presos, e muitos deles poderiam ter descoberto seu potencial e recebido oportunidade para mudar de vida”, analisa Silva. “Cotas e bolsas são importantes e um dever da sociedade. Precisamos ter pessoas diferentes tomando decisões nas empresas e na política.”

Investindo (literalmente) em educação

E é justamente para dar oportunidades a novos talentos que o Instituto de Tecnologia e Liderança (Inteli) trabalha. “A faculdade que transforma os líderes do futuro” nasceu em 2020 com um dos maiores programas de bolsas de estudo do ensino superior privado do país. Da primeira turma, que teve início neste ano, 50% dos alunos são bolsistas financiados por doações de empresas, fundações e empresários. O processo seletivo para os cursos de engenharia da computação, engenharia de software, ciências da computação e sistemas de informação pode ser feito online, pois dessa forma inclui candidatos de todo o Brasil. “Temos de encontrar formas de buscar ativamente jovens de alto potencial que não têm acesso a oportunidades de desenvolvimento e criar programas de inclusão”, aponta Maíra Habimorad, CEO do Inteli. “Ampliar suas oportunidades não apenas vai refletir na transformação da realidade deles mas impactar diretamente a realidade do país.”

As bolsas do Inteli seguem o formato need blind (que não considera a necessidade de bolsa para admissão). Após a aprovação, o aluno que comprova necessidade financeira pode ganhar uma bolsa de 25% a 100% da mensalidade, além de moradia, alimentação, notebook e curso de inglês, conforme avaliação de assistentes sociais. Esse é o mesmo processo adotado por algumas universidades americanas, inclusive para alunos estrangeiros, como Massachusetts Institute of Technology (MIT), Harvard, Princeton e Yale. Em Harvard, por exemplo, o pacote de ajuda financeira é uma combinação de fundos de bolsas (subsídios), emprego estudantil, possíveis prêmios externos e empréstimo (se a família quiser). Do total de aprovados, 55% recebem bolsas com base em suas necessidades.

No Inteli, o doador acompanha de perto o desempenho do aluno até o final do curso. “Essa proximidade impulsiona o engajamento no curso, além de desenvolver habilidades e competências importantes para seu futuro, como networking e comunicação”, justifica Habimorad. Os estudantes ainda podem fazer estágio de férias em parceria com algumas empresas do mercado, como BTG, Falconi e Cia de Talentos. O programa também contempla grupos específicos, com bolsas integrais direcionadas exclusivamente para pessoas negras e mulheres, viabilizadas por empresas ou doadores pessoa física. Na primeira turma, 27% dos alunos são mulheres, um percentual bem acima da média nacional do curso de ciências da computação, no qual apenas 15% são do sexo feminino, segundo estudo da Sociedade Brasileira de Computação.

Formandos da Harvard Law School: do total de aprovados na universidade americana, 55% recebem bolsas com base em suas necessidades (Jon Chase/Harvard/Divulgação)

Lugar de mulher é na tecnologia

Foi para mudar essa realidade que surgiu, em 2015, a PrograMaria, negócio de impacto social que visa aumentar a diversidade na área de tecnologia. No início presencial, formou 100 alunas. Em 2020, já online, o curso de primeiros passos na programação ganhou um alcance muito maior. Já são mais de 11.500 pessoas formadas, 42,1% delas bolsistas. Desse total, 37,8% são pessoas negras; 25,8%, mães e responsáveis; 53%, desempregadas; e 6%, pessoas trans e travestis. “Se o presente está sendo escrito em linhas de código, precisamos que mulheres, pessoas negras e pessoas periféricas também participem dessa construção e tenham suas perspectivas e necessidades contempladas pelas soluções tecnológicas que estão sendo criadas”, afirma Iana Chan, CEO da PrograMaria.

A iniciativa deu tão certo que algumas das alunas já estão em cargos de liderança em empresas de tecnologia. É o caso da paulista Laura Lemos, que, apesar de formada em design gráfico, não conseguia um emprego registrado. Foi por saber programar que ela conseguiu uma oportunidade como gerente de Product & Service Design do Zé Delivery. Outro exemplo é o da transgênero Úrsula Ariel, de Macapá. Ela fazia faxinas antes de participar de um projeto exclusivo para pessoas transgênero e travestis em parceria com a Intel, em 2021. Logo depois, conseguiu uma vaga como front-end developer na Ambev Tech, onde agora atua como product design UX/UI. “Bolsas são fundamentais para a diversidade na tecnologia. Como as oportunidades no Brasil não são distribuídas de maneira igualitária, é uma forma de ampliar o acesso”, diz Chan.

No Brasil, aproximadamente um terço dos profissionais de ciência e tecnologia são mulheres, segundo estudo do Centro de Implementação de Políticas Públicas para a Equidade e o Crescimento (Cippec), realizado com o apoio da Salesforce. E esses salários são justamente aqueles acima da média, e que oferecem empregos de maior qualidade.

Inglês também é barreira

Outra barreira para alcançar a liderança e bons salários é o domínio da língua inglesa. A Hult EF Corporate Education, multinacional de ensino corporativo de inglês, está atenta à questão. Desde 2019, já distribuiu mais de 4 milhões de reais em bolsas do idioma para jovens negros no país. A primeira turma tinha 50 bolsistas. Ao fim do curso, 32% conseguiram se colocar no mercado de trabalho e 18% foram promovidos. “Apostamos em programas que tenham conexão com a inserção no mercado ou com o processo de aceleração de carreira”, diz Eduardo Santos, diretor-geral da Hult.

A empresa também tem clientes corporativos, como Ambev, Bradesco e Uber, que oferecem programas próprios de desenvolvimento para pessoas negras. Alguns clientes, como a KPMG, têm projetos para treinar profissionais negros em busca de emprego. Entre eles estava o advogado recém-formado Reille Cristovão da Cunha, que trabalhava como entregador de delivery e, um ano depois, foi contratado como assistente jurídico na XP.

A Hult ainda participa de projetos sociais voltados para outros públicos, como o criado com o Goldman Sachs e a Kroton, que seleciona profissionais transexuais para alocar no mercado e oferecer graduação, idioma e mentoria. Em uma parceria com o Bradesco e com a TransEmpregos — projeto de empregabilidade de pessoas trans no Brasil —, o banco direcionou uma quantidade de cursos que foram comprados para a ONG.

Bolsas aceleram a carreira

Recentemente, a Fundação Estudar contratou o Plano OCDE, empresa especializada em mensuração de impacto, e a Fundação Getulio Vargas (FGV) para medir quanto as bolsas de seu Programa de Líderes repercute na trajetória dos selecionados. O resultado apontou que a chance de um bolsista alcançar cargos de alta gestão é de 57,1%. Já semifinalistas do programa com características similares têm 36,8% de chance. E a possibilidade de alcançar uma renda acima de 228.000 reais por ano é de 51,7% dos bolsistas, ante 38,1% dos semifinalistas. Além disso, bolsistas têm um grau de alcance 37% maior de posições de mais amplo impacto. “A comunidade criada gera oportunidade de encontrar investimentos, empregos ou sócios para empreender juntos. São relações duradouras e de qualidade com mentores e bolsistas”, afirma Anamaíra Spaggiari, diretora executiva da Fundação Estudar.

Daí a importância de dar acesso a grupos menos favorecidos, para que tenham as mesmas chances em suas carreiras. Não à toa, a Fundação Estudar tem buscado ampliar o perfil de seus bolsistas. Nos últimos quatro anos, o número de pessoas negras aumentou de 8% para 32% do total, e o de mulheres passou de 36% para 44%. O número de pessoas LGBTI+ só começou a ser mensurado em 2019, quando foi aprovada a primeira bolsista transgênero. Hoje, esse grupo representa 26% do total.

Maíra Habimorad, CEO do Inteli: o doador acompanha de perto o desempenho do aluno até o final do curso (Leandro Fonseca/Exame)

Círculo virtuoso

Oferecer bolsas leva mais do que diversidade para as empresas ou para o serviço público. Wellington Trindade Vitorino, por exemplo, está devolvendo à sociedade as oportunidades de educação que recebeu ao longo da vida. Aluno bolsista de uma escola particular no ensino médio, na faculdade e, agora, no Massachusetts Institute of Tech­nology (MIT) pela Fundação Estudar, ele fundou o Instituto Four, citado logo no início desta reportagem. “O terceiro setor está trabalhando de maneira integrada para poder ajudar a impulsionar essa rede de talentos”, afirma Vitorino. “O Proa e o Ismart [entidades que ajudam jovens talentos de baixa renda] trazem talentos para o Instituto Four, e a gente faz parceria para aulas de inglês, se necessário, e depois ‘pluga’ os alunos com a Fundação Estudar ou a Fundação Lemann.”

Ele também destaca a importância de políticas públicas para ajudar a aumentar a diversidade nas faculdades brasileiras, como o Prouni, “uma junção perfeita para pessoas com condições financeiras menos favorecidas”, e as cotas raciais e sociais de faculdades públicas, “uma medida paliativa inteligente de reparação social e racial”. O grande desafio, acredita, é inserir essas pessoas no mercado de trabalho.

No Instituto Four, além de discutir o cenário no Brasil, o aluno — que não precisa ter faculdade — se desenvolve como indivíduo e como liderança, analisa cases do meio público e de empreendedorismo e escolhe um problema para buscar a solução. Ali surgiram iniciativas como o primeiro absorvente biodegradável do Brasil, a ajuda para pequenos produtores economizarem água em suas plantações, e até um projeto de energia que já recebeu milhares de reais de investimento. Ao todo, foram beneficiados mais de 10.000 jovens de todas as regiões do país, atendidos no programa ProLíder, em sua versão pocket, além de parcerias com empresas. Entre os ex-bolsistas há prefeito, vereadores e administradores públicos. Uma prova de que a educação, especialmente com a oferta de bolsas inclusivas para públicos diversos, gera um círculo virtuoso e com o grande poder de multiplicar a diversidade.

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