Escola de sargentos: ética do coletivo acima do individual | Divulgação / (Escola de Sargentos/Divulgação)
David Cohen
Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 05h00.
Última atualização em 17 de janeiro de 2019 às 05h00.
Não há envolvimento institucional das forças armadas, portanto não se pode caracterizar a nova administração do país como um governo militar. Mas, com um terço do ministério, um presidente e um vice-presidente de origem militar, também não pode haver dúvida de que o bloco da farda vai definir partes importantes da agenda nacional. Ele é mais influente do que o dos evangélicos, mais abrangente do que o bloco da bala, mais contundente do que o agrobloco, e de certa forma fiador do bloco dos liberais. E, o mais curioso de tudo, não se considera um bloco.
A rigor, não é mesmo. O mito de que os militares têm um pensamento tão uniforme quanto as manobras que fazem em campo é apenas um mito. Basta observar os exemplos dos dois primeiros presidentes da República. Os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto eram opostos em personalidade e pensamento político. Floriano foi vice-presidente de Deodoro concorrendo por uma chapa rival, da mesma forma que João Goulart foi vice de Jânio Quadros tendo uma plataforma antagônica à dele. Também no regime militar imposto em 1964 os dois primeiros presidentes comandavam campos opostos: Castello Branco pretendia devolver o poder aos civis, Costa e Silva abriu o caminho para o endurecimento do regime. Na oficialidade como um todo, havia divisões profundas. “Basta dizer que o setor proporcionalmente mais atingido por cassações a partir de 1964 foi o das Forças Armadas”, diz o historiador Boris Fausto. Nas três armas, mais de 400 oficiais foram passados à reserva, incluindo 24 dos 91 generais na época, segundo o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Envergonhada.
Quem acredita que os militares pensam em bloco esquece de uma óbvia realidade. “O Exército não vem de Marte, vem da sociedade brasileira”, diz o general Douglas Bassoli, um disseminador dos valores do Exército, lotado neste novo governo no Ministério da Defesa. Dito isso, também é verdade que ninguém passa incólume pela experiência do serviço militar, que incute percepções e valores muito particulares em seus integrantes. E a própria experiência de 21 anos no poder deixou sequelas nas Forças Armadas. Uma delas, benigna, a convicção amplamente majoritária de que não devem se arrogar a administrar o país. Pelo menos não como instituição. Mas, depois de passar anos retraídos, muitos militares acreditam que devem prestar serviços fora de suas bases. Como disse o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), em entrevista à Globonews: “O regime militar fez o Brasil esquecer o que se investe em nossa formação. Eu, por exemplo, passei 20 dos meus 45 anos de serviço estudando o país. Não usar isso é um desperdício”. Ainda mais considerando que as universidades militares são polos de excelência.
Em linhas gerais, portanto, os militares que ocupam postos no governo Bolsonaro estão lá como indivíduos, não como representantes das Forças Armadas. O general Heleno vai mais longe: “Não acredito nessa história de sociedade civil e sociedade militar; existe só uma sociedade, que é a brasileira”. Aí já é um exagero. As Forças Armadas brasileiras alimentam-se de recrutas provenientes principalmente da classe média baixa. Mais do que isso, o índice de endogenia é alto: um elevado número de oficiais tem parentes militares. A partir dessa base mais homogênea do que o universo da sociedade em geral, acrescenta-se a doutrinação de uma ética que o cientista político americano Samuel Huntington, no livro O Soldado e o Estado, de 1957, chamou de “realismo conservador”.
Segundo Huntington, o militar vai sempre colocar o bem comum acima dos interesses do indivíduo. Ele acredita que o ser humano é essencialmente mau e por isso há sempre ameaças à nação, mesmo se não forem imediatamente visíveis. O profissional militar deve estar sempre pronto para o inevitável conflito — embora nunca se sinta devidamente preparado. E, apesar de reconhecer a inevitabilidade da guerra, prefere evitá-la, porque conhece seus horrores. “A ética militar é então pessimista, coletivista, orientada ao poder, nacionalista, militarista, pacifista e instrumentalista em sua visão da própria profissão.”
Isso é impresso nos militares pela convivência e por uma formação continuada. “Quando um médico faz seu juramento de Hipócrates, o compromisso fica mais a cargo de cada um”, diz o general Bassoli. “O grupo não está cobrando dele o tempo todo. Nas Forças Armadas, sim. No dia a dia, no contato permanente com a tropa, nós reforçamos a coesão, o espírito de corpo.” Os dois pilares da vida militar são hierarquia e disciplina. Sobre eles se erguem amor à pátria, honra, honestidade, lealdade, espírito de sacrifício, preservação da natureza… Com esse conjunto de valores, é quase natural que os militares olhem a sociedade civil como uma estrutura aquém do desejado, uma “bagunça”. Como escreveu o cientista político americano Alfred Stepan em Os Militares na Política, de 1975, apesar de pertencerem à classe média, os oficiais brasileiros atribuem a si mesmos a característica de “estrato desvinculado, relativamente sem classe, que resume em si todos os interesses sociais”. Vários autores enfatizam que os militares veem a si próprios como uma organização com valores melhores e comportamento social mais adequado do que a sociedade civil.
“Nós, brasileiros, fomos deixando de lado alguns valores importantes”, diz o general Bassoli. “Alguma coisa aconteceu que fomos perdendo as características de assumir e cumprir compromissos, de submeter a vontade individual à vontade coletiva.” Por isso, há uma tentação de atuar, se não como organização, como indivíduo. Para além de seu preparo técnico, eles trazem para a vida civil uma certa forma de pensar e agir. Ela é baseada na meritocracia, mas num tipo especial de meritocracia — imóvel. Na vida civil, o aluno mais brilhante de uma classe terá uma boa lembrança desse fato em seu boletim, e pouco mais. Para os militares, a classificação na turma é escrita em pedra, vale para a vida toda. Dita as promoções, equivale a uma “antiguidade” em relação aos companheiros. E antiguidade significa ascendência.
Uma das críticas em relação à atuação dos militares é que a disciplina seria contrária à arte de negociar, tão crucial na política. Não é bem assim. No campo de batalha, o soldado tem de cumprir ordens sem questionamento, porque o tempo gasto em dúvidas pode ser fatal. Mas, na formação dos oficiais, a discussão é estimulada. “Nos níveis mais altos, trazemos mais gente para analisar a situação, mais dados”, diz Bassoli. “Nossos métodos de análise são inclusive usados em empresas, porque ritualizam as negociações.” O caminho inverso também é trilhado. “Nós trazemos muitas novidades do meio empresarial para o militar. O Exército se considera uma organização que aprende.”
Há, porém, algumas limitações. Primeiro, de ordem moral. O militar que se rende a negociatas é considerado indigno da farda que veste. Mas também de postura. “A visão militar se funda em dicotomias”, diz o antropólogo Piero Leirner, professor assistente na Universidade Federal de São Carlos, estudioso de hierarquias militares. “O universo se funda numa dicotomia entre valores militares e valores paisanos, organização militar e desorganização paisana.” O mundo, segundo ele, é tratado como uma “hierarquia de dicotomias”. A visão dualista, dividida entre certo e errado, bom e ruim, é insuficiente para dar conta da complexidade. Leirner também enxerga a batalha pela mente dos cidadãos, o que valeu a Bolsonaro a Presidência, como uma extensão das operações psicológicas que as Forças Armadas passaram a considerar desde os anos 60. “É o que hoje está se chamando de guerra híbrida, o uso de movimentos e pautas, especialmente identitárias”, para conquistar posições.
Essas posições tendem a ser conservadoras. “Hoje, as ideias que a gente prega, para manter a tradição, estão mais no campo da direita. Por causa do interesse do conjunto, da liberdade… Isso não quer dizer que ideias de esquerda sejam tolhidas. De jeito nenhum”, diz o general Bassoli. Não são tolhidas, mas, como diz Boris Fausto, “as diferenças políticas são muito menores do que no passado”.
A própria conversão do presidente Jair Bolsonaro ao credo liberal, há quem a atribua a uma mudança de postura dos militares. A Academia Militar das Agulhas Negras já teve um viés nacional-desenvolvimentista. Mas a doutrina vem mudando. Houve uma revisão da orientação estatista, que aos poucos passou a ser identificada como a agenda do Partido dos Trabalhadores. Tanto que, em abril do ano passado, o general Maynard Marques de Santa Rosa, exonerado no governo Lula por ter escrito uma carta contra a Comissão da Verdade (que investigou abusos durante a ditadura) e recentemente nomeado para a Secretaria de Assuntos Estratégicos, proferiu uma palestra enumerando as prioridades para o Brasil — muito semelhantes à pauta que Bolsonaro está adotando: redução do Estado, tornar mais flexíveis as leis trabalhistas, ênfase no ensino técnico e “desideologizado”, mais poder de repressão à violência, desenvolvimento da Amazônia e, mais para a frente, uma revisão constitucional. Para esta última prioridade, Santa Rosa admite não haver clima agora, portanto prega uma “campanha psicológica de longo curso”.
Se é verdade que as Forças Armadas deram uma guinada rumo ao liberalismo (na economia), torna-se menos provável que o presidente recolha o apoio que tem dado ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Porém, isso não significa que a conversão não tenha ruídos. A começar pelo lema da pátria, tão caro aos militares. “Ordem e progresso” é um credo positivista, ainda caro às Forças Armadas, mas hoje se supõe que o progresso só é atingido com certo grau de desordem — a bagunça produzida pelo dinamismo criativo, a quebra de regras promovida pela inovação. O liberalismo clássico também pressupõe que a sociedade esteja mais bem servida quando cada um persegue seus interesses individuais, e não quando todos agem pensando no bem coletivo. Não são valores completamente opostos. “O interesse individual honesto, visando ao crescimento, é ótimo”, diz o general Bassoli. “Mas são visões diferentes, sem dúvida.”
Do bloco militar pode-se esperar, portanto, que cada medida liberalizante tenha de passar pelo crivo dos interesses nacionais — da privatização da Embraer à demarcação de terras indígenas. Esses “interesses nacionais” não podem ser determinados a não ser por alguma ideologia — tão enraizada que se considera “desideologizada”. As Forças Armadas, enquanto instituições, estão alheias a esse processo. A disposição dos militares — enquanto indivíduos — em participar da vida política é saudável, pelo nível técnico e pela inspiração. “Imagine o que nós poderíamos realizar se seguíssemos o exemplo de desprendimento e eficiência de nossas tropas”, disse o ex-presidente americano Barack Obama, em discurso sobre o estado da nação em 2012. Mas há algum risco. De acordo com a Teoria da Concordância, da cientista política Rebecca Schiff, professora na Universidade de Michigan, um dos principais requisitos para a manutenção das boas relações entre civis e militares é que o papel das Forças Armadas não se expanda para áreas de responsabilidade previamente ocupadas por civis. Nisso o Brasil está mudando.