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O fabuloso prejuízo do Uber

David Cohen Depois de semanas tomando bordoadas de todo lado, que levaram a sérios questionamentos sobre a capacidade de liderança de seu CEO, Travis Kalanick, e até sobre o futuro da empresa, o Uber apresentou na semana passada um poderoso argumento de defesa: informou que perde dinheiro como ninguém. Não tome essa frase como uma […]

TRAVIS KALANICK, COFUNDADOR DO UBER: ele se afastou do cargo de executivo-chefe  após casos de assédio na empresa  /  (Stephen Lovekin for OurTime.org/Getty Images)

TRAVIS KALANICK, COFUNDADOR DO UBER: ele se afastou do cargo de executivo-chefe após casos de assédio na empresa / (Stephen Lovekin for OurTime.org/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de abril de 2017 às 16h54.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h30.

David Cohen

Depois de semanas tomando bordoadas de todo lado, que levaram a sérios questionamentos sobre a capacidade de liderança de seu CEO, Travis Kalanick, e até sobre o futuro da empresa, o Uber apresentou na semana passada um poderoso argumento de defesa: informou que perde dinheiro como ninguém.

Não tome essa frase como uma ironia – pelo menos não como uma ironia completa. Na lógica da economia digital, perder dinheiro é um dos grandes sinais de sucesso. Significa que a startup está investindo na conquista de mercado, para se tornar hegemônica, poderosa, praticamente imbatível. (O segredo para sobreviver enquanto isso não acontece é convencer os investidores de que devem financiar esse esforço.)

Foi nesse espírito que o Uber divulgou alguns dos seus resultados financeiros para a revista Bloomberg. Não era obrigada a fazê-lo, porque é uma empresa fechada, mas quis dar uma demonstração de força. Frisou que sua receita, no mundo todo, alcançou 20 bilhões de dólares em 2016, o dobro da de 2015. Depois de pagar os motoristas que efetivamente prestam o serviço, sobraram 6,5 bilhões em suas contas.

Porém, descontados todos os custos de expansão, incluindo desenvolvimento de tecnologia e atração de motoristas, o resultado foi um prejuízo de 2,8 bilhões de dólares. Isso sem contar os custos de uma tentativa de conquistar o mercado chinês, do qual acabou desistindo (e vendendo sua operação no país para a rival Didi Chuxing, em troca de 18% da empresa).

No total, desde 2009, quando foi fundado, o Uber já torrou mais de 8 bilhões de dólares. A empresa não demonstra estar muito preocupada. Diz ter outros 7 bilhões em caixa, fora 2,3 bilhões em uma linha de crédito ainda não utilizada.

O otimismo vem do fato de que, segundo a companhia, suas receitas estão crescendo mais rápido que suas perdas. Bem mais: no último trimestre, a receita bruta subiu 74%, para 2,9 bilhões de dólares, enquanto o prejuízo cresceu 6,1%, para 991 milhões.

Embora as tendências justifiquem a animação, a empresa está queimando dinheiro demais, de acordo com especialistas. Prejuízos desse tamanho são raros. E, em geral, vêm associados a perdas pontuais – como o prejuízo de 3,2 bilhões de dólares que a Microsoft reportou em 2015, ligado ao reconhecimento de uma perda de 7,5 bilhões com a compra da Nokia, ou o prejuízo recorde de 5 bilhões de dólares da IBM, em 1992, devido à fantástica reestruturação da empresa, de fabricante de computadores para vendedora de serviços de tecnologia.

A única companhia com prejuízos constantes, intrínsecos à expansão dos negócios, comparáveis aos do Uber é a Amazon. Mesmo assim, o prejuízo máximo da gigante do comércio num trimestre foi de 437 milhões de dólares, em 2014 – menos da metade do que o Uber divulgou agora.

O problema de gastar tanto é que isso indica uma tentativa de crescer de forma acelerada demais. Se algo der errado no meio do caminho, o tombo pode ser grande. E muitos obstáculos têm surgido no caminho do Uber.

O êxodo de executivos

“Nós temos sorte de ter um negócio saudável e em fase de crescimento”, disse um porta-voz do Uber para a Bloomberg, na sexta-feira passada. “Isso nos dá espaço para fazer as mudanças que nós sabemos ser necessárias na gestão e na responsabilidade, na cultura da organização e na nossa relação com os motoristas.”

Não foi à toa que o Uber decidiu divulgar alguns de seus resultados. O motivo é convencer analistas e, principalmente, investidores de que a empresa vai conseguir dar a volta por cima dos problemas que está enfrentando desde o início do ano.

E ponha problemas nisso. Os que mais chamaram a atenção foram os culturais: uma acusação de assédio sexual, feita por uma ex-funcionária em seu blog, levou a outras acusações e a um inédito pedido de desculpas do próprio Kalanick.

Não apenas ele prometeu sanar os problemas e contratou uma investigação externa sobre abusos da administração, como reconheceu que ele próprio precisa “crescer” como pessoa e como gestor.

Logo em seguida, um vídeo mostrou uma altercação entre Kalanick e um motorista que reclamava da política de preços do Uber – e novamente Kalanick teve de pedir desculpas.

Suas promessas de mudança encontraram um mar de ceticismo. Afinal, a competição interna, a disposição de “agitar as coisas” e uma postura de confronto estão codificados na “filosofia de trabalho”, o conjunto de 14 princípios da empresa criados por Kalanick.

Aparentemente, porém, ele percebeu que a postura que levou o Uber a se destacar no início de sua vida não combina com as necessidades de uma empresa já estabelecida.

No mês passado, o casal Mitch e Freada Kapor, dois dos primeiros investidores do Uber, divulgaram uma carta aberta para o conselho de administração da empresa e para seus colegas investidores recriminando a companhia por uma cultura “tóxica”. Isso é tão raro que não pode ter deixado de assustar a direção da empresa.

Some-se a isso a debandada de executivos. A saída mais recente, no dia 11 de abril, foi de Rachel Whetstone, que era chefe de políticas e comunicação da empresa, responsável pelo lobby para proteger um serviço que incomoda tantos setores, dos taxistas a reguladores.

Segundo funcionários ouvidos pelo New York Times, Rachel e Kalanick tiveram alguns entreveros sobre como conduzir a comunicação externa, especialmente em meio à crise.

Antes dela, saíram Amit Singhal, chefe de desenvolvimento de softwares, quando a companhia descobriu que num trabalho anterior ele foi acusado de assédio sexual (ele se diz inocente); Ed Baker, vice-presidente de crescimento e produtos, e Jeff Jones, que havia entrado no Uber apenas seis meses antes e era tido como o braço-direito de Kalanick.

Jones saiu porque Kalanick anunciou que está procurando um líder de operações para ajudá-lo a mudar de atitude. “Depois que anunciamos nossa intenção de contratar um COO, Jeff chegou à dura conclusão de que ele não vê um futuro para si no Uber”, disse Kalanick, em um email obtido pela Bloomberg.

O festival de acusações

A cultura interna não é o único problema do Uber. O inferno astral da companhia começou em janeiro, quando Kalanick aceitou fazer parte da equipe de conselheiros do presidente Donald Trump. A reação foi imediata, com uma campanha para apagar o aplicativo do Uber nos celulares. Estima-se que a companhia tenha perdido 200.000 clientes nos Estados Unidos.

Seja por isso ou pela insatisfação de Kalanick com a lei que Trump assinou banindo a entrada de imigrantes de sete países de maioria muçulmana, o fato é que o CEO do Uber decidiu renunciar ao posto de conselheiro. “Juntar-me ao grupo não significava um endosso do presidente nem de sua agenda, mas infelizmente foi assim que fui interpretado”, disse Kalanick.

Em seguida, veio a avalanche de golpes. Além da exposição de uma cultura interna problemática, uma reportagem do New York Times revelou em março que a empresa usou (e possivelmente ainda use) um programa para ludibriar autoridades em mercados onde seu serviço enfrenta obstáculos regulatórios.

O programa, chamado VTOS (sigla em inglês para “violação de termos de serviço”), foi desenvolvido no início de 2014 para afastar pessoas que estivessem usando o serviço de compartilhamento de carros indevidamente, afirmou o jornal. Quando os usuários marcados como indesejáveis tentavam usar o aplicativo, alguns dos carros que viam na tela eram inexistentes.

Isso foi rapidamente adaptado para evitar que autoridades flagrassem motoristas prestando serviço para o Uber em cidades onde não havia autorização para isso.

Em um comunicado, o Uber confirmou a existência do programa, dizendo que ele serve para “negar pedidos de transporte a usuários que estejam violando os termos de serviço – sejam pessoas com intenção de agredir fisicamente os motoristas, competidores tentando atrapalhar nossas operações ou opositores que se aliem a autoridades em operações para flagrar nossos motoristas”.

O programa visa proteger os motoristas de assaltantes, por exemplo. E também de trotes, que se tornaram comuns na guerra entre o Uber e seus concorrentes, em especial o Lyft. Mas foi usado várias vezes para evitar as multas e apreensões de veículos que autoridades aplicam a motoristas onde o serviço é considerado irregular (e das quais o Uber em geral arca com as despesas).

Como a maré estava favorável às acusações contra o Uber, surgiram até algumas, digamos, mais próximas do ridículo. Uma outra reportagem do New York Times acusou o Uber de usar “truques psicológicos” para fazer os motoristas trabalharem mais.

De fato, quando um motorista desliga o aplicativo do Uber para encerrar seu dia de trabalho aparece uma mensagem instando-o a continuar e fazer tanto dinheiro quanto na semana passada, ou atingir alguma meta aleatória. É uma espécie de incentivo comum em games, para prender a atenção do usuário. Mas qualificar isso como um truque maquiavélico é um grande exagero.

A questão do Uber é que, não tendo empregados, a companhia não precisa arcar com uma série de custos. Mas também não pode simplesmente mandar os motoristas cumprirem as tarefas que deseja. Por isso, trata de tentar convencê-los. E isso inclui pequenos estratagemas, como usar gravações com voz de mulher para pedir que os motoristas se dirijam a alguma área onde deverá haver mais passageiros, porque a maioria deles se sente mais inclinada a levar em consideração pedidos femininos.

Como opinou o colunista da Bloomberg Matt Levine: “então o Uber estabelece metas para os motoristas, promete-lhes bônus se atingirem a meta e lhes enviam mensagens dizendo ‘você está quase lá, parabéns’. E aí, quando eles atingem a meta, recebem os bônus. Que espécie de truque é esse? (Seria um truque se o Uber não lhes pagasse o bônus).”

Mais escandalosa é uma outra acusação, do site Information. , segundo a qual o Uber usou um programa para monitorar os motoristas do rival Lyft. É algo parecido com o programa Heaven (céu), pelo qual a companhia consegue ter uma visão “de cima” de onde estão seus motoristas.

Para estender esse tipo de controle aos rivais (que apelidou de Hell, inferno), o Uber supostamente criou contas falsas nos aplicativos dos rivais, para monitorar a localização e os hábitos de seus motoristas. Assim pôde, entre 2014 e 2016, saber quais motoristas tinham aplicativos dos dois serviços e oferecer-lhes vantagens para ficar só com o Uber.

A batalha pelo futuro – contra o Google

De todos os problemas surgidos recentemente para o Uber, o mais ameaçador é provavelmente a ação movida pela Waymo, uma divisão da Alphabet (a holding que também controla o Google). Segundo a Waymo, que investe na construção de carros autônomos, o projeto do Uber para fazer sua própria frota de carros auto-guiados teria se beneficiado de um roubo de tecnologia.

A Waymo afirma que o engenheiro Anthony Levandowski, que trabalhava no projeto de carro autônomo do Google, levou sem permissão 14.000 arquivos que pertenciam à empresa para formar a sua própria startup, Otto, que em seguida foi comprada pelo Uber por 500 milhões de dólares.

O Uber diz não ter encontrado nenhuma evidência de uso dos arquivos da Waymo em seu projeto. Mas o caso não é nada simples. Levandowski contratou um advogado próprio, independente do Uber, e recorreu ao seu direito de ficar em silêncio para não incriminar a si próprio (a famosa Quinta Emenda da Constituição americana).

No último dia 7, um mês e meio depois de a Waymo entrar com a ação, o Uber finalmente reagiu. Disse que seu sensor para o carro “enxergar” a pista usa quatro lentes, em vez de uma, como o projeto da Waymo, e que a empresa só quer “prejudicar nossa inovação independente”.

Para a Waymo, a afirmação do Uber de que nunca tocou nos arquivos é “ingênua no mínimo, dada a sua recusa em olhar no lugar mais óbvio: os computadores e aparelhos que pertencem ao chefe de seu programa de carros autônomos”.

O juiz do caso parece inclinado a deixar a ação correr. Especialmente porque, de acordo com o Wall Street Journal, o Uber discutiu comprar a empresa de Levandowski apenas dois dias depois de ele deixar o Google, de forma abrupta. Os advogados da Waymo disseram, segundo o WSJ, que os advogados do Uber aventaram a hipótese de defender Levandowski na justiça em janeiro – ou seja, estaria cientes de um risco de litígio.

“As evidências parecem corroborar as alegações de que o Uber e Levandowski estavam em contato na época de sua saída do Google – e que o Uber estava ciente de certos riscos associados à startup, meses antes de comprá-la”, afirmou o jornal.

Casos de roubo de projeto podem ser muito complicados de julgar. Um dos exemplos mais famosos foi o do executivo José Ignacio López de Arriortúa, que em 1992 deixou um alto posto na General Motors para se empregar na Volkswagen. A GM o acusou de levar documentos secretos para o novo empregador – e o caso foi resolvido com um acordo de 1,1 bilhão de dólares.

Se ficar num prejuízo financeiro, não será de todo mau para o Uber. O maior risco é se a decisão judicial paralisar o projeto de um carro autônomo da companhia. Seria um baque no que o Uber considera o seu futuro.

Como esclarece o jornalista Brad Stone no livro Upstarts, sobre o Uber e o Airbnb, Kalanick resolveu investir num projeto próprio de carros autônomos quando percebeu que o Google, uma vez que os construa, pode facilmente tomar o seu mercado – com a enorme vantagem de não ter de lidar com motorista nenhum.

 

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