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O discreto charme da baixa renda

Com inovação e tecnologia, as grandes empresas apostam num mercado que consome 372 bilhões de reais por ano

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

Pobre, baixa renda, emergente, classe CD, povão, mercado popular. São palavras e expressões que, cada vez mais presentes nas rodas de executivos, quebram a cabeça de consultores, geram trabalho para os institutos de pesquisa, lotam seminários e inspiram teses acadêmicas, aqui e lá fora. Por que, de uma hora para a outra, os holofotes do mundo corporativo se voltaram para os 4 bilhões de habitantes do planeta que sobrevivem com uma renda per capita em torno de 1 500 dólares anuais? É simples: há um pote de ouro à espera das empresas que aprenderem a construir modelos de negócios voltados para a base da pirâmide de renda. Quem diz isso é o consultor C.K. Prahalad, indiano radicado nos Estados Unidos, uma referência quando o assunto é estratégias para mercados emergentes. Professor de administração na Universidade Michigan, os argumentos de Prahalad poderiam sustentar uma surpreendente teoria: nunca os ricos dependeram tanto dos pobres.

Até o final dos anos 80, cerca de 75% das vendas dos fabricantes de bens de consumo provinham dos consumidores ricos e da classe média dos países desenvolvidos. Já na década passada, com os sinais de saturação desses mercados piscando nas matrizes, a geografia das corporações passou a se deslocar para os mercados emergentes. Com uma população somada de 2,6 bilhões de pessoas, os cinco principais emergentes (China, Brasil, Índia, México e Indonésia) subiram ao pódio das vendas de refrigeradores, televisores e uma série de itens rotineiros. É nesses países que gigantes como Colgate, Coca-Cola, Gillette, Nestlé e Unilever obtêm um terço ou mais de suas receitas globais. Num levantamento recente, a consultoria McKinsey constatou que cerca de 40% das vendas mundiais de itens de mercearia e de vestuário -- acima dos 200 bilhões de dólares anuais -- provêm dos 2,5 bilhões de consumidores de baixa renda. "Com infra-estrutura, executivos talentosos e a concentração de baixa renda em áreas urbanas, o Brasil poderá ser um laboratório para o mundo", disse Prahalad a EXAME. Não é preciso ser nenhum guru indiano para avaliar o potencial de consumo da baixa renda no Brasil. As faixas C, D e E (veja quadro) representam 31 milhões de lares -- nada menos que 72 de cada 100 domicílios urbanos. Juntos, os pobres brasileiros têm capacidade de compra de 372,5 bilhões de reais, o equivalente a 42% do consumo nacional, que neste ano deve chegar a 887 bilhões de reais, de acordo com projeções da consultoria paulista Target Marketing. Essa dinheirama é muito mais do que dispõem isoladamente a classe A (212,8 bilhões de reais) e a classe B (301,5 bilhões).

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Não por acaso, é no rico mercado dos pobres que está a oportunidade de crescimento vislumbrada por muitas das maiores corporações mundiais. Seus executivos não mais questionam o potencial de consumo do contingente mais pobre -- mas sim como chegar até eles de forma mais eficiente e rentável. Nessa maratona, a anglo-holandesa Unilever saiu na frente. "Em dez anos nossas 30 unidades nos países emergentes deverão responder por mais da metade da operação mundial", disse a EXAME, em 1999, o executivo irlandês Niall Fitzgerald, chairman do ramo inglês da Unilever. O relógio está correndo. "Nossa meta é duplicar a receita para 500 milhões de dólares na América Latina até 2005", afirma o executivo Laércio Cardoso, diretor do centro de baixa renda da Unilever.

Segundo o estudo da McKinsey, só no ano passado os 20 maiores fabricantes mundiais de bens de consumo investiram acima de 10 bilhões de dólares com o objetivo de aumentar sua fatia nos mercados da América Latina, Ásia e África. Sucede que essa não é uma empreitada sem riscos. Ao contrário. Ao analisar as experiências de penetração na baixa renda protagonizadas por 17 fabricantes de bens de consumo em seis países -- entre eles Brasil, China e Índia --, o estudo constatou que 66% das ações resultaram em fracasso. Por quê? A maioria das que fracassaram tentou começar do zero, com operações próprias. Em contrapartida, as que se deram bem tinham queimado etapas, adquirindo um concorrente já estabelecido com marcas voltadas para a baixa renda. Mas atenção: por si só isso não garante o sucesso. Integrar e remodelar a nova aquisição sem preservar as características originais pode ser fatal. É maior a chance de sucesso se a empresa comprada continuar sendo operada de forma independente, nos mesmos moldes que a fizeram tão bem-sucedida a ponto de despertar o interesse do comprador.

Esse é um pressuposto estratégico que vale para qualquer setor -- de bens de consumo a serviços. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o Unibanco, terceiro maior banco privado do país, quan do constatou que, para fazer frente ao processo de consolidação do setor bancário, precisava ganhar musculatura e ampliar a base de clientes. "Ao percebermos que o nome do jogo era escala e que seria inescapável mergulhar no universo de clientes de renda mais baixa, a pergunta relevante passou a ser como? ", diz Joaquim Francisco de Castro Neto, presidente do Unibanco.

Segundo ele, seria inviável, até pelo porte físico das agências, fazer a clientela de alta renda dividir espaço com o público popular. Os estudos também indicavam que, de cada 100 clientes na faixa CDE, 39 tomam empréstimos e geram lucro. O restante está dividido entre poupadores e correntistas que nada investem e se limitam a fazer transações. Diante disso, o Unibanco não quis se arriscar. Optou por uma aquisição. Em dezembro de 2000, comprou a financeira Fininvest, que há quatro décadas trabalhava com o público menos abonado. São hoje mais de 3 milhões de clientes ativos e 110 lojas, 52 delas inauguradas no ano passado. "Quem tentar improvisar nesse mercado vai pagar um preço alto de aprendizado", diz Castro Neto.

Estratégias como a do Unibanco não são a regra. A McKinsey constatou que a prática mais comum é a intervenção da empresa compradora impondo valores e mudanças nas marcas e nos produtos recém-adquiridos. O resultado é quase sempre desastroso: os preços inflam afugentando os consumidores e a marca perde vitalidade. "A chave é focar redução de custos, eficiência operacional e simplicidade, mais do que reformulação de produtos e esforços de marketing", diz o consultor Nicola Calicchio, coordenador do estudo da McKinsey. Tome o exemplo da pernambucana Pilar, centenária fabricante de biscoitos e massas fundada pela família Turton. Vendida em 1996 para a Fleischman Royal, a Pilar foi para o portfólio da americana Nabisco, que se tornara a nova dona da Fleischman. Em seguida, foi a vez de a Nabisco ser incorporada pela Kraft Foods. Nesse percurso tortuoso, nenhum dos erros possíveis mencionados pela McKinsey em seu estudo deixou de ser cometido. A marca perdeu o foco. Seus antigos biscoitos recheados e amanteigados ao gosto dos nordestinos desapareceram. Os fortes laços que a empresa mantinha com o pequeno varejo -- que responde por mais da metade das vendas na região -- estremeceram por causa da linha dura nas negociações de prazos imposta pelo pessoal da Kraft Foods. O desfecho, cinco anos depois, parecia previsível: a participação no mercado de biscoi tos da marca despencou de 16% para 7%. Foi quando a Kraft Foods pôs a Pilar à venda. Adivinhe quem foi o comprador? O empresário Leonardo Turton, um dos antigos herdeiros, acompanhado de um sócio local.

O trunfo da ecala
Para ter sucesso na base da pirâmide, de acordo com Prahalad, as grandes corporações globais terão de reinventar a cadeia logística e seus processos comerciais. Também terão de reavaliar suas relações de custos e de preços e alcançar níveis mais elevados de eficiência. No entanto, o que talvez seja a maior vantagem de uma empresa global é a escala. Altos volumes contribuem para diluir custos de desenvolvimento de novos produtos e fortalecem o poder de negociação com fornecedores. Na condição de segunda subsidiária do grupo em volumes comercializados -- foram 500 milhões de unidades no ano passado --, a filial brasileira da Avon tira partido obtendo condições vantajosas na aquisição de matérias-primas negociadas mundialmente, o que permite a redução do preço final dos produtos. De acordo com Eneida Bini, presidente da Avon, foi assim que produtos sofisticados como o creme antiidade Renew tornaram-se acessíveis também às clientes das classes CD. Vendido atualmente ao preço promocional de 29,90 reais, o pote do Renew custava meio salário mínimo quando foi lançado, em 1998 (ou seja, 120 reais em dinheiro de hoje).

Com 50 anos de Brasil, a subsidiária está transferindo seu know-how em distribuição e vendas diretas para os outros mercados emergentes nos quais a corporação está se expandindo, como Índia e Leste Europeu (já se tornou benchmark na indústria de cosméticos a operação para viabilizar os 13 milhões de entregas de encomendas feitas por seu exército de 800 000 revendedoras, num país com a dimensão do Brasil. "Chegamos aonde o correio não chega", diz Eneida).

O compartilhamento das melhores práticas e do conhecimento gerado é outra vantagem das empresas globais na batalha pelos pobres. O grupo americano Whirlpool, fabricante de eletrodomésticos e controlador da Multibrás -- dona das marcas Brastemp e Consul --, elegeu a subsidiária brasileira como seu centro mundial de tecnologia de lavadoras. Nascem na unidade de Rio Claro, no interior paulista, alguns dos projetos internacionais do grupo destinados ao promissor mercado dos pobres. "Investimos de 40 a 50 milhões de reais em desenvolvimento de novos produtos a cada ano", diz Ronaldo Pinto Flor, gerente de marketing da Multibrás. O próximo lançamento da Multibrás é uma lavadora automática, batizada de Ideale/Consul. A novidade, que será posicionada como o modelo automático mais barato do mercado, será lançada em outubro. Desenvolvido pela equipe brasileira, será produzido e comercializado simultaneamente pelas subsidiárias da Whirlpool na China e na Índia.

No Brasil, o momento do lançamento não poderia ter sido mais oportuno. Coincidiu com a liberação, pelo governo, de uma linha de crédito de emergência, em vigor até o final do ano, para a compra de eletrodomésticos com taxas de juro de apenas 2,53% ao mês. Com isso, é provável que a Ideale, concebida para os cerca de 12 milhões de lares da classe C, alcance também parcelas da D. "Será um best-seller", afirma Emerson do Valle, diretor de marketing da Multibrás, sem revelar a projeção de vendas. Na linha branca, o termo "best-seller" costuma designar as novidades capazes de vender de 200 000 a 300 000 unidades anuais.

Como nasce um produto
O caso da Ideale ilustra bem como deve ser a concepção, a gestação e o nascimento de um produto destinado ao segmento popular. Os executivos da Multibrás vinham observando, desde 1997, um crescimento exponencial das vendas anuais de lavadoras semi-automáticas, os chamados tanquinhos, que no ano passado devem ter dobrado em relação ao 1,2 milhão de unidades de automáticas. A lavadora é um dos eletrodomésticos com maior potencial de venda: apenas 47% dos lares da classe C (renda familiar de quatro a dez salários mínimos mensais), o público visado pela Multibrás, possuem uma lavadora. São em menor proporção ainda (36%) os dotados de automáticas. Seguida pelo celular, a lavadora é o equipamento mais cobiçado dessa faixa de renda, segundo uma pesquisa nacional do Ibope. Estudos de mercado indicavam que havia espaço de preço a ser preenchido entre as semi-automáticas (que custam de 100 a 380 reais) e as automáticas (de 900 a 1 400 reais). Com base nisso, a Multibrás partiu para o desenho de um equipamento sob medida para o público-alvo. O que motivaria uma dona-de-casa que já possui um tanquinho a migrar para um modelo automático? O movimento de centrifugação. Sem isso, a roupa tem de ser torcida à mão e demora para secar.

Em visitas aos domicílios dos consumidores, os executivos da Multibrás, acompanhados de pesquisadores, puderam observar hábitos das potenciais compradoras do modelo popular. O contato direto evita a repetição de erros do passado, quando empresas pouco familiarizadas com as expectativas da população mais pobre degradavam o produto eliminando aleatoriamente funções dos equipamentos, preocupados apenas em reduzir custos. Nas empresas modernas, isso hoje é inimaginável. O aço e outros insumos utilizados na Ideale têm a mesma especificação dos demais modelos da Consul. A inovação é condição essencial para baratear os produtos sem comprometer a marca com perda de qualidade. No caso da Ideale isso se traduziu em soluções de engenharia no sistema de motor e transmissão. Pode parecer um contra-senso, porém é mais fácil criar um produto econômico do que adaptá-lo. "Por isso, começamos do zero", afirma Micael Zirondi, gerente de desenvolvimento da Multibrás. Praticamente todas as funções, assim como os componentes, foram barateadas. O caro sistema de freio foi substituído por um econômico e eficiente dispositivo entre as molas que também possibilita uma parada segura. Em vez de inox, o cesto é feito de plástico, assim como a tampa. Essas medidas representam economia de até 80% nos custos. Nenhum acessório ou função valorizados pelas consumidoras da classe C foi eliminado. O filtro de fiapos ficou à mostra, do jeitinho que elas gostam. Para atender o hábito de maior freqüência na lavagem de roupa, a máquina terá capacidade reduzida de carga -- cerca de 4 quilos, ante 6 ou até 8 das demais automáticas. A tampa é transparente, permitindo a visualização da operação. Os botões manuais descrevem as funções, em vez de sinalizá-las com símbolos de difícil compreensão. Mil máquinas foram despachadas para as casas dos consumidores e até a véspera do lançamento estavam sendo feitos ajustes com base em seus relatos.

Foi também com tecnologia que uma face menos conhecida do McDonalds se revelou. Pouca gente talvez saiba, mas o fato é que a rede, mais conhecida por seus hambúrgueres, transformou-se na maior sorveteria popular do país. Eram 177 quiosques vendendo sorvetes em 1997. Hoje são 603, e a previsão é inaugurar mais 35 até o fim deste ano. Tendo como concorrentes marcas de vendas por impulso, como a Kibon, além de redes fragmentadas que se valem do sistema congelado de distribuição -- muito caro -- o McDonalds ganhou terreno quando passou a utilizar bolsas a vácuo para acondicionar uma pasta com estabilizante que garante à matéria-prima um ciclo de 21 dias de vida útil. É tempo suficiente para transportar os bags dos fornecedores para os centros de distribuição e dali para os quiosques, onde o sorvete é processado por um equipamento semelhante às máquinas italianas que faziam sucesso nos anos 70.

É isso que possibilita à rede vender seu sorvete em três sabores básicos por pouco mais de 1 real e ainda ganhar dinheiro com as coberturas opcionais. As vendas de sorvetes em quiosques representaram 13,5% do faturamento de 1,6 bilhão de reais no ano passado. "Os quiosques funcionam como um cartão de visita para atrair o público da classe CD", diz Marcel Fleischmann, presidente do McDonalds do Brasil. A introdução de descontos em horários especiais tem atraído o público da classe D, de hábitos bastante restritivos no que diz respeito a refeições fora de casa.

O círculo da inovação
Por vezes, a inovação usada para conquistar o público de baixa renda não depende somente de iniciativas internas da empresa. É preciso rever -- e até redesenhar -- a cadeia de produção que envolve diferentes setores para ser competitivo e rentável no segmento de baixa renda. Esse é um dos maiores desafios do setor de telefonia celular. "Os mercados emergentes são a chave para o crescimento em todo o mundo, e o Brasil é um dos países mais importantes nessa estratégia", disse Jorma Ollia, presidente mundial da finlandesa Nokia, em recente visita ao país.

Há atualmente 1,2 bilhão de telefones móveis em operação em todo o mundo. As estimativas da Nokia apontam para 2 bilhões de usuários em 2008. Desses 800 milhões de novos clientes, 80% virão de mercados emergentes. Os fabricantes dependem das operadoras para chegar a esses consumidores. A mensagem das empresas de telefonia é clara: é preciso criar aparelhos mais baratos. Duas semanas antes da passagem de Ollia pelo país, a Nokia anunciara dois novos produtos: uma rede capaz de otimizar o tráfego de voz e serviços simples de dados (o que implica menores custos de implementação e manutenção) e uma nova linha de aparelhos básicos. "É uma mostra do foco da empresa no consumidor de baixa renda. Recentemente criamos até mesmo uma diretoria para se dedicar ao segmento", disse a EXAME Yrjö Neuvo, diretor de tecnologia e responsável pelo desenvolvimento de novos aparelhos Nokia. "A questão fundamental para esse cliente é o custo total da telefonia móvel. É por isso que criamos uma rede que permite às operadoras oferecer o serviço a um custo mais baixo."

A Claro, companhia do grupo mexicano América Móviles, que recentemente adquiriu a operação da BCP em São Paulo, trabalha com um teto bastante rigoroso: 60 dólares. Esse é o custo máximo que a empresa pode investir na captação de clientes de baixa renda, que dão preferência aos serviços pré-pagos de telefonia. O limite de investimento inclui subsídio do aparelho, custos de distribuição e marketing. Não é muito, como reconhece Carlos Henrique Moreira, presidente da Claro. "Mas, se não for dessa maneira, não temos como recuperar o investimento na vida útil do telefone", diz Moreira. "Se houvesse um telefone realmente barato, na faixa de 50 reais, dobraríamos nossa base de clientes rapidamente." Hoje, os modelos mais baratos custam entre 200 e 300 reais. Para o consultor Ingo Weiland, da Roland Berger, os aparelhos custam caro por causa de itens como o visor, que segundo ele não são fundamentais para a operação. "Isso mostra a grande distância entre os interesses das operadoras e os dos fabricantes", afirma Weiland.

Uma vez superada a questão da porta de entrada do consumidor na rede telefônica, os lucros poderão aparecer rapidamente. De acordo com a média do mercado nacional, os usuários de pós-pagos representam cerca de 30% dos clientes de uma operadora -- e, no caso da Claro, 60% dos custos, segundo Moreira. A rentabilidade de 1 minuto pré-pago é maior que a de 1 pós-pago, de acordo com Moreira. "Recebo o pagamento adiantado, não tenho de lidar com o complexo sistema de cobrança e não corro o risco de inadimplência", afirma ele. Grandes volumes são a chave nessa modalidade de negócio. Em setembro, o número de linhas móveis em operação no Brasil ultrapassou o de linhas fixas: são 40 milhões de pessoas conectadas às redes celulares, contra 39 milhões de terminais fixos. Ao que tudo indica, o crescimento deve continuar.

O custo dirige o preço
Tão importante quanto acertar a mão no produto é fixar um preço adequado aos consumidores. "Todo produto deveria ser concebido com um grupo de consumidores, tendo em mente o preço que eles querem pagar", afirma o americano Philip Kotler, acadêmico e consultor de marketing. "É o que se chama de custo dirigido pelo preço, em vez de preço dirigido pelo custo." Para fixar o preço final da lavadora Ideale, a Multibrás ouviu uma amostra de 450 consumidoras. Num ambiente que reproduz um ponto-de-venda, com produtos da marca e de concorrentes, elas foram convidadas a "fazer compras". Suas avaliações da adequação do produto e os respectivos preços serviram de base para chegar ao valor: ao redor de 700 reais. Um sistema de televendas deve eliminar os intermediários e padronizar o preço no comércio das pequenas cidades do interior do país.

Também preocupada com o ágio em seus produtos, a Unilever está disseminando um novo modelo de gestão de vendas para os mercados mais remotos, como na Região Nordeste. Antigos atacadistas foram convertidos em distribuidores especializados. Com funções ampliadas, eles passaram a ser remunerados não apenas pelas vendas e pelo transporte. Também são responsáveis por montar e administrar, no ponto-de-venda, as seções de higiene e beleza e os estoques dos comerciantes. Sua missão é transformar as prateleiras caóticas de bodegas e minimercados em gôndolas atraentes. "Cobrimos com 180 vendedores os 600 quilômetros até Cariri, no sul do Ceará", diz Alexandre Sleiman, diretor da DAG, distribuidora com sede em Fortaleza. Para não comprometer o reduzido capital dos clientes, em vez de empurrar caixas fechadas os produtos são fracionados e vendidos até por unidade.

Um recente estudo elaborado pela consultoria Booz Allen para a Coca-Cola evidenciou a importância do pequeno varejo para os consumidores emergentes: eles preferem fazer compras perto de casa, valorizam as relações pessoais e o crédito informal oferecido pelo comerciante. Tal como indica a maioria das pesquisas, predomina a opção por marcas líderes. Mas, no momento da compra, se o preço da marca estiver alto, o cliente aguarda uma promoção ou opta por outra mais barata. A mistura entre marcas premium e talibãs ocorre tanto em alimentação e bebidas quanto em limpeza. "Compro sabão Omo, margarina Quali e arroz Tio João", diz a manicure paulistana Meire dos Santos Caetano, confirmando algumas das marcas do "coração" das donas-de-casa da classe C detectadas num levantamento da Unilever. E se o dinheiro estiver curto? "Bom, aí eu compro o Omo pequeno", diz Meire. Segundo Cardoso, diretor do centro de baixa renda da Unilever, um dos problemas enfrentados hoje pela empresa é assegurar que essas versões menores cheguem à despensa de consumidoras como Meire a preço acessível. Quase 70% dos consumidores de Omo pertencem à classes C, D e E. A diferença fica por conta do consumo per capita: 4,9 quilos anuais, em média, contra 7,8 quilos da classe AB.

Um fator humano
Qualquer empresa que se aventure no mercado da baixa renda não pode deixar de incluir entre suas preocupações o fator humano. "É difícil encontrar gerentes talentosos que queiram trabalhar com a base da pirâmide", afirma Prahalad. Egressos, na grande maioria, de lares abastados ou de classe média, muitos executivos acumulam milhagem internacional e diplomas de MBAs cursados em centros de excelência no exterior. Mas, no dia-a-dia, ignoram as aspirações dos consumidores de baixa renda que podem ser decisivas para selar o sucesso de um produto. Ter um contato mais pessoal, como fez a Multibrás, ajuda a elucidar detalhes controversos que, por vezes, passam despercebidos nas pesquisas. Foi assim que a Unilever descobriu que padrões como o critério Brasil -- que enquadra a população em classes (de A a E) com base na renda, no número de eletrodomésticos na casa e na escolaridade do chefe de família -- não trazem informação suficiente para orientar os lançamentos de produtos focados em determinada classe social. Pesquisadores da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro também constataram que a diversidade de perfil do público pesquisado era muito mais ampla e rica do que as tradicionais classificações sugerem. Aspectos inéditos e curiosos, como a influência da religião no consumo, surgiram no trabalho realizado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM): enquanto os católicos dão prioridade à compra de aparelho de TV e de som, os evangélicos elegem a máquina de lavar para liberar as mulheres das tarefas domésticas para o culto.

Em busca de uma visão mais nítida dos consumidores emergentes, a Unilever contratou a Fundação Getulio Vargas para conduzir um trabalho sob a supervisão do antropólogo Roberto da Matta. Com uma metodologia inovadora, os próprios entrevistados, confrontados com 85 afirmações, passaram a se auto-identificar com comportamentos enunciados de pobre, rico ou classe média. O levantamento permitiu segmentar os lares da classe CD em perfis mais detalhados, levando-se em conta, por exemplo, as diferenças de comportamento ditadas pelo tipo de renda, fixa ou não.

Também a operadora de cartões MasterCard encomendou à consultoria Roland Berger um levantamento sobre o comportamento do consumidor de baixa renda. Uma das conclusões: apenas 0,5% do consumo das classes C, D e E foi realizado com cartões de crédito ou débito no ano passado. Maior divulgação das vantagens do uso dos recursos dos cartões poderia fazer triplicar os gastos dos clientes da baixa renda no curto prazo. Segundo Cristina Paslar, diretora de marketing da MasterCard, o estudo detectou falhas no relacionamento com esse segmento. A campanha publicitária, pouco realista, não estava atingindo a baixa renda.

Agora, a MasterCard está firmando uma parceria com instituições como a Fininvest -- o braço popular do Unibanco -- e a Caixa Econômica Federal para o desenvolvimento de novos produtos. "Os cartões que temos no Brasil ainda seguem o modelo do mercado americano", diz Cristina. Segundo ela, é preciso oferecer serviços agregados mais relevantes e compatíveis com o perfil do cliente. A sugestão de um programa de milhagem rodoviária, similar ao de companhias aéreas, poderia ser atraente para incentivar o uso de cartões.

Tudo isso mostra que ainda persiste uma visão elitista no mundo corporativo a respeito do andar de baixo. Habituadas por décadas a servir à porção Bélgica do Brasil, muitas empresas só encaram o lado Índia do país, ou seja, o universo de valores da baixa renda, quando já estão no limite das pressões competitivas. Gigantes do setor dos medicamentos de venda livre, os chamados OTC, só depois de perder terreno para as marcas populares de pequenos laboratórios reavaliaram seus preconceitos e suas hesitações em associar a imagem corporativa a mídias populares, como fizeram sempre os nanicos. Até dois anos atrás, a Schering-Plough, dona do Copertone e do Coristina, ainda mantinha seus investimentos publicitários em espaços nobres. Foi então que se rendeu à evidência de que só conseguiria fazer as vendas crescer anunciando para grandes audiências. "Já havíamos tentado de tudo, de descontos agressivos nos pontos-de-venda a reforços na propaganda convencional", diz Sandro Cimatti, diretor de marketing da Schering-Plough. "Mas a solução que realmente funcionou foi falar diretamente com a classe C." A maior parcela da verba anual de 4 milhões de reais foi investida em programas como os de Raul Gil e Ratinho. "Como o apresentador explica o benefício de maneira bem mastigada, as pessoas prestam atenção", diz Cimatti. Também passaram a ser veiculadas mensagens em emissoras de rádio, ônibus e outdoors. Já no ano passado as vendas de Coristina aumentaram 13%. Em junho, a marca, cinqüentenária, alcançou a liderança em vendas pela primeira vez. Entre seus concorrentes estão o Apracur e o Benegripe, do laboratório Dorsay, que por anos reinou absoluto no mercado popular.

Ganhar o mundo
A bagagem acumulada de experiências na base da pirâmide pode representar um importante diferencial competitivo para as empresas brasileiras. Outros países emergentes -- como China, Índia e Rússia -- , embora mais pobres e em diferentes estados de desenvolvimento, são oportunidades imensas para as empresas capazes de inovar. Quem se movimentar agora terá grandes chances de lucrar com a nova etapa da globalização que se prenuncia: vender produtos e serviços feitos sob medida para uma massa planetária de consumidores. O projeto da nova lavadora da Whirlpool, desenvolvido no Brasil, vai incorporar na China e na Índia o jeitinho local. "Melhor do que ninguém, podemos abrir novas portas para a exportação", diz Marcelo Rodrigues, diretor de tecnologia da Multibrás. "Só precisamos aprender o que os americanos fazem bem: valorizar e investir em pesquisa e desenvolvimento."

O mesmo paradigma vale para outros setores, como o automobilístico. "A corrida não é para saber quem vai fabricar, mas sim quem vai desenvolver", afirma o consultor Corrado Cappelano, da A.T. Kearney. Em comparação a outros países emergentes, o Brasil tem uma tradição enorme e pode tirar vantagens disso -- caso, é claro, o setor se recupere e tenha recursos para desenvolver novos modelos. A Fiat recentemente inaugurou um centro de desenvolvimento em Betim. Com exceção da matriz, na Itália, a subsidiária brasileira é a única capaz de conceber um automóvel da prancheta à linha de produção. "Nossa prioridade são os consumidores da América Latina, mas é claro que os modelos podem ser exportados", diz Appio Aguiari, diretor de engenharia da Fiat no Brasil.

RUMO AO POTE DE OURO

Conheça o consumidor brasileiro de baixa renda

A DIVISÃO DO BOLO
Os consumidores de baixa renda representam 77% dos lares urbanos e mais de 40% de todo o consumo no país
A
5%
B
18%
C
31%
D
34%
E
12%
Total - 40,1 milhões de domicílios
Consumo
Distribuição por faixa de renda
A
24%
B
34%
C
26%
D
14%
E
2%
Total - 887 bilhões de reais
Evolução
Crescimento do consumo por faixa de renda, entre 1995 e 2002
A
2%
B
-1%
C
3%
D
6%
E
4%
Total - 887 bilhões de reais
PARA ONDE VAI O DINHEIRO
Perfil de consumo dos lares das classes C e D
Alimentação, limpeza, higiene
30%
Habitação
18%
Vestuário e calçados
5%
Lazer
3%
Transporte
3%
Saúde e medicamentos
8%
Eletrodomésticos e mobiliário
6%
Educação
1%
Outros
16%
Alimentação fora de casa
4%
Fontes: Target, Booz Allen Hamilton
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