MUSK E A SPACE X: ao mesmo tempo em que investem em IA, ele bola um plano B — se mandar para Marte / Kevork Djansezian/ Getty Images (Kevork Djansezian/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 31 de março de 2017 às 18h04.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h00.
David Cohen
Em mais uma volta do ciclo da arte que imita a vida que imita a arte, o empresário sul-africano Elon Musk, em quem o ator Robert Downey Jr. se inspirou para criar a personalidade do Homem de Ferro nos cinemas, está montando uma empresa para promover a simbiose entre máquinas e seres humanos (assim como o herói, cuja armadura sustenta seu enfraquecido coração e entende seus comandos mentais).
Em um tuíte esta semana, ele confirmou o lançamento da empresa Neuralink, registrada como uma companhia de pesquisas médicas, cuja ambição é potencializar as capacidades humanas. A empresa foi incorporada no ano passado e já contratou acadêmicos de diversas áreas, segundo uma reportagem do The Wall Street Journal. Sua ambição é desenvolver a tecnologia dos “laços neurais”, uma forma de implantar minúsculos eletrodos no cérebro para permitir a interação entre nossa mente e o mundo das máquinas.
Sim, trata-se de construir cyborgs, pessoas-máquinas, ao estilo da personagem Major, vivida por Scarlet Johansson no recém-lançado filme A Vigilante do Amanhã (Ghost in the Shell) – uma garota com corpo artificial e eletrodos no cérebro. Curiosamente, a maior motivação de Musk para apostar na tecnologia cyborg é o medo de um futuro dominado pelas máquinas. Um dos exemplos mais recentes dessa possibilidade é outra personagem vivida por Scarlet Johansson. No filme Ela, Scarlet faz a voz do sistema de inteligência artificial Samantha, que cria uma relação amorosa perfeita para o protagonista, Theodore (Joaquin Phoenix).
Há algum tempo Musk vem repetindo sua preocupação de que a inteligência artificial (IA) vai superar a inteligência humana e dominar o mundo. “Acho que nós devemos ser muito cuidadosos com a IA”, disse numa palestra no Massachusetts Institute of Technology (MIT) em 2014. “Se você assumir que haverá qualquer ritmo constante de avanço na IA, nós vamos ser deixados para trás. Bem para trás.”
Nesse caso, o melhor cenário, segundo ele, seria que a humanidade virasse uma espécie de mascote das máquinas. “Como um gatinho doméstico.” O pior cenário seria a guerra, alguma coisa entre os filmes The Matrix e O Exterminador do Futuro. A melhor maneira de evitar essa distopia, acredita Musk, é nos unirmos às máquinas. No sentido físico, mesmo.
Não se trata de uma realidade assim tão distante, diz Musk. Segundo ele afirmou numa conferência de programadores, em junho passado, nós já somos cyborgs. “Você tem uma versão digital de você mesmo, uma versão parcial de você online na forma de emails, redes sociais e todas as coisas que faz.” Nós já temos superpoderes, diz, graças aos nossos telefones e computadores. “Você tem mais poder do que o presidente dos Estados Unidos tinha há 20 anos. Você pode responder qualquer pergunta, pode fazer video-conferências com qualquer pessoa, em qualquer lugar.” Mas isso é só o começo.
É só uma coisa da sua cabeça…
O objetivo da tecnologia de “laços neurais” é entrelaçar finíssimos eletrodos aos neurônios do nosso cérebro. Em tese isso poderia permitir que um indivíduo transferisse pensamentos do cérebro para um computador e do computador para o cérebro.
Desta forma, os seres humanos poderiam ficar mais inteligentes e adquirir mais habilidades cognitivas e físicas. Algo como o que acontece no filme The Matrix, em que os personagens aprendem a lutar qualquer arte marcial ou pilotar helicópteros em questão de segundos, com a transferência de um programa para seu cérebro. Só assim, acredita Musk, seríamos páreo para computadores superinteligentes.
Tudo isso soa como alucinação. Mas, embora a noção de comunicar-se com computadores pareça uma miragem, o implante de eletrodos no cérebro não chega a ser uma novidade. A prática já é usada, por exemplo, no combate aos efeitos do Mal de Parkinson. Há quem defenda seu uso para tratar outras enfermidades, como epilepsia e casos graves de depressão.
Também já houve experiências de implantar sensores para que pessoas com algum tipo de paralisia consigam mover braços mecânicos. No ano passado, pesquisadores disseram ter conseguido que um homem recuperasse movimentos da mão depois de se submeter a um implante no cérebro.
Segundo a revista Smithsonian, um sistema desenvolvido na Universidade Harvard permite que fios milimétricos implantados via injeção no cérebro “se insinuem junto a neurônios vivos e espionem suas interações, oferecendo um modo de a eletrônica dialogar com a sua atividade cerebral”.
Musk não será o único empresário a tentar promover esses avanços. No “Prédio 8”, uma divisão de hardware secreta do Facebook, funcionários pesquisam uma tecnologia similar, tentando desenvolver uma interface não-invasiva entre o cérebro e o computador. A meta é criar produtos que permitam aos usuários se comunicar com seus aparelhos.
Nas universidades de Duke e da Califórnia também há pesquisas na direção de criar interfaces entre o cérebro e o computador, com o intuito de fazer com paraplégicos voltem a andar.
O empresário americano Bryan Johnson abriu no ano passado a empresa Braintree, com objetivos semelhantes: criar “interfaces neurais avançadas” para tratar doenças e aumentar a capacidade de cognição humana. (Johnson tem algo a mais em comum com Musk: ele ficou milionário ao vender sua startup Braintree por 800 milhões de dólares para o PayPal, a empresa da qual Musk foi um dos co-fundadores.)
Até nos esportes já há tentativas de aproveitar essa vereda. Na semana passada, o time de beisebol Giants, de São Francisco, encomendou capacetes da empresa Halo Neuroscience, que supostamente criam um “suave campo elétrico” para estimular as áreas do cérebro que se acredita terem alguma influência no desempenho atlético.
Todos esses exemplos sugerem um avanço gradual na direção da comunhão entre homens e máquinas. Musk, porém, se destaca pela ambição. E pela pressa. O que ele almeja é uma interface que permita passar pensamentos de um órgão humano para um órgão mecânico sem obstáculos – pela transformação das reações químicas responsáveis por nossa consciência em sinais digitais.
O governo americano tem um projeto semelhante. A agência de pesquisa estatal, Darpa, investiu 60 milhões de dólares no ano passado em pesquisas para produzir um chip implantável no cérebro. Mas os governos costumam ser lentos – como ficou demonstrado na corrida para decifrar o código genético humano, vencida pelo biólogo Craig Venter com sua iniciativa privada. A primeira experiência em que um macaco conseguiu, com um implante no cérebro, fazer um cursor de computador se mover sem tocá-lo, já tem 15 anos. De lá para cá, pouco progresso foi realizado.
Musk quer apresentar resultados em “quatro ou cinco anos”.
Não vai ser fácil. Cirurgias no cérebro, por mais fino que seja o implante, ainda são um procedimento de alto risco; os implantes podem se mover e deixar de funcionar; pessoas com implantes precisam ser treinadas para usá-los.
Essas dificuldades todas nem são o maior obstáculo. A parte técnica é extremamente complexa, mas, para realizar a combinação entre humanos e máquinas, o lado de cá é que é o menos entendido. Até hoje nenhum cientista tem uma clara noção de como o cérebro funciona. Sem isso, como pensar em transformar pensamentos em sinais digitais?
“Essa realidade está a algumas décadas de acontecer”, disse ao The New York Times o neurocientista Blake Richards, professor assistente na Universidade de Toronto. “Mas certamente dentro do século 21, assumindo que a humanidade não sofra uma implosão, isso é totalmente possível.”
O plano B de Musk
Entre os “quatro ou cinco anos” anunciados por Musk e o “ainda neste século” de alguns especialistas vai uma grande diferença. Musk parece, aliás, ter alguns problemas com prazos. Sua principal empresa, a Tesla, é um exemplo. Desde 2011, a empresa deixou de cumprir suas promessas – de datas de lançamento, de produção, de desempenho financeiro – mais de 20 vezes, de acordo com uma análise do Wall Street Journal.
O Model 3, o carro elétrico pensado para a classe média, a um preço de 35.000 dólares, foi prometido para o segundo semestre de 2017, reagendado para o final de 2018 e, segundo analistas, é pouco provável que seja lançado antes de 2019. Não está sendo fácil para a Tesla fazer a transição de uma empresa de luxo e de nicho, que produz cerca de 80.000 carros por ano, para uma grande montadora, que produza meio milhão de unidades anuais.
Musk também ganhou as manchetes em fevereiro com a notícia de que sua empresa espacial, a Space X, já tem dois clientes (milionários que preferem se manter anônimos) para uma viagem em volta da Lua. A previsão para a viagem é o final de 2018. Em 2011, ele havia prometido colocar gente no espaço em um prazo de três anos. Seis anos depois, seu novo prazo ainda parece otimista demais.
Ainda assim, o anúncio da incorporação da Neuralink e sua missão de criar cyborgs deve ajudar a reforçar a onda de interesse nas pesquisas sobre otimizar o cérebro humano.
Inteligência Artificial é o tópico mais quente do mundo da tecnologia, hoje. Vai desde os sistemas de assistir humanos em sua interação com smartphones, como o Siri, da Apple, a Cortana, da Microsoft, a Alexa, da Amazon, ou a assistente sem nome, do Google, até o esforço para construir carros autônomos e o progresso dos drones.
Não é a primeira vez que surge uma febre nesse campo. Durante a Guerra Fria, acreditava-se que em breve as máquinas ultrapassariam os humanos em inteligência. Quando as expectativas exageradas não se cumpriram, o dinheiro para pesquisas começou a minguar e a IA passou a viver em estado quase vegetativo.
É certamente possível que estejamos vivendo uma repetição desse ciclo. Mas a IA de hoje é muito diferente da primeira onda. Naquela época, os cientistas tentavam descobrir regras gerais sobre o pensamento humano para criar algoritmos. Agora, a capacidade de análise é tão grande que se aposta em máquinas capazes de se adaptar quando confrontadas com novos dados.
Isso não quer dizer que o futuro das máquinas inteligentes esteja garantido. O bilionário Peter Thiel (que foi sócio de Musk no PayPal) acredita que os grandes saltos de IA se darão nas áreas em que as máquinas colaboram com os seres humanos, não nas que elas o substituem.
A ideia de investir em cyborgs veio para Musk depois de uma conversa com Demis Hassabis, um dos pesquisadores que lideram o campo da IA, alguns anos atrás. Desde então Musk encasquetou que devia fazer algo para pelo menos dar uma chance à humanidade, no futuro.
Se isso não der certo, Musk tem o seu plano B. Claro, plano B, para alguém como Musk, não é trocar de carreira ou morar em algum lugar distante. Ou melhor, é, mas não o lugar distante que você ou eu pensaríamos. O plano B de Musk para a humanidade é seu projeto de colonizar Marte. Foi para isso que criou a Space X. Quando ouviu esse argumento, Hassabis retrucou que as máquinas nos seguiriam até lá.