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Made in Brás

Como os jeans femininos colocaram o tradicional bairro paulistano no circuito internacional do turismo de compras

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

Desde o fim dos anos 90, dois dos produtos de exportação de maior sucesso no Brasil são as top models e as calças jeans femininas produzidas no Brás, bairro da região central de São Paulo. The new brazilian cut jeans (o novo corte brasileiro de jeans) é a expressão adotada pelo circuito da moda internacional para definir o estilo arrojado das calças de cintura baixa confeccionadas em tecido aderente com aparência exclusiva graças a bordados, aplicações ou rasgões. A bandeirinha brasileira costurada nas etiquetas das marcas pode ser encontrada na sofisticada loja de departamentos Bloomingdales, em Nova York, em bancas de feiras livres em Luanda, nas butiques exclusivas da ilha grega de Mikonos e praticamente em todas as cidades da Venezuela -- os maiores e mais fiéis compradores.

Difícil é distinguir no emaranhado de artigos de algodão, como bermudas, shorts e jardineiras, o que corresponde às calças femininas. Nas estatísticas da Cacex todas essas mercadorias estão agrupadas num só código, e os resultados são apresentados em peso. Foram 3,3 toneladas no ano passado, avaliadas em 38 milhões de dólares. O jeans feminino pesa pouco, cerca de 500 gramas, mas tem valor agregado muito alto por ser trabalhado no corte, com lavagens, bordados e aplicações. "A formação do preço deve sempre ser a primeira preocupação de quem vai exportar" afirma Milson Januário, diretor da Custom, consultoria que presta assessoria a exportadores. Cada peça alcança, em média, de 16 a 20 dólares, aí incluídos o lucro do fabricante e todas as taxas. O preço de custo para exportação varia de 5 a 10 dólares, bem inferior, por causa dos impostos, ao do produto comercializado no país. Além disso, o que muitos comerciantes chamam de exportação são na verdade "vendas para o exterior". Esse procedimento, às vezes uma simples operação de remessa que pode ser efetuada pelo correio -- desde que não ultrapasse 10 000 dólares --, aumenta consideravelmente as estatísticas de exportação, que em épocas favoráveis chega a representar 25% da produção dos fabricantes de jeans.

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Os empresários do Brás emudecem quando o assunto é o desempenho de vendas. Com os recentes episódios de seqüestros na região, a justificativa é sempre segurança. Uma ameaça que afeta os negócios em vários níveis e acaba gerando custos inimagináveis até poucos anos atrás: pagar escoltas, seja para funcionários extras vigiarem as ruas, seja para proteger os clientes e suas compras. Além de contratar batedores para acompanhar a mercadoria a ser exportada até aeroportos e navios (a maioria dos seguros só vale a partir do embarque).

São cerca de 300 empresas dedicadas à produção de artigos de jeans. Só na rua Maria Joaquina há 28 lojas concentradas em 400 metros de calçadas. A Bivik, uma das maiores, chega a abrigar estoque de 250 000 peças numa área de 2 600 metros quadrados, onde circulam 80 vendedores para atender clientes que compram de 10 000 a 20 000 peças por dia. "O mercado atacadista responde por 30% dos negócios da região", afirma Walter Zucolin, presidente da Associação dos Comerciantes do Brás (Acob). "É o que dá sustentação ao comércio do bairro." Os principais clientes são os sacoleiros -- vindos de diferentes partes do país de mês em mês, compram 40% do volume. Quem não pode vir pessoalmente tem a opção de escolher pela vitrine eletrônica. A maioria das marcas hoje possui o próprio site na internet.

O movimento dos ônibus de excursão soma-se ao dos ruidosos carrinhos de entregadores que disputam lugar nas calçadas apinhadas de camelôs. Andar pelas ruas do bairro é uma experiência de forte impacto visual. O contraste entre as modernas e bem planejadas vitrines da rua Miller, a maioria de proprietários coreanos ou chineses, e as lojas antigas e despojadas de luxo mas lotadas de fregueses da rua Oriente resume o atual espírito de um Brás que reúne diferentes etnias, além do forte sotaque nordestino conferido pela grande concentração de migrantes, que têm uma associação própria, um jornal e uma emissora de rádio. Uma imagem muito típica das ruas do Brás é a presença dos ônibus de turismo de compras que trazem diariamente milhares de revendedores de cidades e estados vizinhos de São Paulo. Ao observar que os motoristas e passageiros ficavam pelas calçadas e não dispunham de banheiros nem um espaço adequado para descansar das longas horas da viagem, a empreendedora Ivete Portioli teve a idéia de criar a Parada Obrigatória. Reformou, próximo da rua Oriente, um antigo prédio, que conta com cabines de descanso banheiros com chuveiros, lanchonete e guarda-volumes, entre outras conveniências.

Bater perna nas ruas ainda é um exercício praticado pela maioria das revendedoras de moda. Mesmo com a presença de shopping centers especializados em atacados, como o Pólo Moda e o Fashion Brás, a prática de olhar vitrines e bancas de rua, pesquisando preços e pechinchando, continuará atraindo milhões de clientes para o bairro cantado por Adoniran Barbosa.

Meca dos sacoleiros

O ramo de confecções continua sob domínio da comunidade árabe, que detém, segundo dados da Acob, metade dos estabelecimentos e continua atraindo imigrantes para o Brasil. Um deles é o libanês Toufik Bordokan. Engenheiro eletrônico, ele trabalhava numa empresa de informática na Itália antes de vir fabricar jeans com o irmão, em 1998. Sua marca Roberts tem um site moderninho na internet que contrasta com as instalações conservadoras da loja. "É preciso diminuir custos e investir onde realmente interessa, que é qualidade e bom preço", afirma Bordokan.

Nos tempos de dólar barato, Miami e Nova York lideravam a rota do turismo de compras realizada regularmente por brasileiros que buscavam o sonho de consumo americano com roupas de grife. Hoje, com a moeda americana em alta, São Paulo é que virou a meca dos sacoleiros -- não só da América Latina mas até da África. Um conhecido vôo semanal procedente de Angola só se justifica, segundo Zucolin, pela vinda de revendedores que comercializam jeans com grande lucro na capital, Luanda.

Negócios pequenos com sacoleiros são sempre feitos à vista. Empresas que fazem exportações de grande porte também preferem pagamento adiantado quando não têm traders para cuidar das operações de fora. Esses profissionais são parentes ou amigos indicados por conhecidos. "Gente de confiança com quem se pode contar", diz o empresário João Mustafá, dono da etiqueta Darok. Mustafá segue a tradição familiar dos bisavós, que há mais de um século já comercializavam tecidos em Jerusalém.

Ter familiares e amigos no exterior, comum em povos com tradição migratória como os libaneses, ajuda muito na hora de exportar. Mas Mustafá contou mesmo foi com a sorte de encontrar clientes venezuelanos dispostos a divulgar sua marca no exterior. No ano passado, com a mãozinha de amigos em Miami, chegou a fechar encomendas que somaram 70 000 peças. "Só não vendemos mais por causa das complicações que se seguiram aos atentados de 11 de setembro", diz Mustafá. Tempos atrás, ao levar amostras de jeans para possíveis interessados de uma butique em Miami, ele conta ter sido seguido na rua por uma freguesa disposta a pagar o que ele quisesse por todas as calças do mostruário.

Algumas empresas de grande porte têm o próprio departamento de comércio exterior. É o caso de uma das maiores exportadoras de jeans, a Sawary. Há sete anos no mercado, os últimos três exportando, a Sawary possui representantes em vários países. "Ter uma estrutura e pessoas confiáveis é o que nos credencia a negociar com varejistas americanos do porte de Bloomingdales e Nordstrom. São clientes cobiçados, mas muito exigentes", afirma Milledi Khoury. Com a mesma estratégia, a Sawary também conquistou mercados europeus como Itália, Espanha e Grécia, onde butiques da badalada ilha turística de Mikonos vendem seus tops, calças, saias e bermudas há mais de um ano.

Os preços atraentes do Brás têm explicação. Além do baixo investimento em instalações físicas, poucas marcas se preocupam em contratar estilistas profissionais ou em conduzir pesquisas de tendências. A produção variada que desafia a imaginação é possível graças ao jeitinho brasileiro. "Todo mundo copia todo mundo", afirma o empresário Charles Arkalji, associado ao irmão na New Max. Uma das maiores empresas da região, a confecção ocupa um prédio de três pavimentos e reserva 20 000 metros quadrados só para acomodar os estoques de matéria-prima e a área de procedimentos de pré-produção -- movimentada por equipamentos CAD de última geração capazes de gerar até 20 novos modelos por dia entre calças, jaquetas e outras peças, de diferentes tamanhos. Fundada há 30 anos, a New Max só nos últimos quatro passou a trabalhar com jeans feminino. Com apenas um ano e meio de exportações, já embarcou 30 000 peças jeans numa única remessa para os Estados Unidos.

Das calçadas e contatos pessoais, os empresários descobriram as feiras internacionais de moda e varejo, como a Femme Fashion, em Nova York, e outras em Las Vegas e Miami, que colocam fabricantes e vendedores em contato direto. Segundo o empresário Toni Koury, da Bivik, uma das razões do sucesso do jeans brasileiro deve-se à qualidade de nosso denim e a um pequeno, mas poderoso, detalhe: os 2% a 3% de lycra que proporcionam o ajuste perfeito dos modelos femininos. "Os compradores americanos se encantavam com nossos produtos", diz Arkalji. "Faziam encomendas de 50 000, 60 000 peças para ser entregues no prazo de um mês."

Em busca de preços competitivos, os empresários do Brás acabaram por adotar caminhos alternativos para reduzir os custos de produção. A terceirização da mão-de-obra em outras praças foi a prática adotada pela maioria das confecções. É uma ironia à história do Brás, que no início do século passado abrigou grandes tecelagens e sempre teve como marca registrada a presença das confecções de pronta entrega. "O formato loja na rua e oficina nos fundos ou no andar superior, onde também ficavam o estoque, praticamente desapareceu", diz Zucolin.

No Brás, atualmente, ficam apenas os profissionais qualificados para operar as ferramentas de CAD que processam os moldes e orientam os cortes computadorizados com excepcional aproveitamento de matéria-prima e extrema precisão de modelagem. Lotes de peças cortadas seguem para o interior e até para outros estados, como Paraná e Minas Gerais. São então costuradas por profissionais de pequenas cidades beneficiadas por políticas de subsídios e vantagens como cooperativas e isenção de tributos que tornam compensadores o frete de caminhões e até de aviões.

Também são terceirizadas as lavanderias e tinturarias especializadas que desenvolveram técnicas especiais para atender às peculiaridades dos jeans brasileiros: a lavagem capricha no "sujinho" e a tintura deve "desbotar" no tom ideal. Sem falar que a "qualidade dos rasgões" deve respeitar normas rigorosas. Quem não é do ramo pode estranhar o jargão das confecções. Assim como hoje a moda é a calça com aparência de velha e usada, é preciso estar pronto para atender com grande velocidade a qualquer alteração no gosto do freguês.

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