WINTERKORN, EX-CEO DA VOLKS, DEPÕE EM BERLIM: não é à toa que as companhias automobilísticas queiram se distanciar do estigma da Volks / Hannibal Hanschke/ Reuters
Da Redação
Publicado em 19 de janeiro de 2017 às 11h53.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h21.
David Cohen
Nos últimos 16 meses, a Volkswagen tem sofrido as consequências de ter cometido o pior caso de fraude da indústria automobilística, com a instalação de um software em 11 milhões de carros com motor a diesel para ludibriar os testes de emissão de poluentes. E esse inferno astral ainda parece longe de acabar: no dia 12 de janeiro, a empresa aceitou pagar 4,3 bilhões de dólares de multas, civil e criminal, ao governo dos Estados Unidos.
É a maior multa já aplicada pela Justiça americana a uma montadora. Bem acima da Toyota, que teve um problema de aceleração involuntária de carros e fez um acordo de 1,2 bilhão; e da GM, cujo defeito na ignição de alguns modelos levou a uma indenização de 900 milhões de dólares.
Mas, se até este mês a Volks parecia um pária da indústria, ela agora já não parece mais tão sozinha na adoção de práticas de enganar a regulação ambiental. Em apenas dois dias na semana passada, surgiram dois novos casos: as autoridades francesas anunciaram que estão investigando a montadora Renault por uma possível fraude nos testes de controle de poluição, “com a consequência de tornar os veículos perigosos para a saúde de pessoas e animais”; e nos Estados Unidos a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) acusou a Fiat Chrysler de fraudar os testes de emissão de carros a diesel, por meio de um software instalado em vários de seus modelos.
As duas companhias negam que tenham feito qualquer coisa errada. A Renault repetiu declarações feitas em agosto, quando uma investigação preliminar concluiu que alguns de seus modelos emitiam até dez vezes mais do que o nível permitido de dióxido de nitrogênio (NO2). Na ocasião, a Renault afirmou que o problema pode ter sido causado por um “erro de calibragem” em um sistema antipoluição, e não por um software especialmente construído para fraudar testes.
A reação da Fiat/Chrysler foi ainda mais peremptória. Segundo a notificação da EPA, a companhia alterou um software nos modelos Jeep Cherokee e Dodge Ram de forma a aumentar a poluição do ar com emissões de óxidos de nitrogênio durante os últimos três anos.
Na nota oficial, a Ford/Chrysler se disse “desapontada” com a notificação, e afirmou acreditar que seus sistemas de controle de poluentes atendem as exigências da lei americana. Mas seu CEO, Sergio Marchionne, foi menos político: “Qualquer um que compare o caso da Fiat com o da Volkswagen é porque fumou alguma substância ilegal”.
Segundo Marchionne, “nunca houve intenção de criar as condições para fraudar o processo de teste de emissões. Isso é um absurdo completo.”
Os mercados financeiros também reagiram. As ações da Renault caíram 4%, e recuperaram cerca de 2% nos dias seguintes. As da Fiat/Chrysler, que vinham subindo a um ritmo considerável, caíram 17%, voltando ao patamar dos primeiros dias do ano.
Um castigo bilionário
Não é à toa que as companhias automobilísticas queiram se distanciar do estigma da Volks. Com a multa deste início de ano, o prejuízo da montadora alemã com o caso chegou a 20 bilhões de dólares (incluindo os acordos de indenização feitos no ano passado com associações de consumidores).
E esta é a conta só nos Estados Unidos. Dos 11 milhões de carros em que foi implantado o software fraudador, apenas cerca de 500 mil foram vendidos no mercado americano. A ameaça de processos em outros países é menor, porque a legislação europeia é menos rígida na questão dos poluentes, mas nada desprezível.
No Reino Unido, um grupo de 10.000 proprietários de veículos da Volks entrou este mês com uma ação contra a montadora, pedindo indenização de 3.700 dólares para cada um. O argumento é que eles pagaram mais caro por carros que julgavam ser menos nocivos ao ambiente. Se a Justiça der ganho de causa a eles, a Volks pode ter de desembolsar 4,5 bilhões de dólares (são 1,2 milhão de proprietários de carros afetados no país).
Além dos custos diretos de indenização, a Volks está sofrendo os danos à sua imagem. No mercado americano, aquele em que mais apostava para ultrapassar a Toyota e se tornar a maior montadora do mundo, suas vendas caíram 7,6%. A rentabilidade também caiu: a empresa lucra em média 800 dólares por veículo, cerca de metade do resultado da Toyota e da General Motors.
E há ainda o risco de prisão. A Justiça americana indiciou seis funcionários da empresa. Todos moram na Alemanha, mas um deles, Oliver Schmidt, o chefe de conformidade regulatória (compliance), estava nos Estados Unidos e foi preso este mês no aeroporto de Miami, quando se preparava para voltar para casa. Schmidt é acusado de ter dado explicações falsas para o alto nível de emissões descoberto nos testes de 2014, e só admitiu a existência de um software para ludibriar o sistema depois que o escândalo estourou, em setembro de 2015.
Os seis funcionários também são acusados de ter destruído evidências da fraude para obstruir as investigações. Embora sejam altos funcionários, nenhum deles é da direção ou do conselho da empresa, o que levou a críticas de que os principais executivos tenham se livrado da responsabilidade. Mas a Justiça alemã ainda pode processar o CEO da Volks na época do escândalo, Martin Winterkorn.
A janela térmica
Os novos casos de suspeitas de fraude para burlar as regras ambientais surgiram em parte por causa do escândalo da Volkswagen. Dado o nível da falcatrua engendrada pela montadora, autoridades reguladoras começaram a investigar mais a fundo os testes de emissões.
A ministra do meio ambiente da França, Ségolène Royal, montou uma comissão para averiguar as emissões de 52 carros de montadoras francesas e estrangeiras em condições normais de uso (o golpe da Volks era que seu software identificava quando o carro estava em testes, e nessa hora reduzia as emissões, mas no dia a dia privilegiava a potência do motor, produzindo os poluentes que os cientistas vinculam a dezenas de milhares de mortes por ano).
Nas ruas, a maioria dos veículos testados emitia até cinco vezes mais poluentes do que nos testes. Não chega a ser um escândalo do tamanho da Volks, cujas emissões em uso real eram até 35 vezes maiores do que nos testes, mas acendeu um sinal de alerta. A legislação francesa tolera uma variação de até o dobro de poluentes do que nas condições de teste (um limite que deve cair para 50% a mais, até 2023).
A Renault parece ter sido o caso mais grave – daí a abertura de uma investigação formal. Mas nada garante que outras montadoras não estejam na mira das autoridades.
A situação da Fiat/Chrysler nos Estados Unidos é parecida. Autoridades escaldadas pelo caso Volks passaram a prestar mais atenção às emissões dos carros em uso normal. Foi isso o que levou a EPA a acusar a empresa de usar um software que reduz as emissões durante os testes, mas permite emissões mais elevadas durante o uso real dos compradores.
A EPA afirma ter autoridade para forçar a companhia a fazer um recall dos modelos Cherokee e Ram produzidos em 2014, 2015 e 2016, 104.000 veículos no total, mas diz não ter se decidido ainda. A EPA também diz que as multas poderiam chegar a 44.500 dólares por veículo, um total de 4,6 bilhões de dólares.
O caso parece ser o mesmo da Volks (software para ludibriar os testes), mas há uma diferença crucial: na montadora alemã, o software foi desenvolvido especialmente para fraudar as regras rígidas das autoridades ambientais. Já a Fiat/Chrysler e a Renault (assim como praticamente todas as montadoras) parecem ter apenas “esticado” um pouco as regras de testes.
Ocorre que as regras permitem o uso de programas destinados a proteger o motor de danos, em geral desligando os controles de emissão de poluentes em situações específicas. Isso acontece especialmente em climas frios: nessas condições, desligar o controle de emissões até o motor aquecer reduz o risco de condensação nos motores, que pode provocar ferrugem e reduzir a eficiência do carro e dos próprios controles de poluentes.
O problema é que essa permissão cria uma zona cinzenta na legislação. Há até um termo para os limites do uso desses softwares que desligam os controles de emissão de poluentes: “janela térmica”.
Autoridades regulatórias de vários países dizem que as montadoras têm exagerado no uso da janela. Investigadores alemães afirmam que algumas empresas definem sua janela de tal modo que os controles de poluentes ficam desligados quase todo o tempo. A grande questão para os reguladores é quando uma janela térmica se torna um mecanismo de fraude.
A janela moral
Com todos os cuidados que se deve ter antes de acusar alguma empresa de cometer atos ilícitos, e com toda a distinção que existe entre trafegar numa zona cinzenta da legislação e utilizar deliberadamente um sistema para enganar a lei, não seria de estranhar que a corrupção se manifestasse não como uma única maçã podre em uma cesta, e sim como um espectro de moralidade, com exemplos ao longo de toda a sua extensão.
Nos últimos anos, vários estudos vincularam a corrupção ao ambiente em que ela acontece. Especialistas costumam apontar dois mecanismos mentais que servem para justificar ações moralmente condenáveis – ambos ligados à competição.
O primeiro mecanismo é uma espécie de benchmark ao contrário: a adoção das piores práticas. É essa a primeira explicação das construtoras envolvidas no escândalo da Lava Jato, por exemplo: “todo o mundo pagava propina, o mercado funcionava assim”.
É o que declararam executivos da Siemens, envolvida num dos maiores escândalos do mundo de pagamento de propinas para vencer licitações. Alimenta-se, na empresa, a percepção de que só é possível competir usando as mesmas armas que os concorrentes.
O segundo mecanismo é uma consequência da concorrência extrema, em que muitas vezes os fins passam a justificar qualquer meio. Essa cultura foi exacerbada na Volks quando Winterkorn assumiu o comando, em 2007, e promulgou um plano para que a montadora assumisse a liderança mundial do setor até 2018.
Um estudo de 2012, feito por pesquisadores de negócios das universidades do Sul da Califórnia, de Washington, da Califórnia em Los Angeles e de Harvard, mostrou que a competição pode beneficiar o consumidor – mas também favorece a corrupção.
Coincidentemente, os pesquisadores escolheram o mercado de testes de emissão de poluentes para demonstrar sua tese. Em Nova York, as oficinas podem se cadastrar para atestar se o carro está de acordo com as normas ambientais. Acontece que as oficinas que reprovam um carro correm mais risco de perder o cliente em serviços mais caros, como consertos ou manutenções regulares.
Os autores do estudo demonstraram que as oficinas que tinham vários concorrentes nas proximidades eram muito mais lenientes na aplicação dos testes do que as oficinas em locais mais isolados.
Do ponto de vista das montadoras, as regras ambientais são um incômodo – porque os consumidores valorizam a potência do motor. Cumprir as regras é percebido como uma desvantagem, especialmente quando você não tem certeza se os demais as estão cumprindo. Some-se a isso a brusca mudança nas regras (graças à conscientização ambiental) e as diferenças de legislação em diferentes países (a Volks queria conquistar o mercado americano, onde as leis são mais draconianas), e tem-se uma tentação de burlar, ou pelo menos andar alguns passos a mais dentro da zona cinzenta.
Para um ambiente competitivo como o da indústria automobilística, só há três caminhos para assegurar o sucesso de uma legislação ambiental: alguém desenvolver uma tecnologia revolucionária que preserve a potência dos motores sem as emissões poluentes; as agências montarem um sistema implacável de vigilância e punição de malfeitos; ou os consumidores (nós todos) passarem a dar mais importância à saúde pública e ao meio ambiente do que à velocidade com que uma carroça de metal vai de zero a cem quilômetros por hora.