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A Netflix e a magia da Disney

Algumas crianças param de acreditar nos personagens da Disney aos 5 anos. Outras aos 6 ou 7. Mas os investidores não duvidam nunca do poder de sua varinha de condão. Bastou a Netflix anunciar na terça-feira 24 um acordo de exclusividade com os estúdios Disney para que suas ações – até então amargando uma queda de […]

(Star Wars/Divulgação)
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Da Redação

Publicado em 26 de maio de 2016 às 16h15.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h57.

Algumas crianças param de acreditar nos personagens da Disney aos 5 anos. Outras aos 6 ou 7. Mas os investidores não duvidam nunca do poder de sua varinha de condão. Bastou a Netflix anunciar na terça-feira 24 um acordo de exclusividade com os estúdios Disney para que suas ações – até então amargando uma queda de cerca de 15% no ano – recuperassem 5,6% do valor em dois dias, chegando aos 100 dólares.

Mais do que isso. Apenas um mês atrás, o analista David Trainer afirmava, no site da revista Forbes, que as ações da Netflix valiam no máximo 58 dólares. Sendo rigoroso, pouco mais do que 30. Outro analista, Carlos Kirjner, da firma de investimentos Sanford C. Bernstein, era um pouco mais generoso: dizia que as ações ainda podiam perder um terço de seu valor, para 62 dólares. Alguns tantos mantinham sua recomendação “neutra” (nem compre nem venda). E havia, claro, os analistas que ainda professavam fé na companhia. Mas, na média, o cenário era pessimista.

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Como cantava Dinah Washington, que diferença faz um dia (“curtas 24 horas trouxeram o Sol e as flores onde antes só havia chuva”). De um momento para outro, uma multidão de analistas elevou suas projeções para o valor da Netflix. Mark Mahaney, da RBC Capital Markets, estimou que a ação da companhia pode bater em 200 dólares, o dobro da cotação atual, dentro dos próximos quatro anos. Entre os mais moderados, há um certo consenso de que, até o fim do ano, ela atinja 120 dólares, 20% de valorização.

A ajuda dos super heróis

A virada da expectativa foi construída quatro anos atrás. Em 2012, Reed Hastings, fundador da empresa, fechou um acordo de licenciamento com a Disney que faria da Netflix a única distribuidora de seus filmes em streaming (transmissão via internet). Mas o tempo passou, ninguém se lembrava mais disso… até que a Netflix postou em seu blog que o acordo passa a vigorar em setembro.

Isso significa que, para assistir pela internet os filmes de princesas, a saga de Star Wars, os heróis da Marvel ou os desenhos da Pixar o único caminho é a Netflix. E isso inclui os lançamentos de Capitão América, Procurando Dory, os próximos capítulos da saga de Guerra nas Estrelas… É uma vantagem e tanto sobre os competidores que surgiram nos últimos anos: Amazon Prime, Google Play, Hulu, até mesmo o serviço de streaming da HBO.

Não que as reservas que existiam quanto à empresa fossem infundadas. O que os analistas mais rigorosos enxergavam era uma tremenda dificuldade de seguir dois caminhos simultaneamente: o da quantidade e o da exclusividade. A Netflix despontou para o sucesso com a fórmula de oferecer um catálogo abrangente de filmes. Com o tempo, porém, a concorrência surgiu e tornou necessária uma diferenciação. Daí veio a estratégia de produzir conteúdo próprio.

A frase que definiu essa mudança de foco foi dita pelo executivo-chefe de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos, em 2013: “nosso objetivo é nos transformar na HBO antes que a HBO se transforme na gente”. A HBO, uma distribuidora de filmes premium, de fato corre na direção do streaming, porque a internet é o canal que mais cresce em audiência. E a Netflix corre na direção oposta, de virar uma marca mais sofisticada, capaz de merecer a fidelidade de seus assinantes.

O problema é que o dinheiro não é suficiente para negociar contratos de licenciamento de filmes e ao mesmo tempo investir em produção própria. A Netflix teve alto sucesso com suas séries e filmes: agradaram tanto a crítica, que lhe deu cobiçados prêmios desde sua primeira série, House of Cards, quanto o público. Mas nos últimos dois anos e meio seu catálogo de filmes encolheu em um terço, segundo o site All Flicks, que cobre a Netflix.

A outra grande dúvida sobre a empresa era sua capacidade de aumentar o preço da assinatura sem perder clientes. Ela precisa fazer isso para conseguir lançar mais conteúdo original, mas corre o risco de perder sua maior vantagem, a alta relação de custo-benefício percebida por sua base de assinantes.

O equilíbrio é precário: até agora, a empresa tem se financiado com dívida e pagado suas estrelas em parte com opções de ações (que são também uma espécie de dívida). Se seu valor de mercado cair, ela pode entrar num círculo vicioso de perder talentos, perder mais valor, perder capacidade de produzir conteúdo e assim por diante.

A Disney trouxe os óculos

“É difícil enxergar como a Netflix pode se diferenciar o suficiente da concorrência para cobrar os preços mais altos de que necessita para gerar os lucros já embutidos no valor de 98 dólares de suas ações”, dizia Trainer, em sua análise em abril.

Não mais. Com os óculos do acordo com a Disney, ficou mais fácil enxergar que a Netflix terá à mão um conteúdo especial. E exclusivo. Não só sua crescente produção própria – a companhia planeja 600 horas de conteúdo original este ano – mas a valorizadíssima coleção da Disney, incluindo Marvel e Pixar.

De repente, a percepção de que seria difícil expandir sua base 82 milhões de assinantes globais a uma taxa que alegrasse os investidores se transformou na percepção de que o número de clientes pode chegar a assombrosos 180 milhões em 2020, conforme a previsão de Mahaney, da RBC.

Bem que Sarandos, o chefe de conteúdo da HBO, avisou. O caminho da Netflix seria tornar seu conteúdo premium – e a empresa chegou lá. Quem se importa de ter 5.532 títulos nos Estados Unidos, em vez dos 8.103 de 2014? Para que perseguir a cauda longa da procura por filmes antigos, se você pode ter os filmes que todo mundo – todo mundo – quer ver? Os analistas agora acreditam que não apenas o crescimento da base ficou mais provável, mas também aumentou o seu potencial de aumentar preços.

O acordo foi anunciado em um momento estratégico. A Netflix aumentou seus preços em mais de 20% no ano passado, mas manteve congelada a tarifa dos assinantes antigos. (Era um sinal do temor de perder sua base, mas pelo menos em parte a decisão tem a ver com respeito aos seus consumidores. Isso pode ser visto pela facilidade concedida a quem quiser cancelar a assinatura, com apenas um toque.) Agora que chegou a hora de elevar os preços dos assinantes antigos, a isca de conteúdo da Disney vem a calhar.

Futuro garantido?

Olhando de trás para a frente, é tentador dizer que o sucesso da Netflix era previsível. Ela tinha um modelo de negócios “disruptivo”, para usar o termo disseminado pelo professor de Harvard Clayton Christensen, em seu já clássico livro O Dilema do Inovador.

Mas a história é bem mais complexa, como mostra Joshua Gans, no livro The Disruption Dilemma, lançado em março. A Netflix nasceu em 1998 como uma locadora normal, embora entregasse seus filmes por correio em vez de manter lojas. Quando começou o serviço de streaming, em 2007, ainda entregava DVDs. A Blockbuster, maior locadora dos Estados Unidos, também fazia entregas por correios, e também começou a experimentar streaming, mas temeu canibalizar seu negócio mais rentável. A história poderia ter sido diferente se ela tivesse tomado uma decisão diferente.

Da mesma forma, a Netflix saiu com a vantagem de primeira do mercado, mas seus competidores não são fracos. A HBO tem uma produção de qualidade ainda superior à da Netflix; a Amazon tem a alavancagem de um serviço de compras (o associado Prime tem frete grátis no país e garantia de entrega da maioria dos produtos em dois dias… e os vídeos são um benefício extra); o Google tem a base de aparelhos Android. E há os vários outros serviços concorrentes, que pressionam os preços para baixo.

Por isso, mesmo com o acordo com a Disney, é arriscado dizer que o futuro à Netflix pertence. Uma de suas vantagens, porém, é que seu modelo é verdadeiramente global. Cerca de 40% de sua base de assinantes é de fora dos Estados Unidos. O Brasil, por exemplo, tem por volta de 4 milhões de clientes, segundo estimativas de mercado. Mesmo com a crise, Hastings afirmou recentemente que a empresa “está crescendo como um foguete” no país.

No início deste ano, a Netflix adicionou mais 130 países à sua área de atuação (eram cerca de 60 até o ano passado). “Vocês estão vendo o nascimento de uma rede mundial de TV por internet”, disse Hastings, na feira de eletrônicos CES.

Sua produção é também globalizada. Este mês, a Comissão Europeia, um comitê de trabalho da União Europeia, propôs uma lei que obrigue os serviços de streaming a ter pelo menos 20% de conteúdo local em seu catálogo. É uma determinação que já vigora para as televisões, e não deve assustar a Netflix. A empresa diz que não gosta de cotas, mas já tem investido em produções locais. “Nossos clientes em todo o mundo adoram a programação europeia, por isso nosso investimento em filmes e séries europeus, incluindo títulos originais feitos na Europa, está crescendo”, disse um porta-voz da companhia.

Não só na Europa. Em abril, ela também anunciou uma série baseada nas investigações da Operação Lava-Jato, dirigida por José Padilha. Essa expansão global é uma das armas da Netflix para melhorar sua rentabilidade e seu caixa. Para isso, obviamente, é preciso que a base de assinantes cresça. A Disney é um grande auxílio.

(David Cohen)

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