Para entender: os protestos na Turquia
Depois de tentativa de golpe, presidente aprovou reforma política que altera o sistema do país para presidencialista, ganhando mais poderes
Carolina Riveira
Publicado em 15 de julho de 2017 às 08h59.
Última atualização em 15 de julho de 2017 às 15h20.
Há um ano, no dia 15 de julho, milhares de turcos reuniam-se na Praça de Yenikapi, em Istambul, para celebrar o fracasso de uma tentativa de golpe militar contra o presidente Recep Tayyip Erdogan, por acreditarem ter visto a resistência contra insurgentes que queriam tomar o poder à força.
Um ano depois, a mesma Istambul foi palco, no último fim de semana, da “Marcha da Justiça”, uma passeata que reuniu um milhão de pessoas nas ruas da cidade, para clamar por justiça e direitos após prisões, demissões e mudanças na lei questionáveis impostas por esse mesmo governo.
Na Turquia, já são mais de 100.000 pessoas sob investigação e 50.000 presas por motivos políticos, incluindo funcionários públicos, jornalistas e acadêmicos — 7.000 só na última sexta-feira. Erdogan acusa os seguidores do teólogo e educador Fethullah Gulen, exilado nos Estados Unidos desde 1998 e inspirador do movimento por harmonia e diálogo Hizmet, de serem responsáveis pela tentativa golpe, e vem apertando a repressão no país, alegando ser necessário manter um “estado de exceção”, para evitar futuros ataques à democracia.
Em abril, o presidente também conseguiu aprovar uma reforma política que altera o sistema do país de parlamentarista para presidencialista e, consequentemente, conquistou mais poderes.
Há uma série de controvérsias sobre os acontecimentos de 15 de julho de 2016. O golpe, visto como desarticulado e mal planejado, faz alguns levantarem suspeitas de que o próprio Erdogan teria ordenado o levante, para justificar o aumento da repressão que viria depois.
E com toda a incerteza gerada pelo golpe, a escalada autoritária de Erdogan vem gerando críticas de outros governos. O sonho de entrar na União Europeia já ficou para trás.
Os protestos do último fim de semana contra as medidas adotadas pelo governo de Erdogan foram organizados por Kemal Kilicdaroglu, líder do CHP, partido mais tradicional da Turquia e que vem se tornando uma das principais vozes de oposição.
Mas, para o professor Simon Waldman, especialista em Turquia no Departamento de Estudos do Oriente Médio e Mediterrâneo da King’s College de Londres, os protestos não necessariamente pedem a saída do presidente, mas simbolizam uma insatisfação com as injustiças que vêm sendo cometidas. “As coisas ficaram piores nos últimos anos. Todo mundo na Turquia conhece alguém que foi afetado pelo Estado de emergência, de um jeito ou de outro”, diz.
A força dos muçulmanos
Erdogan tornou-se primeiro-ministro pela primeira vez em 2003, e sua ascensão está fortemente ligada a de seu partido, o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento). A legenda, de orientação islâmica, cresceu no cenário político turco no início dos anos 2000, tornou-se a primeira a conseguir maioria parlamentar e governar sem precisar de uma coalizão. Isso porque 99% da população turca é muçulmana, sendo 75% de sunitas, corrente mais moderada do Islã.
Claro que desconfiança não falta, porque os turcos defendem com unhas e dentes seu Estado laico e secular. Existe sempre o medo de que a Turquia, situada no meio do caminho entre o Oriente Médio e a Europa, termine como o Irã, comandado por governantes religiosos desde a Revolução Islâmica no país em 1978.
Mas o AKP tem conseguido convencer a todos de que sua base islâmica não iria influenciar a política — assim como acontece, por exemplo, com os democratas cristãos, partido da chanceler alemã Angela Merkel.
“Foi fortalecida a imagem do chamado ‘modelo turco’, em que um partido islâmico pode conviver num estado secular e fazer o país crescer”, diz Willian Moraes Roberto, especialista em relações contemporâneas da Turquia e pesquisador do programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP.
Mas não só de partido se faz um governo. É indiscutível o carisma de que dispõe o próprio presidente — como há de ser com todo bom líder populista.“O Erdogan faz a população se identificar com ele. Ele é esse menino que veio de um bairro pobre e religioso. Ele é como um turco comum”, explica o professor Waldman, da King’s.
Além disso, ao pregar o estado laico e a estabilidade das instituições, Erdogan ganha força inclusive com classes mais abastadas. “O apoio ao Erdogan não vem somente das classes baixas, mas de muita gente. Todo mundo tem medo que voltem os governos de coalizão nos anos 1990, que traziam muita instabilidade e insegurança”, diz a pesquisadora turca Sevinc Bermek, que estuda comportamento do eleitorado turco também na King’s College de Londres.
Onde está a oposição?
Erdogan segue vencendo todas as eleições desde 2002. Das 550 cadeiras do Parlamento turco, o AKP tem 236, e governa atualmente em coalizão com o MHP (Partido de Ação Nacionalista), que tem 53 cadeiras e é amplamente nacionalista. O MHP antes era oposição ao AKP, mas viu no nacionalismo forte de Erdogan um aliado.
O parlamento turco vem sendo dominado por partidos conservadores desde a década de 1950, e a esquerda, que chegou a ser forte e próxima à antiga União Soviética, praticamente desapareceu.
O CHP (Partido Republicano do Povo), que organizou os protestos do último fim de semana, é um dos poucos partidos de oposição — e um dos mais tradicionais da Turquia. O partido sempre foi a favor do estadismo, anti-islâmico e com tendências militares.
Mas, desde os anos 1980, a legenda vem se tornando mais social-democrata para se mostrar como alternativa. “É claro que há muitos islâmicos insatisfeitos com o AKP, mas eles não viam no CHP uma oposição que dialogasse com eles”, diz Moraes, da PUC. “Isso vem mudando, mas o CHP ainda é o partido dos 25%. Não tem força para ganhar do Erdogan”.
Do outro lado da oposição, há o BDP (Partido da Paz e da Democracia), que jamais conseguirá apelar para uma grande parte da população — por ser apoiador dos curdos, grupo étnico que tenta conquistar independência no país. As relações desse grupo com o governo estão cada vez mais bélicas e, este ano, após uma mudança na lei que retirou a imunidade parlamentar, dois deputados do BDP foram presos.
Em 2015, o governo e os extremistas curdos do PKK (Partido de Trabalhadores de Curdistão) encerraram um cessar-fogo que já durava dois anos, e o PKK vem realizando diversos atentados desde então. “Na Turquia ainda há essa percepção de que a questão curda só pode ser resolvida por meios militares”, diz Simon, da King’s College. “Não estamos nem perto de um acordo de paz como o que aconteceu na Colômbia [com as Farc]”.
Com a repressão desenfreada do último ano, o apoio a Erdogan de fato vem diminuindo, e o país está dividido. Além dos protestos, o resultado apertado do referendo que aprovou a mudança do sistema político no país, que contou com apoio de 51,3% da população, mostra que os turcos já estão bem mais céticos em relação ao governo.
O problema é que a oposição no país está dividida — e vai ter que articular muito mais do que uma marcha para conseguir vencer Erdogan nas eleições de 2019.