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Os feitos e as contradições de Peres

David Cohen É de se esperar que alguém que chegue aos 93 anos tenha acumulado muitas experiências na vida. Também é de se esperar que, em tanto tempo, acumulem-se algumas contradições em sua história. Mas Shimon Peres exagerou, em ambas as contagens. Ele participou de praticamente todos os momentos cruciais da história de Israel, o […]

SHIMON PERES, EM 2013: um ator racional num palco onde as emoções reinam supremas / Baz Ratner/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 28 de setembro de 2016 às 20h02.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h28.

David Cohen

É de se esperar que alguém que chegue aos 93 anos tenha acumulado muitas experiências na vida. Também é de se esperar que, em tanto tempo, acumulem-se algumas contradições em sua história. Mas Shimon Peres exagerou, em ambas as contagens.

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Ele participou de praticamente todos os momentos cruciais da história de Israel, o país a que serviu duas vezes como primeiro-ministro, uma vez como presidente e uma dúzia de vezes como ministro das pastas de Informações, Defesa, Relações Exteriores e Finanças.

Sua morte, nesta quarta-feira 28, tira de cena o último membro do grupo de fundadores do Estado de Israel. Ele era também o último grande político não sabra (a designação comum para judeus nascidos em Israel, por analogia com um tipo de cacto que é espinhoso por fora e doce por dentro).

Em seus 82 anos na região, é natural que sua trajetória se confundisse com a própria história do país. Isso ocorreu de forma dúbia, porém: com seu sotaque de polonês, ele era considerado ao mesmo tempo uma espécie de estrangeiro e um símbolo da geração que formou o país.

Como disse Chemi Shalev, colunista do jornal israelense Haaretz, Peres nunca pareceu um israelense, nunca falou como um, nunca se comportou como um e nunca pensou como um. “Ele era um homem do mundo em um país que só vê a si mesmo, um conhecedor da nuança e da fineza tentando agradar entusiastas da bravata e do barulho, um ator racional num palco onde as emoções reinam supremas.”

Ele era também um político difícil de interpretar. No quesito da segurança, que divide a população israelense entre “pombas”, pró-concessões, e “falcões”, a favor da demonstração de força, foi considerado uma “pomba”, especialmente após ter liderado os acordos de Oslo, no início dos anos 90, que desenhavam um processo de paz com os palestinos – pelo qual ganhou um prêmio Nobel da Paz, em 1994, junto com Yitzhak Rabin e o líder palestino Yasser Arafat. Mas foi durante muitos anos um “falcão”. Seu próprio sobrenome foi escolhido durante uma viagem ao deserto de Neguev, quando seu grupo avistou um bando de águias – “peres”, em hebraico (embora o que o grupo tenha avistado, mais provavelmente, fosse uma espécie de abutre). O sobrenome original de Peres era Persky.

A viagem para o Neguev não era qualquer viagem. Como diretor-geral do Ministério da Defesa, a partir de 1953, ele estabeleceu ali uma usina nuclear secreta (Israel sempre negou ter armas nucleares). Peres foi o maior responsável pela estratégia nuclear: esteve envolvido até na contratação de engenheiros para o projeto.

Para além da divisão entre pombas e falcões, Peres era um pragmático – é até curioso que sua fama tenha se tornado mundial como um sonhador, um idealista. Logo no início de sua carreira, Peres se afastou dos sonhos socialistas dos luminares do movimento sionista, especialmente David Ben Gurion, de quem era protegido. Durante anos rejeitou o rótulo de social democrata para o Partido Trabalhista – mas acabou se tornando, em 1978, vice-presidente da Internacional Socialista.

Foi um grande defensor da ocupação de territórios palestinos a partir da guerra de 1967 – os mesmos que se esforçou por devolver, três décadas depois. Foi o ministro da Defesa que bancou o ousado resgate de reféns no aeroporto de Entebbe, em Uganda, em 1976, após terroristas palestinos terem sequestrado um avião da Air France e recebido acolhida do ditador Idi Amin Dada. Na ação, cerca de cem pessoas foram libertadas. Três reféns e um oficial israelense morreram (o oficial era o líder da operação, Yonatan Netanyahu, irmão mais velho do atual primeiro-ministro do país, Benjamin).

Foi também em sua gestão que o país resgatou 7.000 judeus etíopes que sofriam com a fome, perseguições religiosas e outras ameaças.
Mas foi ele quem ordenou, como primeiro-ministro, a operação Vinhas da Ira, que invadiu o Líbano em 1996 para acabar com o lançamento de mísseis contra Israel – possivelmente com motivações eleitorais (para parecer forte ao eleitorado). E foi sob sua gestão que o Exército israelense bombardeou, no mesmo ano, a cidade de Qana, no sul do Líbano, matando uma centena de civis.

No campo econômico, Peres tem um trunfo que soa familiar aos brasileiros. Em 1985, seu governo lançou um plano de combate à inflação nos moldes do Plano Real, feito anos mais tarde. A inflação caminhava para o patamar de 1.000% ao ano, e em menos de dois anos baixou para 20% ao ano. Entre as medidas tomadas estavam um acordo com os sindicatos para conter os salários, controle de alguns preços, desvalorização da moeda, câmbio fixo para que as importações coibissem aumentos de preço, proibição de o Banco Central emitir moeda para cobrir dívidas e um corte significativo nas despesas governamentais.

“Eu não mudei, a situação mudou”

Mas a marca de sua atuação política foi a defesa. Peres dizia que só tinha uma grande preocupação: garantir a segurança de Israel. É isso o que está por trás de sua aparente mudança de campo, de falcão para pomba.
“Não é que eu tenha mudado meu caráter”, disse ele certa vez à revista Newsweek. “É que a situação mudou”.

Seus esforços pela paz não foram apreciados por todos. “Para Peres, paz significava bombardear civis”, disse Diana Buttu, uma advogada que já foi porta-voz da Organização para a Libertação da Palestina. No entanto, o presidente palestino, Mahmoud Abbas, pragmático como Peres, reagiu no Twitter, em árabe: “a morte de Shimon Peres é uma grande perda para toda a humanidade e para a paz na região”.

Especialmente os israelenses rejeitaram sua busca pela paz. Em 1996, na esteira do assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin por um extremista judeu, Peres virou chefe de governo. Convocou eleições antecipadas, para aproveitar a comoção pelo assassinato, mas uma série de atentados a bomba fez os ânimos se exaltarem e Peres perdeu para Netanyahu.

Era sua quarta derrota (nas duas vezes em que foi primeiro-ministro, uma foi num governo de coalizão com o Likud, partido de direita, e a outra foi na sucessão a Rabin). A partir dela, Peres se metamorfoseou em uma figura além da política, um símbolo. Não à toa, o Parlamento o elegeu para o cargo honorífico de presidente, para um mandato de sete anos, encerrado em 2014. (Neste cargo, pode ter ajudado, com suas críticas, a cortar no nascedouro um plano israelense de atacar o Irã para impedir o país de fabricar armas nucleares.)

Embora tenha ficado mundialmente famoso e ganhado o Nobel da Paz, seus esforços de paz não deram resultado palpável. As negociações com os palestinos estancaram e as esperanças de avancem são mínimas.

De controverso a adorado

Os acordos de paz com os palestinos não foram a única vez que Peres estendeu a mão a inimigos. Ao contrário, essa pareceu ser uma de suas marcas. O primeiro inimigo político de Peres era Rabin, um rival desde os tempos em que ambos eram jovens e serviam ao governo de Ben Gurion. Em sua biografia, Rabin se referiu a Peres como um “incansável manipulador”. Mas a dupla parecia funcionar bem. Foi Peres quem convenceu Rabin a apostar no diálogo com os palestinos. (Na cerimônia de assinatura dos acordos, em Camp David, nos Estados Unidos, Peres estava sorridente; Rabin, amuado por ter de apertar a mão de Arafat, a quem considerava um assassino).

Peres também fez as pazes com Ariel Sharon, um líder de direita com quem duelou durante décadas. A certa altura, porém, Sharon se tornou uma direita “aceitável”. Com ele, fundou um novo partido, para tentar evitar o crescimento de políticos mais extremistas – que atualmente governam o país.

Mesmo entre seus aliados, era tido como alguém vaidoso, temperamental, dado a broncas e negociações por trás da cortina. Essa imagem passou. “Durante 60 anos, fui a figura mais controversa no país, e de repente sou o homem mais popular daqui”, disse certa vez. “Para falar a verdade, não sei quando eu fui mais feliz, antes ou agora.”

Qualquer que fosse a fase de sua vida, Peres jamais perdia uma boa frase. Sua última mensagem no Twitter, em agosto deste ano, foi: “Esta semana eu fiz 93 anos, e me pareceu a idade certa para aderir ao Snapchat”.
Quando completou 88 anos, foi cumprimentado com a saudação típica da tradição judaica – “que você viva até os 120” – e respondeu: “não seja econômico”.

Peres preferia se dizer um filósofo, não um político. Gostava de citar os antigos gregos, Flaubert, Churchill. Também era fã de Paulo Coelho. Publicou uma dezena de livros, entre eles O Novo Oriente Médio e uma autobiografia, Battling for Peace (Batalhando pela Paz), além de uma biografia de David Ben-Gurion.

Foi ativo até o início deste mês, quando sofreu um derrame e foi posto em coma induzida pelos médicos. Há dois anos, quando deixou a presidência de Israel, um vídeo seu viralizou na Internet. Mostrava-o procurando outras atividades – atuando como frentista, guarda de museu, entregador de pizza, caixa de supermercado e comediante – sua piada nesse posto foi: “vocês sabem como se constrói uma fábrica de tecidos no Neguev e todo mundo pensa que é outra coisa?”, referência ao seu projeto de armas nucleares não tão secreto.

Trabalhador incansável

É provável que Peres fosse, como afirmou Rabin, um manipulador incansável. Mas ele era também, como frisou Shalev, do Haaretz, um sonhador incansável, um pensador incansável, um planejador incansável, um palestrante incansável, um negociador incansável, um leitor incansável e um ator incansável.

Rabin cumpria jornadas de trabalho de até 18 horas, todos os dias. “Quando comecei a trabalhar para ele, eu era muito nova e queria mostrar serviço, chegando mais cedo que ele e saindo mais tarde que ele”, lembra a ex-assessora política Einat Wilf. “Depois de três dias eu percebi que acabaria hospitalizada.”

Segundo Shalev, Peres simbolizava a Israel que todos gostariam que existisse, em vez do país real. Ele tinha um olhar para a inovação, para a busca da paz, uma abertura para o mundo. Por essa ótica, Peres foi colocado num pedestal justamente para não ser levado a sério.

Isso explica por que Peres era tão adorado nos Estados Unidos, especialmente Nova York, onde a comunidade judaica é tão influente – e em sua maior parte tão liberal. Pouco antes de se tornar presidente, em visita à cidade, ele foi a um teatro da Broadway com amigos. Assim que entrou, recebeu uma ovação de pé. De início, Peres não entendeu o que estava acontecendo: achou que os aplausos eram para os atores, embora eles ainda não tivesse entrado em cena. Levou algum tempo até ele perceber que a ovação era para ele.

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