Michael Sandel: por que não selecionar os alunos de Harvard por sorteio?
Filósofo americano critica o papel das universidades como “máquinas de triagem” em um mundo que fomenta o fosso entre “vencedores” e “perdedores”
Ernesto Yoshida
Publicado em 30 de janeiro de 2021 às 14h45.
O americano Michael Sandel, professor de filosofia política em Harvard, é um dos pensadores mais “pop” da atualidade. Seu curso sobre “Justiça” foi o primeiro oferecido de forma online e gratuita pela universidade e já foi visto por dezenas de milhões de pessoas no mundo. Seus livros, que abordam temas como justiça, ética e democracia, foram traduzidos em 27 idiomas. O mais recente deles, A Tirania do Mérito, foi lançado no ano passado e virou o pano de fundo de sua participação no último dia do Fórum Econômico Mundial de Davos , na sexta-feira.
Logo no início do painel, sua interlocutora, a economista Ngaire Woods, diretora da escola de administração pública da Universidade de Oxford, lembrou que Davos costuma reunir algumas das pessoas “mais credenciadas, mais merecedoras e mais meritórias do mundo”. Neste ano, por causa da pandemia do coronavírus , o evento que reúne a elite política e empresarial global foi realizado inteiramente de forma virtual. Em tempos normais, disse Woods, os corredores de Davos estariam apinhados de pessoas comparando o desempenho de seus brilhantes filhos que estudam em Harvard, Stanford e Yale, três das oito universidades que formam a Ivy League, o grupo das instituições de ensino de primeira linha nos Estados Unidos.
Woods citou também que, em 1950, um CEO ganhava em média 20 vezes mais que um trabalhador típico de sua empresa. Hoje, o principal executivo ganha mais de 200 vezes o salário de um trabalhador comum. (Um levantamento entre empresas que integram o índice S&P 500, das maiores companhias do mundo, apontou que os CEOs ganharam em 2018, em média, 14,5 milhões de dólares, 287 vezes a remuneração de um empregado comum.) Woods citou outro dado impressionante extraído do livro de Sandel: nas universidades da Ivy League, há mais alunos que pertencem ao grupo do 1% dos americanos mais ricos do que de nascidos nas famílias que formam os 50% menos afortunados do país.
Diante dessa realidade, Sandel lançou uma ideia que ele mesmo chamou de “escandalosa”: selecionar parte dos alunos de Harvard, onde leciona há duas décadas, por simples sorteio. Neste ano, mais de 50.000 jovens se inscreveram em Harvard. Em média, menos de 5% conseguem passar pelo funil. A escolha aleatória seria um jeito de evidenciar algo que, segundo o filósofo, já está presente de forma implícita no processo de seleção de Harvard e das demais universidades da Ivy League: o principal critério de escolha é a pura sorte. No caso, sorte de ter nascido em uma família abastada, com condições de proporcionar uma boa educação desde o berço. Se parte dos alunos passasse a ser escolhida de forma totalmente aleatória, Sandel acredita que não haveria nenhum prejuízo acadêmico. “Suspeito que a qualidade da discussão em minha sala de aula seria igualmente animada e envolvente”, afirmou.
“Máquinas de triagem”
Para o filósofo, é necessário repensar o papel das universidades, que se transformaram em “máquinas de triagem” que ajudam a separar os “vencedores” dos “perdedores”. Ele lembrou que, mesmo numa sociedade educada como os Estados Unidos, quase dois terços das pessoas não têm um diploma universitário de quatro anos. “É um absurdo termos uma economia no qual o diploma universitário seja um requisito para um trabalho digno”, disse.
A pandemia da covid-19, segundo Sandel, deixou evidente que as pessoas que têm o luxo de trabalhar em casa precisam reconhecer o quão dependentes são de trabalhadores que, muitas vezes, não têm seu mérito reconhecido pela sociedade. Ele citou não apenas os profissionais de saúde que atuam na linha de frente em hospitais para cuidar de pacientes com covid-19, mas também motoristas de táxi, caminhoneiros, entregadores, trabalhadores de depósitos, prestadores de cuidados de saúde em domicílio e funcionários das creches. “Eles não são as pessoas mais bem pagas ou mais honradas em nossa sociedade, mas agora estamos chamando-os de trabalhadores essenciais”, disse Sandel. “Devemos iniciar um debate público sobre como recompensar em termos econômicos e conferir dignidade às formas de contribuição para o bem comum que, em nosso sistema atual, não são devidamente reconhecidas.”
“Arrogância meritocrática”
Sandel deixou claro que não é contra incentivar os jovens a fazer uma faculdade. Ao contrário, ele acha importante cultivar nos alunos “o amor pelo aprendizado, a capacidade de dar um passo para trás e descobrir qual paixão vale a pena perseguir”. Sua crítica se dirige ao que chama de “arrogância meritocrática”: a crença de que o mérito é resultado unicamente do esforço próprio. “Os que chegaram ao topo passaram a acreditar que o sucesso dependeu apenas deles mesmos.”
Por consequência, essa crença traz implícita a ideia de que aqueles que ficaram para trás não podem culpar ninguém a não ser a si mesmos: faltou se esforçar mais. Em outras palavras, os “vencedores” se sentem merecedores daquilo que alcançaram, enquanto os “perdedores” se sentem humilhados e desmoralizados, criando um ambiente de ressentimento e polarização que tem sido bem explorado por líderes populistas. “Esse é o lado obscuro da meritocracia, que é corrosiva ao bem comum”, disse Sandel.
Ironicamente, quem criou o termo “meritocracia” foi o sociólogo britânico Michael Young, em uma obra de 1958, The Rise of The Meritocracy, na qual descreve uma sociedade fictícia — os “mais inteligentes” têm acesso a melhor educação e a mais oportunidades de emprego do que os “menos inteligentes”, uma situação que tende a perpetuar a injustiça social. Young usou o termo de forma pejorativa, mas ao longo do tempo a meritocracia foi perdendo sua carga negativa e ganhando entusiastas de matizes ideológicos tão distintos quanto Ronald Reagan, Tony Blair e Barack Obama. Ela se assenta na ideia de que tudo é possível com trabalho duro.
O problema, conforme lembra Sandel, é que nem todos têm a mesma oportunidade. Muitas pessoas estão em desvantagem já na linha de largada. O filho de um imigrante pobre de Bangladesh tem menos chance de entrar em Harvard (ou tornar-se professor ali) do que alguém como Sandel, filho de uma família de judeus da classe média alta que pôde estudar em uma escola de boa qualidade em Los Angeles. “Precisamos reconhecer o papel da sorte na vida”, disse Sandel. “E lembrar que devemos nosso sucesso também aos pais, aos professores, aos bairros, às comunidades, ao nosso país, ao tempo em que vivemos.”