Gustavo Franco explica a magia do dinheiro
Entenda como governos e bancos de investimento emitem dinheiro ou títulos que possuem um valor reconhecido por convenções sociais – mas que podem não ter lastro nenhum
Da Redação
Publicado em 8 de novembro de 2013 às 15h23.
São Paulo – Você já parou para pensar por que uma nota de cem reais vale cem reais? Que convenção social está por trás da transformação de um pedaço de papel em moeda? Por que foi dado a governos e bancos de investimento o poder de emitir cédulas ou títulos com determinados valores? A quem cabe verificar se esses papéis realmente possuem o lastro necessário para justificar tal validade? E o que tudo isso tem a ver com Fausto, a obra-prima do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe?
As respostas a todas essas perguntas podem ser encontradas no livro “Dinheiro e Magia: Uma Crítica da Economia Moderna à Luz de Fausto de Goethe”, escrito pelo professor Hans Christoph Binswanger e com apresentação e posfácio do ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco. Em entrevista a EXAME.com, Franco explicou que existem muitas semelhanças entre as práticas do sistema financeiro mundial, o processo de desenvolvimento brasileiro e a segunda e menos conhecida versão de Fausto, publicada em 1832, após a morte de Goethe.
Na obra do poeta alemão, um rei já acostumado a pedir conselhos a astrólogos e alquimistas sobre assuntos de Estado descobre que é bem mais fácil imprimir dinheiro do que transformar chumbo em ouro. Políticos brasileiros como Juscelino Kubitschek se esbaldaram nessas políticas e as batizaram de desenvolvimentismo. Nos dias de hoje, os bancos de investimento também conquistaram o poder de criar dinheiro do nada. Com derivativos exóticos ou com ações sem lastro na economia real, esses banqueiros têm gerado prejuízos bilionários a investidores pelo mundo. Na entrevista abaixo, Gustavo Franco analisa a economia e os mercados financeiros sob a ótica de Fausto:
Bolsa
O mundo financeiro é cheio de valores fictícios que são estabelecidos por meio de convenções. Objetos como joias ou ornamentos não possuem um valor intrínseco. Nós é que dizemos quanto eles valem. O valor de uma ação negociada em bolsa não é tão subjetivo. Há cálculos, múltiplos e métodos que são usados para se chegar ao preço justo de um papel. Mas também há um componente de sentimento coletivo que tem reflexo no preço das ações: o pessimismo ou o otimismo. Outro componente importante da formação de preços em bolsa é que ao menos uma parcela da cotação de mercado de uma empresa está relacionada ao seu futuro. Qualquer ativo financeiro tem um componente artificial que depende do cumprimento de uma série de premissas. Quando uma empresa frustra as expectativas dos agentes do mercado, os investidores imediatamente começam a questionar se o valor atribuído a determinada ação é o correto. Nos períodos de euforia, as distorções podem durar muito tempo para serem corrigidas. Mas os mercados possuem mecanismos próprios para lidar com bolhas, ainda que algumas delas terminem em tragédia.
Derivativos
O advento dos derivativos de operações estruturadas de crédito pode ser comparado à emissão de papel-moeda em Fausto. É a uma inovação financeira com um aspecto mágico e antissocial. Às vezes, essa mágica poderosa pode ser usada para produzir riqueza e progresso. Outras vezes, há uma fraude envolvida. O que aconteceu na crise de 2008 foi que muita gente abusou na utilização desses instrumentos de crédito.
Uma manifestação bastante irônica sobre a emissão de títulos no mercado financeiro são os Monte Carlo Bonds, apresentados pelo artista plástico Marcel Duchamp em 1924. O Monte Carlo Bond era bem parecido com um título de dívida, só que estampado pelo próprio rosto do Duchamp se barbeando. A ideia era colocar os títulos no mercado e, com o dinheiro levantado, apostar nas roletas de Monte Carlo. Caso as apostas fossem bem-sucedidas, os investidores teriam direito aos dividendos. Essa é uma metáfora muito atual sobre a qualidade de alguns papéis que são vendidos aos investidores.
Regulamentação
Os bancos de investimento têm cometido muitos abusos devido à falta de uma regulação prudencial. Essa é uma discussão muito antiga nos Estados Unidos. Lá, os banqueiros têm uma reponsabilidade limitada sobre seus malfeitos. Quando um banco americano quebra, os bens pessoais dos administradores e dos acionistas não são atingidos. A responsabilidade recai inteiramente sobre o banco.
Aqui no Brasil, é diferente. Quando um banco quebra, os bens dos acionistas controladores e diretores são congelados. Como ninguém quer usar o patrimônio pessoal para tapar um buraco numa instituição financeira, há um alinhamento de interesses entre o banco e seus administradores. Isso aconteceu diversas vezes durante o Proer [programa federal de saneamento de bancos da década de 1990]. Quando o BC percebia que um banco estava quebrado, intervinha e congelava os bens dos controladores e diretores. Posteriormente, a parte boa do banco era vendida a um terceiro que não tinha nada a ver com sua quebra e que tocaria adiante o negócio de forma a não prejudicar o depositante.
É devido a essa regra que os bancos brasileiros são hoje muitos mais prudentes que os americanos. [É conhecido como índice de Basileia o percentual de capital próprio colocado pelos sócios de um banco em relação aos ativos totais da mesma instituição]. O índice médio de Basileia no Brasil é de 16%, sendo que o BC só exige 11%. Na Europa, está em 7% e é um problema passar para 9%. Então somos mais prudentes que o BC julga necessário e bem menos alavancados que os bancos de países desenvolvidos. Não acho que os banqueiros de um país sejam mais prudentes que os outros. A diferença é que aqui o sistema de incentivos criado pela legislação é o correto. Devido ao incentivo ao risco, os banqueiros estrangeiros fazem bobagens e precisam de dosagens maiores de regulação.
Outra mudança necessária nos EUA é em relação ao escopo de atuação do Federal Reserve. Em meio à crise de 2008, o Fed estendeu linhas de crédito a securitizadoras, seguradoras e até empresas não-financeiras. Se eles vão ser clientes do Fed quando ele atua como emprestador de última instância, também devem ser regulados em sua vida financeira e estar sujeitos às mesmas regras de prudência estabelecidas para os bancos. Essa é outra regra que precisa ser alterada nos EUA.
Impressão de dinheiro
É importante lembrar que, muito antes dos bancos, os governos já usavam e abusavam do poder de imprimir dinheiro. A segunda versão do Fausto mostra que os soberanos chegavam a consultar alquimistas e astrólogos para tomar decisões que pudessem resolver problemas econômicos. Em dado momento, o rei percebe que mais fácil do que transformar chumbo em ouro lançando mão de encantamentos era utilizar economistas profissionais na organização de bancos de emissão de papel-moeda dotados de algum lastro de natureza imaginária. Em meio ao Carnaval, o rei assina um papel que passa a ter valor de dinheiro. O chanceler avisa o soberano que poderiam surgir problemas no futuro devido à falta de lastro do dinheiro. Mas o rei está encantado demais com a possibilidade de imprimir recursos, gastá-los o mais rápido possível e acabar com a crise.
No modelo fáustico, a obra máxima da economia é a criação de um valor monetário artificial. É quase uma magia ou bruxaria. É a imaginação quem transforma o papel em dinheiro. O problema é que a passagem da magia à economia real representa o início de inúmeros conflitos da vida moderna: inflação, desigualdade, exuberância financeira, corrupção e destruição do meio ambiente. Não que eu esteja propondo uma volta ao padrão-ouro [sistema monetário quer perdurou até o início do século passado e que estabelecia que a impressão de dinheiro deveria ser restrita às reservas de ouro de cada país]. Não há metal suficiente para isso no mundo e o dinheiro é algo extremamente útil na economia moderna.
O problema da emissão livre de moeda são os exageros. Parece uma pequena mágica aceitarmos um pedaço de papel como se fosse o ideal supremo de nossa existência. É uma espécie de bruxaria, que virou um paradigma da vida moderna. Não acho que isso seja espúrio nem fraudulento por si só. É problemático quando feito de maneira abusiva. É o mesmo com a energia nuclear, que foi inventada com um fim, mas também produziu tragédias.
Os desenvolvimentistas
É ilegal e imoral o desenvolvimentismo a partir da pura e simples impressão de dinheiro. O papel moeda parece dar aos governantes o poder de promover o bem. Se algum desenvolvimentista prestar um depoimento no Congresso, ele vai dizer muitas com as quais todos concordaremos. Mas a emissão desenfreada de moeda nunca foi fonte de real desenvolvimento. Isso só gera inflação. Getulio Vargas não sofreu com o problema da hiperinflação durante seus governos, mas foi o autor dos três decretos de 1933 que estabeleceram a saída do padrão-ouro e sua substituição pelo papel-moeda.
O primeiro governante brasileiro a se utilizar da deslavada mágica de criar dinheiro foi Juscelino Kubitschek. O patrono do desenvolvimentismo brasileiro construiu Brasília, que, para os europeus, é a cidade que Fausto teria feito se vivesse por aqui. Depois, veio José Sarney, que, sem dúvida nenhuma, foi o presidente brasileiro que mais criou inflação. Ele herdou um país com inflação de 100% ao ano e o entregou com uma inflação de 80% ao mês. Sarney é o campeão absoluto em descontrole de preços e planos fracassados de combate à inflação.
Inimputabilidade
A tragédia brasileira é que os promotores do desenvolvimentismo sempre acabam absolvidos pela sociedade da mesma forma como Fausto escapa do Inferno no final do livro de Goethe. Por natureza, a inflação não costuma ser imputável a ninguém. Processos inflacionários geralmente são longos e quase nunca podem ser atribuídos a uma só pessoa. Tanto isso é verdade que Juscelino e Getulio tiveram as próprias efígies estampadas em cédulas de dinheiro no Brasil. A tragédia do desenvolvimento brasileiro é que todos são absolvidos: colonizadores, escravocratas, responsáveis pela desigualdade e promotores da hiperinflação. Como dizia Sérgio Buarque de Holanda, o brasileiro é o homem cordial. Aqui as pessoas dispostas a trabalhar e a promover o progresso acabam vistas como um incômodo. Foi assim com o Barão de Mauá e com Percival Farquhar.
Plano Real
Sem dúvida, o Plano Real controlou a inflação no Brasil. A sociedade entendeu que o abuso na emissão de dinheiro levava à inflação e que a disciplina fiscal era necessária. Houve uma grande mudança na forma de funcionamento do Banco Central a partir da década de 1990. A maior parte dos BCs mundiais foram criados na década de 1930. Em 1965, o Brasil foi um dos últimos a criar um BC estatal. Só no Plano Real é que o BC assumiu o papel de guardião da moeda e conquistou o poder extraordinário de controlar o papel que seria pintado e viraria dinheiro. Hoje, parte da sociedade já entende que evitar abusos é um mandato de frugalidade que cabe ao BC. Os políticos costumam criticar muito as propostas que concederiam ao BC autonomia formal. Brasília defende soluções inflacionárias o tempo todo. É por isso que é necessário haver um controle.
Traumas
Não acho que o controle inflacionário no Brasil é um processo totalmente amadurecido. O trauma que a hiperinflação deixou na Alemanha é bem maior que o daqui. O Brasil teve uma das piores inflações do mundo, mas curiosamente parece ter perdoado seus responsáveis. O brasileiro encara a hiperinflação como se tivesse sido o preço pago para alcançarmos o progresso. Para nós, é engraçado contar histórias da hiperinflação. Mas deveria ser algo triste.
Euro
O euro é uma inovação que saiu do controle. A moeda trouxe benefícios flagrantes para diversos países, mas, especialmente para a Grécia, era algo artificial. O euro é uma moeda muito melhor do que a economia grega poderia ter. Os gregos abusaram coletivamente do crédito farto e agora estão nessa situação. Os alemães estão no extremo oposto. Eles vão salvar os demais países, mas vão cobrar limitações de endividamento para sempre. Os gregos serão obrigados a assinar um pacto fáustico [que vendeu a alma ao diabo em troca da felicidade eterna].
China
A China é uma prova de que ninguém se importa com nada quando a economia vai bem. A população aceita a falta de liberdade política, os salários aviltantes e o desrespeito aos direitos humanos. É como no Brasil da década de 1970. Enquanto a economia crescia dois dígitos ao ano, as pessoas não se importavam com a ditadura e perdoavam as barbaridades. É como o perdão para Fausto.
São Paulo – Você já parou para pensar por que uma nota de cem reais vale cem reais? Que convenção social está por trás da transformação de um pedaço de papel em moeda? Por que foi dado a governos e bancos de investimento o poder de emitir cédulas ou títulos com determinados valores? A quem cabe verificar se esses papéis realmente possuem o lastro necessário para justificar tal validade? E o que tudo isso tem a ver com Fausto, a obra-prima do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe?
As respostas a todas essas perguntas podem ser encontradas no livro “Dinheiro e Magia: Uma Crítica da Economia Moderna à Luz de Fausto de Goethe”, escrito pelo professor Hans Christoph Binswanger e com apresentação e posfácio do ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco. Em entrevista a EXAME.com, Franco explicou que existem muitas semelhanças entre as práticas do sistema financeiro mundial, o processo de desenvolvimento brasileiro e a segunda e menos conhecida versão de Fausto, publicada em 1832, após a morte de Goethe.
Na obra do poeta alemão, um rei já acostumado a pedir conselhos a astrólogos e alquimistas sobre assuntos de Estado descobre que é bem mais fácil imprimir dinheiro do que transformar chumbo em ouro. Políticos brasileiros como Juscelino Kubitschek se esbaldaram nessas políticas e as batizaram de desenvolvimentismo. Nos dias de hoje, os bancos de investimento também conquistaram o poder de criar dinheiro do nada. Com derivativos exóticos ou com ações sem lastro na economia real, esses banqueiros têm gerado prejuízos bilionários a investidores pelo mundo. Na entrevista abaixo, Gustavo Franco analisa a economia e os mercados financeiros sob a ótica de Fausto:
Bolsa
O mundo financeiro é cheio de valores fictícios que são estabelecidos por meio de convenções. Objetos como joias ou ornamentos não possuem um valor intrínseco. Nós é que dizemos quanto eles valem. O valor de uma ação negociada em bolsa não é tão subjetivo. Há cálculos, múltiplos e métodos que são usados para se chegar ao preço justo de um papel. Mas também há um componente de sentimento coletivo que tem reflexo no preço das ações: o pessimismo ou o otimismo. Outro componente importante da formação de preços em bolsa é que ao menos uma parcela da cotação de mercado de uma empresa está relacionada ao seu futuro. Qualquer ativo financeiro tem um componente artificial que depende do cumprimento de uma série de premissas. Quando uma empresa frustra as expectativas dos agentes do mercado, os investidores imediatamente começam a questionar se o valor atribuído a determinada ação é o correto. Nos períodos de euforia, as distorções podem durar muito tempo para serem corrigidas. Mas os mercados possuem mecanismos próprios para lidar com bolhas, ainda que algumas delas terminem em tragédia.
Derivativos
O advento dos derivativos de operações estruturadas de crédito pode ser comparado à emissão de papel-moeda em Fausto. É a uma inovação financeira com um aspecto mágico e antissocial. Às vezes, essa mágica poderosa pode ser usada para produzir riqueza e progresso. Outras vezes, há uma fraude envolvida. O que aconteceu na crise de 2008 foi que muita gente abusou na utilização desses instrumentos de crédito.
Uma manifestação bastante irônica sobre a emissão de títulos no mercado financeiro são os Monte Carlo Bonds, apresentados pelo artista plástico Marcel Duchamp em 1924. O Monte Carlo Bond era bem parecido com um título de dívida, só que estampado pelo próprio rosto do Duchamp se barbeando. A ideia era colocar os títulos no mercado e, com o dinheiro levantado, apostar nas roletas de Monte Carlo. Caso as apostas fossem bem-sucedidas, os investidores teriam direito aos dividendos. Essa é uma metáfora muito atual sobre a qualidade de alguns papéis que são vendidos aos investidores.
Regulamentação
Os bancos de investimento têm cometido muitos abusos devido à falta de uma regulação prudencial. Essa é uma discussão muito antiga nos Estados Unidos. Lá, os banqueiros têm uma reponsabilidade limitada sobre seus malfeitos. Quando um banco americano quebra, os bens pessoais dos administradores e dos acionistas não são atingidos. A responsabilidade recai inteiramente sobre o banco.
Aqui no Brasil, é diferente. Quando um banco quebra, os bens dos acionistas controladores e diretores são congelados. Como ninguém quer usar o patrimônio pessoal para tapar um buraco numa instituição financeira, há um alinhamento de interesses entre o banco e seus administradores. Isso aconteceu diversas vezes durante o Proer [programa federal de saneamento de bancos da década de 1990]. Quando o BC percebia que um banco estava quebrado, intervinha e congelava os bens dos controladores e diretores. Posteriormente, a parte boa do banco era vendida a um terceiro que não tinha nada a ver com sua quebra e que tocaria adiante o negócio de forma a não prejudicar o depositante.
É devido a essa regra que os bancos brasileiros são hoje muitos mais prudentes que os americanos. [É conhecido como índice de Basileia o percentual de capital próprio colocado pelos sócios de um banco em relação aos ativos totais da mesma instituição]. O índice médio de Basileia no Brasil é de 16%, sendo que o BC só exige 11%. Na Europa, está em 7% e é um problema passar para 9%. Então somos mais prudentes que o BC julga necessário e bem menos alavancados que os bancos de países desenvolvidos. Não acho que os banqueiros de um país sejam mais prudentes que os outros. A diferença é que aqui o sistema de incentivos criado pela legislação é o correto. Devido ao incentivo ao risco, os banqueiros estrangeiros fazem bobagens e precisam de dosagens maiores de regulação.
Outra mudança necessária nos EUA é em relação ao escopo de atuação do Federal Reserve. Em meio à crise de 2008, o Fed estendeu linhas de crédito a securitizadoras, seguradoras e até empresas não-financeiras. Se eles vão ser clientes do Fed quando ele atua como emprestador de última instância, também devem ser regulados em sua vida financeira e estar sujeitos às mesmas regras de prudência estabelecidas para os bancos. Essa é outra regra que precisa ser alterada nos EUA.
Impressão de dinheiro
É importante lembrar que, muito antes dos bancos, os governos já usavam e abusavam do poder de imprimir dinheiro. A segunda versão do Fausto mostra que os soberanos chegavam a consultar alquimistas e astrólogos para tomar decisões que pudessem resolver problemas econômicos. Em dado momento, o rei percebe que mais fácil do que transformar chumbo em ouro lançando mão de encantamentos era utilizar economistas profissionais na organização de bancos de emissão de papel-moeda dotados de algum lastro de natureza imaginária. Em meio ao Carnaval, o rei assina um papel que passa a ter valor de dinheiro. O chanceler avisa o soberano que poderiam surgir problemas no futuro devido à falta de lastro do dinheiro. Mas o rei está encantado demais com a possibilidade de imprimir recursos, gastá-los o mais rápido possível e acabar com a crise.
No modelo fáustico, a obra máxima da economia é a criação de um valor monetário artificial. É quase uma magia ou bruxaria. É a imaginação quem transforma o papel em dinheiro. O problema é que a passagem da magia à economia real representa o início de inúmeros conflitos da vida moderna: inflação, desigualdade, exuberância financeira, corrupção e destruição do meio ambiente. Não que eu esteja propondo uma volta ao padrão-ouro [sistema monetário quer perdurou até o início do século passado e que estabelecia que a impressão de dinheiro deveria ser restrita às reservas de ouro de cada país]. Não há metal suficiente para isso no mundo e o dinheiro é algo extremamente útil na economia moderna.
O problema da emissão livre de moeda são os exageros. Parece uma pequena mágica aceitarmos um pedaço de papel como se fosse o ideal supremo de nossa existência. É uma espécie de bruxaria, que virou um paradigma da vida moderna. Não acho que isso seja espúrio nem fraudulento por si só. É problemático quando feito de maneira abusiva. É o mesmo com a energia nuclear, que foi inventada com um fim, mas também produziu tragédias.
Os desenvolvimentistas
É ilegal e imoral o desenvolvimentismo a partir da pura e simples impressão de dinheiro. O papel moeda parece dar aos governantes o poder de promover o bem. Se algum desenvolvimentista prestar um depoimento no Congresso, ele vai dizer muitas com as quais todos concordaremos. Mas a emissão desenfreada de moeda nunca foi fonte de real desenvolvimento. Isso só gera inflação. Getulio Vargas não sofreu com o problema da hiperinflação durante seus governos, mas foi o autor dos três decretos de 1933 que estabeleceram a saída do padrão-ouro e sua substituição pelo papel-moeda.
O primeiro governante brasileiro a se utilizar da deslavada mágica de criar dinheiro foi Juscelino Kubitschek. O patrono do desenvolvimentismo brasileiro construiu Brasília, que, para os europeus, é a cidade que Fausto teria feito se vivesse por aqui. Depois, veio José Sarney, que, sem dúvida nenhuma, foi o presidente brasileiro que mais criou inflação. Ele herdou um país com inflação de 100% ao ano e o entregou com uma inflação de 80% ao mês. Sarney é o campeão absoluto em descontrole de preços e planos fracassados de combate à inflação.
Inimputabilidade
A tragédia brasileira é que os promotores do desenvolvimentismo sempre acabam absolvidos pela sociedade da mesma forma como Fausto escapa do Inferno no final do livro de Goethe. Por natureza, a inflação não costuma ser imputável a ninguém. Processos inflacionários geralmente são longos e quase nunca podem ser atribuídos a uma só pessoa. Tanto isso é verdade que Juscelino e Getulio tiveram as próprias efígies estampadas em cédulas de dinheiro no Brasil. A tragédia do desenvolvimento brasileiro é que todos são absolvidos: colonizadores, escravocratas, responsáveis pela desigualdade e promotores da hiperinflação. Como dizia Sérgio Buarque de Holanda, o brasileiro é o homem cordial. Aqui as pessoas dispostas a trabalhar e a promover o progresso acabam vistas como um incômodo. Foi assim com o Barão de Mauá e com Percival Farquhar.
Plano Real
Sem dúvida, o Plano Real controlou a inflação no Brasil. A sociedade entendeu que o abuso na emissão de dinheiro levava à inflação e que a disciplina fiscal era necessária. Houve uma grande mudança na forma de funcionamento do Banco Central a partir da década de 1990. A maior parte dos BCs mundiais foram criados na década de 1930. Em 1965, o Brasil foi um dos últimos a criar um BC estatal. Só no Plano Real é que o BC assumiu o papel de guardião da moeda e conquistou o poder extraordinário de controlar o papel que seria pintado e viraria dinheiro. Hoje, parte da sociedade já entende que evitar abusos é um mandato de frugalidade que cabe ao BC. Os políticos costumam criticar muito as propostas que concederiam ao BC autonomia formal. Brasília defende soluções inflacionárias o tempo todo. É por isso que é necessário haver um controle.
Traumas
Não acho que o controle inflacionário no Brasil é um processo totalmente amadurecido. O trauma que a hiperinflação deixou na Alemanha é bem maior que o daqui. O Brasil teve uma das piores inflações do mundo, mas curiosamente parece ter perdoado seus responsáveis. O brasileiro encara a hiperinflação como se tivesse sido o preço pago para alcançarmos o progresso. Para nós, é engraçado contar histórias da hiperinflação. Mas deveria ser algo triste.
Euro
O euro é uma inovação que saiu do controle. A moeda trouxe benefícios flagrantes para diversos países, mas, especialmente para a Grécia, era algo artificial. O euro é uma moeda muito melhor do que a economia grega poderia ter. Os gregos abusaram coletivamente do crédito farto e agora estão nessa situação. Os alemães estão no extremo oposto. Eles vão salvar os demais países, mas vão cobrar limitações de endividamento para sempre. Os gregos serão obrigados a assinar um pacto fáustico [que vendeu a alma ao diabo em troca da felicidade eterna].
China
A China é uma prova de que ninguém se importa com nada quando a economia vai bem. A população aceita a falta de liberdade política, os salários aviltantes e o desrespeito aos direitos humanos. É como no Brasil da década de 1970. Enquanto a economia crescia dois dígitos ao ano, as pessoas não se importavam com a ditadura e perdoavam as barbaridades. É como o perdão para Fausto.